Por Marilza de Melo Foucher*
Cida Horta foi perseguida pela ditadura após se tornar professora e lutar por um país mais justo e igualitário
Nada melhor para escrever um texto de reflexão política do que o contato direto com segmentos da chamada sociedade civil organizada do Brasil, intelectuais, pessoas simples encontradas em encontros casuais, inclusive os taxistas. Nunca senti um país politicamente tão dividido, todavia, meus interlocutores me surpreenderam com suas analises pertinentes e outras inconsequentes, pois fugiam de toda regra da racionalidade política.
Aproveitei também para realizar uma série de entrevistas e recolher alguns depoimentos com pessoas que foram presas, torturadas, perseguidas durante a ditadura, assim como, aquelas que num trabalho de formiga levaram em frente o desafio de colaborar para a emergência da sociedade civil. Muitos militantes utilizaram do instrumento de educação popular segundo Paulo Freire, e adotam uma pratica educativa não autoritária, partindo da ótica que todo conhecimento é construído na relação das pessoas entre si e com o mundo, no sentido de apreender a realidade social de maneira critica desvelando suas contradições.
Aqui lhes apresento o depoimento da educadora popular Cida Horta, em seguida a entrevista de Frei Beto.
Boa Leitura. Ditadura Nunca Mais! Que nossa democracia se fortaleça sempre.
Uma vida pela Educação
Maria Aparecida Antunes Horta tem 68 anos e é professora desde 1966. Participante do movimento de resistência à ditadura foi obrigada a sair do país, tendo vivido em Cuba de 1973 a 1979. De volta ao Brasil, retomou seu trabalho na escola pública e num centro de educação popular dedicado á formação de educadores de jovens e adultos.
“A geração à qual pertenço, nascida nos anos 40, viveu sua juventude e começo da idade adulta sob a ditadura que dominou o Brasil de 1964 a 1984. Nossa caminhada de aprendizagem da vida democrática teve início ao final dos anos 70, a partir de uma chamada abertura lenta, gradual e segura que implicou em uma transição negociada com os antigos ditadores, que, entre outras coisas, se concederam uma auto anistia para seus crimes de usurpação do poder, tortura, morte e desaparecimento de opositores políticos. Essa transição negociada também permitiu a realização de eleições indiretas para a presidência em 1985.
“Se refletirmos sobre o legado desses de 21 anos de regime ditatorial no Brasil, veremos que aquelas duas décadas em que fomos totalmente silenciados e impedidos de qualquer participação política foram marcadas pela entrega do país ao capital internacional, pela concentração da terra e capitalização do campo de onde foram expulsos os camponeses obrigados a se espremerem nas periferias das cidades, pela privatização da educação e desvalorização dos professores através da redução de seus salários, pelo arrocho salarial e repressão a qualquer ameaça de greve operária, além de uma perseguição feroz aos que participaram dos movimentos de resistência, que resultou em milhares de brasileiros torturados, presos, ou mortos e desaparecidos.
“A ditadura civil-militar roubou aos brasileiros a possibilidade de implementar as reformas de base que faziam parte do programa de governo do presidente João Goulart e que contavam com amplo apoio popular. Mataram os movimentos de cultura popular, suspenderam a campanha nacional de alfabetização que se anunciava sob a inspiração de Paulo Freire, que foi preso e exilado, aniquilaram as propostas de reforma urbana e reforma agrária, assim como, de controle sobre as remessas de lucros das empresas estrangeiras instaladas no País. Impôs-nos um atraso de 21 anos, aprofundando as desigualdades sociais, o desemprego, tornando explosiva a questão da moradia nas grandes cidades, tolhendo a nossa cultura enquanto favorecia o domínio da cultura norte-americana em nossos meios de comunicação. Ao mesmo tempo, fortaleceram com sua política os setores conservadores e reacionários, atendendo aos interesses dos grandes latifundiários, empreiteiras, banqueiros e monopólios internacionais.
“Não obstante toda a repressão e controle dos aparelhos repressivos, na década de 70, os movimentos sociais começaram a se reorganizar, as comunidades eclesiais de base inspiradas na Teologia da Libertação se multiplicaram e surgiram vários centros de educação popular que foram protagonistas a partir de meados daquela década de importantes movimentos por moradia, saúde, educação, participando também da luta pela redemocratização e pela anistia. Pude integrar um desses grupos de Educação Popular, no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo a partir de 1979 e, ali, acompanhei de perto todos os desafios enfrentados pelos educadores populares ao longo dos últimos 30 anos.
“O trabalho de educação popular foi certamente um dos fatores que permitiram a vitória das candidaturas de esquerda ao parlamento e ao executivo eis que conseguiu detonar as rochas do reacionarismo fomentadas e alimentadas ao longo de nossa história. Foi determinante, por exemplo, para a eleição de Luíza Erundina à prefeitura de São Paulo em 1988 e de Lula à presidência em 2002 depois de uma caminhada exaustiva de mais de 10 anos. Conseguiu igualmente eleger vários militantes de esquerda a cargos no legislativo, alguns deles com história de atuação na Educação Popular.
“Naqueles momentos, o entusiasmo e o trabalho da militância supriram a falta de recursos materiais para as campanhas.
Nesse esforço de contribuir para a construção do processo democrático em nosso País, garantindo a participação nele dos trabalhadores da cidade e do campo, não foi pequeno o desafio que os educadores populares enfrentaram quando da Queda do Muro de Berlim seguida da crise e desmanche do socialismo nos países da Europa Oriental e na URSS.
“Após a perplexidade inicial, abriu-se um abismo de incertezas e de questionamentos. Mas a década de 90 acrescentou novos desafios com a implantação da política neoliberal principalmente nos dois governos de FHC com toda a mudança que imprimiu no mundo do trabalho e as políticas de privatização. Houve muita mobilização popular, muitos esforços dos educadores para entender o que era globalização, o Consenso de Washington, o neoliberalismo e fazer chegar esse entendimento a todos.
“Desenvolveram-se campanhas pelo questionamento da enorme dívida externa do País, campanhas contra as privatizações, principalmente da Vale do Rio Doce e da Petrobrás, contra o ingresso do Brasil na ALCA, etc. Foram anos de refundamentação da Educação Popular e de questionamentos sobre sua relação com o Estado uma vez que nossas organizações passaram a ser convidadas para participar das políticas públicas e foram muitas as discussões sobre se isso era ou não correto.
“O surgimento do Fórum Social Mundial foi muito importante ao se colocar como um espaço para a discussão do futuro de nossas utopias. Se o socialismo real não se mostrara capaz de construir um mundo novo, o Neoliberalismo experimentou um fracasso total para responder aos males produzidos pelo capitalismo nas sociedades contemporâneas. Pelo contrário, ele só conseguiu agravar esses males, multiplicando a pobreza, o desemprego, a desigualdade e a violência social no planeta. Do Fórum surgem novas abordagens das questões ecológicas e a proposta de construção de uma economia sustentável.
“Esses temas passaram a ser objeto do trabalho de muitas entidades a partir dos anos 2000, juntamente com o surgimento de movimentos sociais de gênero, etnia, orientação sexual, etc. Também se destacam muitas experiências de economia solidária não só para fazer frente ao desemprego, mas principalmente para permitir a vivência de uma atividade econômica baseada no esforço coletivo e solidário dos trabalhadores.
“O trabalho educativo desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tornou-se um paradigma para aqueles que pensam a educação popular como instrumento de transformação social e como forma de empoderamento dos trabalhadores.
“Hoje, a complexidade social e política de nosso País chama a desenvolver ações em defesa dos direitos humanos, ações de formação da juventude ameaçada pelo desemprego e as drogas, ações de combate à violência social, à violência contra as mulheres, à violência doméstica, e, o mais grave, à violência policial, herança que trazemos intacta da ditadura. Com o agravamento da violência social, surgem também trabalhos que buscam uma justiça restaurativa que devolva a paz a famílias destroçadas pela perda de entes queridos. O movimento de alfabetização, que foi uma proposta anterior ao golpe, se reforçou nas últimas décadas e continua atuante agora como esforço complementar das políticas públicas de educação para atingir os alfabetizandos jovens e adultos.
“Ao longo dos quase 12 anos dos governos Lula e Dilma, os lutadores sociais foram compreendendo que ter o governo não significa ter o poder, e tomaram consciência da necessidade de pressionar por mudanças. Os movimentos por terra, os movimentos por moradia, os movimentos indígenas e outros grupos tem se manifestado sistematicamente em defesa de seus direitos, e outros novos surgem, com palavras de ordem e formas de organização diferentes, como o Movimento Passe Livre, o Levante Social da Juventude.
“Hoje, mais que nunca, os trabalhos de educação popular são necessários para fazer o contraponto aos setores que desejam aniquilar as conquistas alcançadas na última década e que contam com os meios de comunicação para alardear suas críticas e sua desinformação. São ainda poucos e um tanto tímidos os que defendem abertamente um golpe contra o governo, mas essas coisas podem crescer se a população não tem os instrumentos que lhes permitam conhecer como funcionam as engrenagens de uma sociedade injusta e desigual. Mais ainda quando os governantes do PT não criaram uma política de comunicação que lhes permita responder as sucessivas mentiras e campanhas levadas a cabo pela mídia”.
Frei Betto: “É preciso comemorar”
Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como o Frei Betto , (Belo Horizonte, 25 de agosto de 1944) é um escritor e religioso dominicano brasileiro.
Adepto da Teologia da Libertação, foi militante engajado em movimentos pastorais e sociais, tendo ocupado a função de assessor especial do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2004. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.
Frei Betto esteve preso por duas vezes sob a ditadura militar: em 1964, por 15 dias; e entre 1969-1973.2 Após cumprir quatro anos de prisão, teve sua sentença reduzida pelo STF para dois anos. Sua experiência na prisão está relatada nos livros “Cartas da Prisão” (Agir), “Dário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco) e Batismo de Sangue (Rocco). Premiado com o Jabuti de 1983, traduzido na França e na Itália, Batismo de Sangue descreve os bastidores do regime militar, a participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura, a morte de Carlos Marighella e as torturas sofridas por Frei Tito. Baseado no livro, o diretor mineiro Helvécio Ratton produziu o filme Batismo de Sangue, lançado em 2007.3
Frei Betto recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares.
– Frei Betto, você que foi preso, torturado durante a ditadura, como analisa esta data de 50 anos de golpe militar?
– É preciso comemorar, no sentido etimológico de fazer memória, os 50 anos da implantação da ditadura no Brasil. Como diria Marx, para que a história, uma tragédia, não se repita como farsa. As novas gerações precisam saber como foi, o que foi e o que fez a ditadura ao longo de 21 anos governando o Brasil. Ainda temos, em nosso país, “viúvas” da ditadura e quem apregoa que a volta dos militares haverá de melhorar o país…
– Como você analisa hoje o processo de redemocratização do Brasil? Quais os maiores avanços desta conquista?
– A ditadura foi derrubada pelo acúmulo político provocado pelas mobilizações dos movimentos sociais: CEBs, associações de bairros, luta pela terra, sindicatos, grupos de arte e cultura etc. Conseguimos eleger um metalúrgico – Lula – presidente da República, consolidando processo democrático. Grandes avanços ocorreram ao longo dos 11 anos de governo do PT: controle da inflação, elevação do salário mínimo, inclusão econômica de 55 milhões de pessoas etc. Porém, os arquivos da ditadura de posse das Forças Armadas não foram abertos até hoje e a Comissão da verdade, que apura os crimes do regime militar, não tem poder de punir. Além disso, nenhuma reforma de estrutura foi implementada nesses 11 anos de governo, nem a agrária, nem a política, nem a tributária etc
– O processo de democratização no Brasil forjou ao longo desses anos um Estado de direito?
– Sim, mas falta muito para aperfeiçoá-lo. Precisamos de uma nova carta constitucional, e esperamos que o povo brasileiro vote a favor disso no plebiscito que ocorrerá a 7 de setembro. Precisamos, após a inclusão econômica de inclusão política, pela qual os jovens se mobilizam nas ruas. Nossa democracia ainda é meramente “delegativa” e não participativa. Há muito a fazer e lutar!
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* Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.
Fonte: http://correiodobrasil.com.br/30/03/2014
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