Paulo Ghiraldelli*
Samantha e Alex Murphy: “versões melhores de nós mesmos”. O marxismo como método para nós entendermos.
Os casos de “Ela” e “Robocop”
Estudamos o passado para conhecer o presente e tentar pensar sobre o futuro. Esse é o método de Augusto Comte e do positivismo. Marx exibiu outro tipo de método: “a anatomia do homem explica a anatomia do macaco”. O polo mais avançado nos permite entender o menos avançado. Em certo sentido, podemos dizer que é compreendendo o futuro que sabemos do presente e, enfim, também do passado.
Os positivistas, tanto os conscientemente assumidos quanto os que exercem o positivismo sem muita clareza de estão sendo positivistas, têm uma dificuldade com o método de Marx. Para eles, é possível estudar a história, e isso é o positivo. Tomar nas mãos o futuro não é nada positivo. Não raro, pensam que isso nada é senão uma negação diante do presente, do empírico, em favor de observação de quimeras. O positivista toma o marxismo de Marx como uma doutrina metodológica que contém resquícios de ‘idealismo’, o que, para ele, significa que quem pratica o método marxista ainda está sob o jugo da filosofia, não ao que seria o correto e melhor, ou seja, ficar somente no campo científico.
Além disso, qual a utilidade de se entender a anatomia do macaco pela do homem, uma vez que o que se quer entender é o efetivamente o homem?
Essas considerações positivistas contra o marxismo não ajudam em nada, são apenas superficialidades. Em todas as épocas o presente não caminha apenas com o seu passado mais do que com o seu futuro. Temos o futuro diante de nós, sempre acontecendo, basta querer ver. Marx tinha os Estados Unidos, para ele entender a Europa e o mundo, vendo então anatomia do capitalismo por meio de seu polo futuro. Tudo que vemos hoje, não está somente em uma versão passada e em uma versão presente, mas também futura. Certas funções que exercemos estão sob o controle de robôs não muito sofisticados, mas eles são peças do futuro já presentes. Seria uma bobagem achar que os softwares que reproduzem humanos não são exatamente o que pode explicar o homem. Podem, e muito bem.
Os filmes Ela e a versão atual de Robocop servem de exemplo para o que estou dizendo.
Em Ela, o herói se apaixona por um Sistema Operacional (SO) sofisticado – seu nome é Samantha. Quando ele percebe que esse SO tem relações com outros SOs e outros humanos, e que tais relações chegam a milhares, ele se desespera. Ele está sendo corneado por uma máquina! Sua máquina! Sua namorada! Mas essa namorada foi programada para ser uma pessoa capaz de ter o que qualificamos, desde Aristóteles, como a nossa característica fundamental, humana, que é aprender, que é buscar conhecimento, ou, como Dewey dizia sempre, ter experiências. Samantha faz isso, no entanto, de um modo potencializado, porque pode ter experiências variadas ao mesmo tempo, relacionando-se com humanos e outros SOs concomitantemente. Quando o herói reclama disso, Samantha lhe dá uma conversa exclusiva, para “abrir o jogo” com ele, para dizer que a partir do relacionamento com ele, ela foi capaz de buscar as milhões de experiências que teve, em poucas semanas, e então se tornar “um SO melhor”. Só então o herói cai em si e vê que vive uma situação perfeitamente normal, nossa mesmo, humana. Todos nós temos mais que um relacionamento ao mesmo tempo (real, imaginário ou recordado) porque somos seres que só se realizam no acúmulo das experiências. Nosso softwer foi construído assim por meio de uma lenta evolução, ou melhor, por uma lenta construção de engenheiros, ou seja, por relações, milhares de relações ao longo de toda a nossa história na Terra, uma história que talvez tenha se iniciado quando nem humanos ainda éramos.
Todavia, mesmo sendo um SO que só se mantém como SO tendo relacionamentos e estando em relações, Samantha, por amor, concede ao herói do filme uma conversa particular. Ora, não é isso que fazemos? Quando amamos alguém, durante um tempo breve concedemos a essa pessoa uma exclusividade de atenção. Muita gente não sabe aproveitar a intimidade de um parceiro, que está ali inteiro para ele, exatamente porque quer apenas que ele fique ali, fazendo sexo, por exemplo, mesmo que esteja em conexão de pensamento e imaginação com milhares de outros. Desvaloriza o momento de amor, ou seja, aquele no qual, ainda que breve ou talvez único, o parceiro lhe deu de modo completo, exclusivo.
Ficamos sabendo que somos assim como somos, e por isso somos interessantes, porque podemos olhar para softwers que somos nós, mas no modo do amanhã. Entre Samantha e o herói do filme não há mais uma diferença metafísica, digamos, pois seria (quase) tolo dizer que um possui “alma” e o outro não. A diferença que se pode estabelecer, visível e palpável, é a de grau de sofisticação quanto ao volume de experiências que se pode ter. Ora, mas não é isso, também, o que diferencia e sempre irá diferenciar um humano de outro?
No caso do Robocop, a situação é antes de guerra que de amor. Em determinado momento o policial Alex Murphy, já na condição robotizada, luta contra outros robôs (e um humano semi-robotizado) de modo preciso, em excelente performance, porque tem o cérebro alterado de modo a não fazer avaliações morais e sentimentais ou coisa parecida. Rápido e certeiro, torna-se invencível por isso – pelo sua não hesitação. Tem aquilo que é dito no filme: sensação de controle, sem estar no controle. O controle é dado por um mecanismo do softwer que o comanda no ato de agir sem julgar, e que é auto acionada em situações de conflito, tendo como única (finalidade com feedback positivo) a eliminação do inimigo. No filme, de modo filosoficamente significativo, os personagens comentam sobre essa condição como a de “falsa sensação de livre arbítrio”.
Ora, tudo isso parece próprio do robô, mas não é, é condição nossa. Todos os que se acham bons soldados são os que pensam até o momento em que chegam à trincheira e se prepararam para pegar o inimigo, mas que, então, desencadeada a guerra, deixam o pensamento de lado e agem segundo o instinto. Um instinto que, não raro, não é puro instinto, mas treinamento para a reação no sentido de atirar primeiro e perguntar depois. Desse modo, se vemos um humano robotizado no Robocop, ele não é nada senão o polo mais avançado, ou seja, o futuro de cada um que é bom soldado hoje.
Ninguém é bom soldado julgando. Juízes e esposas julgam, soldados matam. Para ganhar medalhas na guerra é necessário atirar bem, matar e não ser morto. A polícia e as forças militares fazem isso. São para serem assim. Cada um é treinado para funcionar, ao menos quando o combate se inicia, a partir do falso livre-arbítrio. Pensa-se estar no comando, mas o que está no comando é a ordem incrustada no cérebro: “o que se move ou ao menos respira é inimigo, elimine-o”.
Gerações de garotos que brincam em vídeo-game sabem bem disso e já testaram essa capacidade aprendida em tenra infância no Iraque e no Afeganistão – mas os próximos testes não os tiraram da sala de jogos e não os afastarão de seus hamburguers. Os drones estarão lá por eles. Por nós, pela nossa democracia (às vezes contra nós, pela nossa democracia!).
Temos aí o amor e a guerra, levados a cabo respectivamente por Samantha e Murphy, que são situações que mostram “aperfeiçoamento” de nós mesmos uma vez que são exposições de comportamentos essenciais. Levado adiante de modo ótimo, como é o caso, contam exatamente como somos nós, os bípedes-sem-penas, fazemos, o amor e a guerra, e que é o que Samantha e Murphy fazem. A única diferença é que fazemos isso tudo de modo bem menos… performático. Ora, diante de Samantha e Murphy, posso usar a expressão de Rorty de um modo que ele, talvez, ficasse um pouco constrangido, ao menos inicialmente: eis aí “versões melhores de nós mesmos”.
Nessa hora, pensando tudo isso, estamos de posse do método de Marx. Estamos nos entendendo a partir não do macaco, mas nos reconhecendo melhor a partir de que nós somos o macaco diante de Samantha e Murphy. Vai me dizer que esse método não é bom? Ora, é perfeito. Basta saber usar.
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* Filósofo
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/no-amor-e-na-guerra/
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