terça-feira, 30 de julho de 2013

O estético, o ético e o sacro: breve "excursus" sobre a encíclica "Luz da fé"

 

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O estético, o ético e o sacro representam a evidência simbólica da consciência crente na sua tematização estética e ética. De acordo com a hermenêutica gadameriana, a arte e religião, o belo e mito, estão na base da experiência hermenêutica originária (Verdade e Método). Esta manifestação do sentido originário presente nas coisas interpela o sujeito humano que vive na história segundo o dinamismo interior. Assim «a interioridade torna-se tema de reflexão e apropriação precisamente através da qualidade espiritual à qual a exterioridade sensível, mediante a ressonância do sentimento e o simbolismo da imaginação, dirige a consciência» (P. Sequeri). A qualidade estética da experiência crente está profundamente relacionada com a descoberta da interioridade no processo de hominização e humanização.

Os estados interiores, as imagens que povoam a nossa mente, resultantes de representações, pensamentos e ideias, provêm do sentimento das emoções que influenciam de algo modo o nível de confiança que o ser humano atribui a si mesmo e aos outros. A interioridade – que aqui podemos estabelecer paralelamente com a mente – ganha qualidade espiritual na medida em que é capaz de aliar a si a sensibilidade cristalizada no sentimento e na imaginação. A qualidade espiritual, o sentimento e a imaginação não são apenas componentes constitutivos da consciência mas a sua condição cognoscitivo-prática. A consciência cristalizada na emoção, no sentimento, no desejo, no afeto funda a dimensão estética que é o âmbito da sensibilidade da consciência.

A perceção do sentir, ou perceção da emoção, dá-se na consciência estética enquanto categoria que explicita o affectus fidei, o afecto da fé, ou a reapropriação teórica e prática dos diversos modos em que se percepciona o manifestar-se de Deus. A estética teológica assim entendida estabelece a «relação entre o teológico e o modo da percepção. Porque não basta olhar, há modos e modos de olhar; não basta tocar, há modos e modos de tocar» (P. Sequeri). Isto supõe que à experiência estética, à experiência da beleza evocativa da justiça originária que conduz ao cumprimento da promessa de sentido último, seja subjacente à inteligência e à vontade humana. É neste contexto que emerge a percepção do sacro que institui uma relação diferenciadora com a realidade. Esta percepção do sacro insere-se na justiça da afeição de Deus «porque sem nenhuma referência a uma origem divina não posso ser perfeitamente justo, porque sem este referimento, sem uma não apropriação do género, colocar-me-ei no lugar de juiz supremo, de mestre da justiça e isto é início de toda a espoliação» (F. Hadjadj).

A consciência estética supõe portanto a consciência crente e a consciência ética. Sem estas instâncias não é possível colher a experiência estética no seu núcleo metafísico e universal. O perigo subjacente é a degeneração do belo em sedução, do medo em pânico, da alegria em histerismo, e assim por diante. Portanto, a experiência de beleza que o sujeito faz está profundamente ligada ao sentido da justiça e da verdade, isto é ao saber originário da consciência, a uma metafísica dos afectos, que subtrai o humano ao útil, ao funcional e ao poder sedutor incontrolável da imediateza. É verdade quando Pierre Levy afirma que «se o mundo humano subsistiu até hoje é porque sempre houve justos suficientes. Porque as práticas de acolhimento, de ajuda, de abertura, de atenção, de reconhecimento, de construção, acabam por ser mais numerosas ou mais fortes do que as práticas de exclusão, de indiferença, de negligência, de ressentimento, de destruição».

Na verdade, a autêntica experiência estética situa-se ao nível da qualidade espiritual do humano e não no sentido primário do usufruto, do gozo sentimental. A beleza sem a bondade e a inteligência é um estéril sentimento, momento sedutor que afasta a verdade das coisas, colocando-a ao nível de um simples jogo de sedução. A consciência estética está profundamente ligada à experiência religiosa e não tanto ao gozo imediato de uma obra de arte. Se a beleza não invoca a justiça e a verdade originária inscrita no coração humano converte-se em banal encantamento, sedução sentimental, aparência de bem, auto-referencial. À estética teológica caberá fazer apelo à interioridade humana, mantendo em relação a dimensão corpórea (cognitiva) e a dimensão espiritual (afectiva) do sentir. Por exemplo, a música enquanto «ciência da anima» tem a missão de explicitar, invocar e discernir a qualidade sensível e espiritual da experiência humana e religiosa. A música surge como a evidência simbólica da consciência crente. A música como síntese do sensível leva o humano a sentir uma experiência originária vital, libertando o seu imaginário frequentemente preso às palavras e gestos, a ritos e representações.

Há portanto, aqui uma ressonância afectiva e cognitiva que liberta a interioridade humana e a predispõe para o acolhimento da Revelação. A «fé é, substancialmente, escuta emocionada da palavra de Deus» (Ricotta), ou melhor: «reconhecimento que se nutre de agradecimento» (Sequeri). A razão teológica apresenta uma evidência simbólica (ético, símbolo e rito) que faz apelo ao reconhecimento a partir da interioridade do sujeito mas ao mesmo tempo o dispõe para uma abertura re-memorativa à Tradição, a um existir que o precede e funda. Em parte, poder-se-ia ver neste reconhecer-se (sentir-se) reconhecido uma certa receptividade passiva do sujeito. Mas a evidência simbólica da razão teológica é mais do que uma ideia ou uma representação de um ideal. Ela assume, na verdade, uma figuração ontológico-hermenêutica do princípio verdade/justiça da ordem afectiva instaura pelo ágape livremente oferecido de Deus.

O «dar-se da Vida como autoafeição pática cruza-se com o próprio poder da incarnação» (Viola), visibilidade do invisível, o Logos crístico que revela, na sua configuração histórico-hermenêutica. A consciência estética (beleza) desenvolve uma evidência simbólica (rito, símbolo, ethos) capaz de ordenar os afectos, de manifestar a vida invisível, inconsciente, ao si humano consciente, restituindo-o a sua afectividade originária. Na verdade, uma «semelhante fenomenologia do espírito-vida, no corpo-mundo, poderá chegar a tocar a realidade da vida espiritual, porém, somente aonde o espírito seja compreendido, na sua acepção mais originária, como vida gerada no logos da afeição e libertada pela justiça do sentido» (Sequeri). Sem racionalidade, sem afecto e sem o justo sentido da existência a mente humana permanece à deriva de si e dos outros. Fica a interrogação apelativa: «aquilo que se comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua mente, vontade e afectividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e com os outros»? (Carta Encíclica Lumen Fidei, 40).
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Texto de João Paulo Costa
© SNPC | 29.07.13
Fonte: http://www.snpcultura.org/o_estetico_o_etico_o_sacro_luz_da_fe.html - Site de Portugal.

" O impossível é o sobrenome do medo "


FABRÍCIO CARPINEJAR*

Perdemos mais tempo arrumando desculpas do que vivendo.

Perdemos mais tempo adiando do que aceitando a dificuldade.

Perdemos mais tempo explicando a desistência do que enfrentando o sim.

Eu garanto que a fuga dá mais trabalho do que se encontrar. Porque estaremos longe, mas com saudade. Porque estaremos protegidos, mas vazios. Porque estaremos aliviados, mas entediados.

A vida é simples, milagrosamente simples.


A esperança é firmeza. Consiste em seguir adiante mesmo com pânico, mesmo com receio.

Não há como acalmar o coração senão vivendo.

Parece que nunca conseguiremos fazer, mas vamos fazer, acredite, toda a vida foi feita de sustos bons.

Somente tememos o que é importante. Somente temos dúvidas do que é essencial. Somente entramos em crise por enxergar com clareza a dimensão de nossa escolha.

Os riscos valorizam a recompensa.

Viver não é para solitários. Sempre tem alguém nos chamando para nos acompanhar no perigo.


Eu pensei que nunca percorreria o corredor de minha infância caminhando, mas o vô me esperava do outro lado. Eu caí e ele me levantou com suas mãos de regente.

Eu pensei que nunca me manteria equilibrado numa bicicleta, mas meu pai fingiu que segurava a minha garupa e pedalei de olhos fechados com o vento me guiando.

Eu pensei que nunca aprenderia a ler e a escrever, mas a letra da minha mãe foi a escada para as histórias.

Eu pensei que nunca teria uma namorada, mas o beijo veio distraído no recreio da segunda série.

Eu pensei que nunca conseguiria nadar, mas os braços foram se revezando até atravessar a piscina.

Eu pensei que nunca passaria no vestibular, mas sacrifiquei noites e pesadelos para um lugar na faculdade.

Eu pensei que nunca teria filhos, eu pensei que nunca dividiria a casa com alguém, eu pensei que nunca seria dependente do olhar de uma mulher, eu pensei que nunca teria dinheiro, eu pensei que nunca seria feliz.

Eu pensei, mas fui fazendo. Fazendo. Fazendo.

O impossível é apenas o sobrenome do medo.

Você acha que somos impossíveis, mas é do impossível que o amor gosta.

O impossível é inesquecível.

O impossível é o possível repartido. O impossível é o possível a dois.

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* Poeta. Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/07/2013

" Re - vo - lu - ci- o - ná - rios "

 

Clóvis Rossi*

Mas, atenção, a revolução que o papa pede tem por base o difícil e exigente Evangelho
Foi assim, escandindo cada sílaba de "revolucionários", que o papa pediu que cada jovem seja. Revolucionário é uma palavra forte em qualquer contexto. Mas fica agressiva no contexto de um continente, a América Latina, em que o status quo, que o revolucionário deve forçosamente romper, é duro para as maiorias.

É razoável supor que cada corrente política, ideológica ou eclesial puxará a brasa da palavra papal para a sua sardinha. Como eu não tenho sardinha a vender, prefiro olhar o conjunto da obra do papa no Rio de Janeiro/Aparecida para tentar entender o que ele quer dizer exatamente com essa pregação.
Suspeito que o bom revolucionário desejado pelo papa não usará nem o manual de Adam Smith nem o de Karl Marx. Usará um instrumento ainda mais potente, chamado Evangelho.

Francisco deixou muito claro que "levar o Evangelho é levar a força de Deus para arrancar e arrasar o mal e a violência; para destruir e demolir as barreiras do egoísmo, da intolerância e do ódio; para edificar um mundo novo".
Mais claro é impossível, certo?

O grande problema para fazer uma revolução com base no Evangelho é que, no tempo de Jesus, não havia YouTube, não havia redes sociais, não havia nem sequer a mídia convencional para reproduzir fielmente as palavras de Cristo. O que chegou a nós são interpretações feitas pelos evangelistas, por sua vez sujeitas a reinterpretações de teólogos, religiosos e leigos, cada um com seu respectivo viés.

Seja qual for a interpretação que você prefira, o certo é que a política hoje hegemônica, caracterizada pela idolatria do dinheiro, não é o mundo que o papa gostaria que continuasse, conforme ele deixou claro na entrevista a Gerson Camarotti, das Organizações Globo, difundida na noite de domingo (um belo furo).

De resto, a encíclica "Rerum Novarum", lançada no remoto ano de 1891, já continha críticas tanto ao capitalismo como ao socialismo.

Mas a igreja, nesses 122 anos transcorridos, não pôs de pé algum modelo alternativo. E muita gente acha que nem lhe cabe fazê-lo.

Francisco tampouco deu pistas de qual é a revolução que ele quer que os jovens façam. Basta uma revolução espiritual "para edificar um mundo novo"? Basta cada um seguir rigidamente o exigente Evangelho? Ou é preciso revolucionar também as estruturas que sufocam não apenas os jovens, não apenas os velhos, os dois extremos de que o papa se fez porta-voz?

Não tenho nem remotamente a pretensão de responder a essas perguntas e, francamente falando, não conheço ninguém que as tenha.

Não foi o único ponto de interrogação que Francisco deixou em sua visita ao Brasil. Na entrevista à Globo, o papa anunciou para de 1 a 3 de outubro as primeiras respostas da comissão que ele próprio incumbiu de estudar a reforma da Cúria Romana, o coração do Vaticano. Adiantou apenas que algumas coisas que serviram no passado podem não servir hoje em dia.

Que coisas? Primeiras respostas em outubro, quando se começará a saber se Francisco é ele também um revolucionário.
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* Jornalista. Escritor. Colunista da Folha.
Imagem da Internet
crossi@uol.com.br

" Os falsários "


João Pereira Coutinho*

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas

Memórias falsas. Eis a nova descoberta científica publicada em revista da especialidade. Segundo a "Science", pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology conseguiram implantar memórias falsas no cérebro de ratinhos. Já tinham cometido uma outra proeza no passado: apagar certas memórias. Agora, o desafio foi implantá-las. Conseguiram.

Ainda estamos longe do Santo Graal: apagar más memórias e, se possível, conferir a cada ser humano um passado glorioso. Mas o futuro, tal como o passado, promete. Ou não promete?

Robert Nozick (1938-2002), um dos grandes filósofos do nosso tempo, achava que não. No seu magistral "Anarchy, State, and Utopia", Nozick pedia-nos para imaginar a seguinte situação: existe uma máquina do prazer a que os seres humanos se podem ligar. E, por esse simples processo, ter prazer a vida inteira. Quem daria o primeiro passo?

Poucos. Existe algo de incômodo na ideia de uma felicidade eterna, porém falsa. E esse incômodo tem nome: verdade. Ou, para usar uma palavra cara aos românticos, "autenticidade".

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas e que a nossa felicidade seja o resultado de experiências, méritos ou virtudes reais.

Se tudo fosse resumido a critérios de prazer e desprazer, ninguém hesitaria em ligar-se à máquina de Nozick. E, no entanto, a maioria hesita.

Não conheço crítica mais devastadora ao utilitarismo nos tempos modernos. Seguindo o cálculo hedônico, o que interessa é proporcionar a maior felicidade ao maior número?

Não necessariamente, afirmava Nozick. Se a felicidade humana não é humana, ela perde qualquer valor para nós.

E o que é válido para a felicidade é válido para a infelicidade. Até porque a segunda é condição para haver a primeira.

Ironicamente, uma máquina de prazer permanente deixaria até de proporcionar prazer. Porque deixaria de haver contraste com as restantes iniquidades da existência: habitaríamos apenas um estado de normalidade entediante em que nada seria importante porque nada seria valorizado em si mesmo.

Sabemos o que é a felicidade porque sabemos o que é a infelicidade. E também porque aprendemos algo com as nossas infelicidades.

"Aprender" é o verbo: implantar memórias falsas já seria uma aberração ética. Mas apagar as más é mais que isso: é uma aberração epistemológica.

Sofremos como cães pelos erros que cometemos. Escolhas profissionais lamentáveis; amores cultivados e frustrados; atitudes egoístas, covardes, impensadas --quem atira a primeira pedra?

Mas sofremos e, com sorte, aprendemos. E existe algo de libertador (e de redentor) quando seguimos em frente e somos capazes de reconhecer os mesmos dilemas, as mesmas tentações, os mesmos traços de caráter --em nós e nos outros. E, claro, as mesmas consequências prováveis de certos atos e omissões.

É então que o passado, e sobretudo o insuportável passado, se torna nosso tutor privado: ao segredar-nos o que devemos evitar e abraçar com conhecimento de causa.

Todos precisamos de más memórias para evitar cometer os mesmos erros. Apagar essas memórias seria uma forma de nos condenarmos a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos. E a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos.

Talvez eu esteja sendo injusto. Talvez o objetivo das recentes descobertas seja outro: aliviar o sofrimento de soldados em situações de combate, por exemplo, apagando experiências traumáticas e colocando tardes de verão onde antes havia destruição e morte.

Sem falar de vítimas de crimes ou acidentes para quem um "reset" mental seria uma benesse. Sobre esses casos extremos, manda a prudência que nada diga.

Mas será preciso lembrar como as sociedades contemporâneas foram medicalizando os mais básicos sentimentos humanos --o medo, a ansiedade, a angústia-- procurando uma resposta química e imediata para eles?

Se hoje declaramos guerra às tristezas presentes, por que não declarar outra contra as tristezas passadas?
 

 
Quase todos recusamos a máquina de prazer de Nozick. Mas às vezes pergunto se o fazemos mesmo por questões de princípio --ou pela razão mais prosaica de que essa máquina não existe ainda.
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* Colunista da Folha
Imagem da Internet
Fonte: Folha on line, 30/07/2013

segunda-feira, 29 de julho de 2013

"A taketina e seu ritmo transformador "


Ilustração: Mariana Coan

 

Num círculo de pessoas ao som do surdo e do berimbau é possível esquecer os problemas e trazer mais harmonia e alegria para a sua vida.

POR << Liane Alves  >>

 

 
 
 
 

O coração bate. Bum-bum, bum-bum, bum-bum. Sístole, diástole, sístole, diástole, e o sangue circula para cima, para baixo, para cima, para baixo. O Universo se movimenta: expansão, contração, expansão, contração. A respiração pulsa: inspirar, dentro, expirar, fora, inspirar, dentro, expirar, fora. Cante agora o ritmo dessa palavra de acordo com essas referências: TAkeTIna, TAkeTIna, TAkeTIna. Acompanhe com os pés, marcando com mais força a primeira sílaba: TAketina, TAketina, TAketina. Depois, bata palmas numa cadência sua­ve. Por fim, entre nesse fluxo com todo o seu ser, TaKeTiNa, TaKeTiNa...

É assim que vou encontrando meu ritmo e lugar nessa roda de 40 pessoas, num estúdio de dança, em São Paulo. No centro estão o músico e escritor Gustavo Gitti, que vocês conhecem das páginas da Vida Simples, e o alemão Henning von Vangerow, o facilitador de TaKeTiNa que veio dar o workshop por aqui. Gitti bate o surdo. Na verdade, ele deixa cair a baqueta de uma forma relaxada, justa.

Minha atenção volta outra vez para o ritmo e as palavras de Henning ao tocar o berimbau. Ele anda pelo círculo olhando dentro dos olhos de cada pessoa e dizendo frases que fazem retornar a consciência exclusivamente para o presente. "Prestem atenção nas palmas, não precisa bater com força, batam com suavidade, com a força justa, isso, isso..."

Henning se sente à vontade no grupo, é a terceira vez que ele vem para o nosso país, e sua facilidade com o ritmo e flexibilidade com o corpo nos fazem esquecer que ele é alemão. Seu sorriso mostra como se encontra feliz de estar por aqui.

Eu e a tribo

Henning nos convida a pegar o caxixi, instrumento indígena feito de palha com sementes dentro. Progressivamente, os 40 integrantes da roda viram uma só família, unida pelo som da percussão do surdo e caxixi, além das cordas do berimbau. Se no começo o pensamento dispara num falatório descontrolado, aos poucos se instala um silêncio interior, como acontece na meditação.

O estranhamento com a palavra TaKeTiNa, e outras usadas para manter e marcar o ritmo, também fica para trás. Esses mantras foram recolhidos pelo músico alemão Reinhardt Flatischer em suas pesquisas sobre percussão em vários lugares do mundo: Brasil, Japão, Coreia, Índia, Tailândia, alguns países da África... Foi Flatischer que idealizou a TaKeTiNa há 40 anos, com base nesses estudos musicais, princípios de neurociência e elementos da teoria do caos. Ele também descobriu que o ritmo por meio da percussão tem uma grande capacidade curativa, em vários níveis (físico, mental, espiritual), recurso que é amplamente empregado nas culturas tribais. É ele que ainda hoje dá o curso de formação de TaKeTiNa. Tanto Henning quanto Gustavo Gitti cumpriram os três anos do curso.

Duas condições especiais me dificultavam prestar atenção de forma mais continuada: havia passado 11 horas do dia anterior num avião, voltando da França, e estava com aquela sensação estranha de que o corpo tinha chegado, mas a alma tinha ficado para trás. A segunda condição que me impedia de acompanhar o grupo foi o fato de eu ter chegado atrasada e ter perdido as explicações iniciais de Henning quanto aos passos e movimentos que deveriam ser feitos. Peguei o bonde andando.

Rapidamente, essa incapacidade de me sincronizar se mostrou inconveniente. Uma das instruções que não ouvi era dar as mãos na roda e deixar o braço esquerdo relaxado, para que o vizinho do lado esquerdo comandasse os movimentos, e o braço direito ativo, conduzindo o braço esquerdo da pessoa ao lado. Fiz exatamente o contrário, e uma das moças, que me dava a mão, me repreendeu com um "não é assim!" irritado. Socorro. Fiz algo errado e não sei qual é o certo. É o pior dos mundos para mim, que sempre desejo estar em sintonia, no fluxo, na harmonia. Já para ela, as instruções haviam sido claras, e ela não devia ter muita paciência com quem não cumpria diretrizes. Isto é, insegurança de minha parte, rigidez do lado dela. Foi com um sorriso que Henning me explicou depois o que aconteceu: "As pessoas trazem suas histórias de vida. E isso é rapidamente revelado em suas atitudes dentro do grupo". Em outras palavras, TaKeTiNa provoca uma percepção aguçada de si e dos outros, de uma forma bem palpável e direta. Pode mostrar o que escondemos de nós mesmos tanto quanto um divã de psicanalista, embora não seja essa exatamente sua intenção, que é apenas de nos reconectar ao ritmo da vida. Isto é, ela tem uma função terapêutica, sem ser exatamente uma terapia. É um trabalho que pode fazer surgir insights. "Com a TaKeTiNa, desisti de querer bancar o espertinho", reconhece Gitti, que é dono de uma inteligência prodigiosa. Ele afirma que esse método tem a possibilidade de desmontar truques e aparências com muita facilidade.
Ampliação de consciência

A atenção focada ora nos passos, ora nas mãos, ora no momento certo de chacoalhar o caxixi traz um estranho efeito: a consciência começa a se ampliar. Você ouve o som de quem canta, o surdo, o celular que alguém se esqueceu de desligar, seus pés batendo no chão, tudo ao mesmo tempo. Nasce uma consciência abarcante, que não é mais uma atenção que migra para cada ponto da sala a cada vez. Nesse momento, é possível entrar em fluxo. Não se está mais atento apenas ao passo que tem de ser feito. É como se houvesse uma atenção maior, que tudo inclui. Por alguns segundos ou minutos se experimenta estar em perfeita sintonia com todos que estão ali. É maravilhoso. E, quando alguém se cansa, pode deitar no meio da roda.
No círculo final de depoimentos, um deles me chama a atenção. É de um rapaz que disse que finalmente percebeu com aquela experiência que um erro é apenas... um erro. E que errar não precisa causar culpa, vergonha, irritação ou autocondenação. O que ele diz soa como uma música celestial para os ouvidos de uma virginiana perfeccionista como eu. O fato de errarmos tanto, mas tanto, com nossa falta de ritmo nos tornou mais tolerantes com nossos próprios enganos - e os dos outros também. Observo que a moça antes impaciente com minha incapacidade crônica de acertar os movimentos agora sorri para mim. Afinal, um erro é apenas um erro.

" Estranhas Ninharias " < por Diana Corso >

Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo", escreveu Clarice Lispector. "No Jardim Botânico, então, eu fico exaurida, tenho que tomar conta com o olhar das mil plantas e árvores, e sobretudo das vitórias-régias. (...) Tomo desde criança conta de uma fileira de formigas."


Diana Corso
Diana Corso
Diana Corso é psicanalista e, atualmente, atende jovens e adultos em Porto Alegre, onde mora. Junto com o marido, Mário Corso, é autora dos livros Fadas no Divã e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia, ambos pela Ed. Artmed.

 

Como Clarice Lispector, precisamos nos ocupar das pequenas coisas da vida: elas são a Chave para os temas mais importantes


Entendo semelhantes inquietudes: muitos dos nossos sentimentos são pateticamente dedicados a estranhas ninharias. Dá até vergonha de confessar. Lutamos contra os pensamentos que atestam nossa futilidade. Pedimos a nossa mente perturbada: diga logo, o que na verdade está produzindo tanto ruído? Não adianta...

Todo ano, sempre que viajo para minha cidade natal, sei que vou sentir uma pontada de angústia se não reencontrar o cachorro de um vidente que sequer consulto. Chego e vou ver se estão em seu postos, na banquinha de búzios. O velho hippie usa roupas surradas e tem longos cabelos brancos. A seu lado, em uma almofada vistosa, repousa seu cão, também grisalho. Certa vez notei a falta do cachorro e fiquei com um aperto no coração: um havia perdido o outro. Agora o vidente parecia miserável, sozinho. Para minha alegria, no dia seguinte o cão estava de volta. Com tantas preocupações dignas de nota, por que essa?

A cidade onde nasci é para mim lugar de muitas perdas, de lutos, mas também de férias felizes, da minha infância. O pequeno drama imaginário, no qual faço do cachorro e do vidente protagonistas de uma grande amizade, é uma metáfora forte. Eles representam os vínculos que fazem de alguém um ricaço e as perdas que nos depauperam. Por isso temos que nos ocupar das ninharias: elas são a chave para os temas de suma importância.

Clarice tinha a tarefa de olhar as plantas do Jardim Botânico, de cuidar da integridade da fila de formigas. Ela sabia que nossa presença no mundo faz diferença, mas está longe de ser imprescindível. A minha com certeza mais prescindível que a dela. Esse texto, chamado "Eu tomo conta do mundo", termina com a frase: "só não encontrei a quem prestar contas".

Mentirosa, essa Clarice: ela contou para nós. Na crônica e na ficção, soube ser embaixadora da vida mínima, onde pulsam máximas emoções. Fazemos parte da fila de formigas de que ela tomou conta. Somos menos solitários graças a sua generosa sinceridade. É isso que faz um grande cronista, revelar a grandeza de nossas bobagens, sem cometer a descortesia de reduzi-las à razão. Eis meu sonho de consumo ao escrever e analisar nossa vida, que nem sempre sabe ser simples. Continuarei tentando.


Diana Corso é psicanalista. Em parceria com o marido, Mário Corso, escreveu o livro Fadas no Divã

" Sejam Protagonistas " - Editoriais Z.H.

 

Nos últimos dois dias de sua visita ao Brasil, o papa Francisco reiterou a sua principal mensagem aos participantes da Jornada Mundial da Juventude e aos jovens de todo o mundo. Sejam protagonistas!, disse o líder espiritual dos católicos diante de uma plateia estimada em 3 milhões de pessoas na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, e de uma audiência incalculável em todo o planeta. Protagonistas, explicou o Pontífice, para construir um novo mundo, com entusiasmo, alegria e criatividade.

A mensagem serve para católicos e não católicos e tem especial valor para os brasileiros, que já vêm saindo às ruas nas últimas semanas para questionar valores deturpados pela ganância econômica e pelos interesses políticos. “Façam barulho!”, incentivou o Papa, convicto de que está pregando uma revolução do bem e de que é possível direcionar a imensa energia da juventude para a construção de uma sociedade mais humana e mais justa.

Ainda que aos mais céticos possa parecer uma utopia, a própria versão brasileira da JMJ chancela a esperança de que a juventude da comunicação plena possa mesmo edificar uma sociedade do diálogo e da solidariedade.

Durante uma semana, sob mau tempo, milhares de jovens de várias nacionalidades conviveram pacificamente no Rio, desfilando com suas bandeiras e suas mensagens de paz e participando ativamente do grande evento que será repetido em 2016, na cidade polonesa de Cracóvia, segundo anúncio feito ontem pelo Sumo Pontífice – uma homenagem ao papa João Paulo II, em processo de canonização.

A edição brasileira não teve uma organização primorosa. Há registros de gastos exagerados, de falhas de transporte e comunicação e até mesmo de alguns incidentes desagradáveis, como roubos, furtos e conflitos com manifestantes. Mas, considerando-se a dimensão do evento, até que o Brasil se saiu bem, garantindo segurança plena às autoridades e proporcionando uma acolhida digna aos peregrinos de todas as nacionalidades.

Agora, resta esperar que os brasileiros recolham os ensinamentos desta grande manifestação popular para aperfeiçoar ainda mais a nossa hospitalidade, com vistas a outros eventos internacionais que o país receberá nos próximos anos. Da mesma maneira, também é desejável que autoridades públicas e líderes de todos os segmentos da sociedade passem a considerar a voz dos jovens, abrindo-lhes espaço e oportunidades para que sejam efetivamente protagonistas da própria história.
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O poder do papa

 

Luís Fernando Veríssimo*
Os papas já tiveram o poder de reis. A história da Europa é, em grande parte, a história desta divisão de poder e da luta entre os dois absolutismos, o dos papas e o dos monarcas. O Geoffrey Barraclough (historiador favorito do Paulo Francis quando este ainda era de esquerda e escrevia no “Pasquim”) tinha uma tese segundo a qual a rivalidade de Roma com os reis explicava a superioridade da Europa sobre as sociedades orientais, que já eram civilizadas quando a Europa ainda era terra de bárbaros, mas governadas por dinastias antigas, rígidas e incontestadas, e por isso paradas no tempo. Na Europa, quem não quisesse se submeter a uma monarquia tinha a opção de se submeter à Igreja. A troca era de um império teocrático por outro, claro, mas criou-se o hábito de dissidência e de pensamento dialético, prólogo para o desenvolvimento científico que viria depois, apesar do obscurantismo da Igreja. E a opção determinou que a Europa não fosse um império monolítico, e sim uma coleção de pequenos Estados. Acima de tudo, o pluralismo reforçou a independência e a importância das cidades comerciais – Milão, Palermo, Gênova, Veneza, Marselha, Barcelona, Antuérpia, Southampton, Lisboa, as cidades da Liga Hanseática (o primeiro ensaio de um mercado comum europeu) etc., – cuja competição impulsionaria as descobertas e a expansão colonial. Tudo isto porque os papas eram iguais aos reis, inclusive na pretensão de representarem a vontade de Deus na Terra, com exclusividade.

Dizem que certa vez o Stalin reagiu à notícia de que o Vaticano o teria reprovado, por alguma razão, com a pergunta desdenhosa: “E quantas divisões tem o papa?” Desde que perdeu seu poder que rivalizava com o dos reis, o papa só tem a seu dispor a Guarda Suíça, e assim mesmo para fins decorativos. Mas o Vaticano é o grande exemplo de um Estado cuja potência não se mede com armas – pelo menos não com armas convencionais. Atualmente, a julgar pela recepção que ele teve no Brasil, o arsenal do Vaticano se resume no sorriso simpático de um homem. A Igreja não tem mais a relevância política e histórica que teve antigamente, e sacrificou muito da sua autoridade moral com posições retrógradas e escândalos financeiros e sexuais. Mas a emoção das multidões que ele mobilizou serviria como uma resposta ao Stalin.
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* Jornalista. Escritor. Colunista da ZH.
Fonte: ZH on line, 29/07/2013

Como tornar-se mais resiliente

 

Mustafá Ali Kanso*
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                                      Aprendendo a ser
Como vimos no artigo da semana passada, a resiliência psicológica caracteriza a nossa capacidade de enfrentar problemas, superar obstáculos e resistir à pressão de situações adversas sem que haja abatimento significativo de nosso ânimo ou mesmo dano permanente à nossa psicologia, de forma que possamos restituir integralmente nosso estado de equilíbrio emocional original.

Vimos também que a resiliência é apontada pelos especialistas como uma competência – tanto de indivíduos quanto de organizações – e como tal, pode ser ensinada e aprimorada.
Assim cabem duas perguntas determinantes:

Como faço para tornar-me mais resiliente? Como aprimorar minha resiliência para uma resposta mais rápida?

Vamos à primeira pergunta:

É consenso entre especialistas que existem características comuns entre os indivíduos com ampla capacidade de enfrentamento das adversidades, denominados, por esta razão, fatores de resiliência tais como: vontade de viver, autoestima, amor próprio, respeito próprio, esperança, crença, autonomia, iniciativa pessoal, autodeterminação, busca de significado para a vida, autoafirmação, preservação da identidade, curiosidade e capacidade de estabelecer bons relacionamentos.

Se eu quiser me tornar mais resiliente, devo procurar incrementar cada um desses fatores.

Evidentemente é um processo que se inicia na infância e avança muitas vezes de forma natural, reunindo consciência, atitudes e habilidades ativadas nos processos de enfrentamento de situações em todos os campos da vida.

Na vida adulta a resiliência se comporta como uma tomada de decisão quando alguém se depara com um contexto entre a tensão do ambiente e a vontade de vencer.

Essas decisões propiciam desenvolvimento de forças no indivíduo, forças essas arregimentadas com o objetivo claro de se efetuar o enfrentamento das adversidades.

Numa analogia grosseira, poderia se dizer que o indivíduo arregimenta valores morais durante a vida, como alguém que organiza um kit de sobrevivência na selva. No momento de emergência pode fazer uso desses componentes para resolver as contingências.

Cabe também salientar, que apenas o fato de possuir tal kit, já tua como um elemento tranquilizador no momento em que ocorrem as tensões. Daí o sangue frio de um indivíduo resiliente no momento de enfrentamento das adversidades.

Num outro exemplo, o motorista que ao efetuar uma viagem de carro, prepara-se com antecedência, efetuando a revisão no veículo, conferindo o kit de segurança, etc., viaja com maior tranquilidade.

Assim entendido, pode-se considerar que a resiliência é uma combinação de fatores que propiciam ao ser humano condições para enfrentar e superar problemas e adversidades.

Daí, no instante do enfrentamento não faltarem “soluções” em seu “kit de sobrevivência”.

É fácil entender também o porquê de muitos indivíduos resilientes não ficarem “destroçados psicologicamente” antes, durante ou depois do enfrentamento de um grande problema:
  • Primeiro, por que confiam em si mesmos e em sua capacidade de resolver problemas.
  • Segundo, por que sempre dão o melhor de si nesse enfrentamento da adversidade (não cabendo, a posteriori, nenhuma forma de arrependimento ou remorso).
  • Terceiro, por que possuem a consciência de seu verdadeiro tamanho.
Nessa constatação fica evidente que existem problemas cuja solução é coletiva e/ou depende de habilidades muito além de sua capacidade, daí a necessidade de capacitação e do trabalho em equipe.

Fórmulas mágicas x aprendizado

Também é evidente que não existem fórmulas mágicas ou receitas milagrosas para que um indivíduo se torne resiliente da noite para o dia.

Aliás, a maioria das pessoas peca exatamente nesse quesito:

- Procura por uma chave mestra capaz de resolver todos os problemas da vida.

Muitos descobrem às duras penas que isso não existe, e assim perdem as esperanças, tornando-se amargos, pessimistas e derrotados.

Outros, atemorizados perante a vida, se entregam a toda sorte de crendices e superstições, tentando delegar a outros aquilo que é unicamente de sua responsabilidade.

O determinante, a meu ver, é buscar o esclarecimento, como diz Immanuel Kant em seu idealismo transcendente.

Algo como aprender a fabricar chaves.

O esclarecimento, nesse viés, é aprender a fazer uso de seu próprio entendimento. De sua própria capacidade de resolver problemas.

Afinal, essa é uma das razões de nossa razão. Resolver problemas. Afinal, para que serve nossa inteligência?

Para Kant, os maiores problemas nesse enfrentamento, no desenvolvimento dessa capacidade do ser humano de “caminhar com as próprias pernas” é a preguiça e a covardia.

Para a maioria dos seres humanos é bastante cômodo permanecer na área de conforto e delegar a outros que pensem, que decidam e que façam por ele aquilo que nega a si mesmo.

(Eis aí o método de fabricar chaves: pensar, decidir e fazer – enquanto muitos usam o: delegar, postergar e fugir).

Preparar-se para a vida e enfrentar as adversidades exige esforço – por isso muitos se perguntam: para quê se esforçar? Porquanto ainda existam outros a quem se possa delegar a solução de nossos problemas? Ou, senão, pelo menos inferir a culpa de nossas desgraças.

Segundo Kant, os seres humanos quando permanecem nessa “menoridade”, são incapazes de tomar suas próprias decisões e de fazer suas próprias escolhas.

Daí serem derrotados e destroçados perante a menor dificuldade.

É importante frisar que o direito de tomar suas próprias decisões denomina-se liberdade – essa capacidade de ser causa e não apenas efeito.

Assim, se alguém me pede uma dica de como nos tornarmos mais resilientes eu respondo que o primeiro passo é refletir sobre esse questionamento Kantiano e colocar, a cada dia, mais coragem e mais vontade em nossa caminhada pela vida.

E como reza a sabedoria popular toda grande caminhada se inicia com um primeiro e decisivo passo.
E os demais passos que se sucedem e que sustenta a caminhada?

Bem, esse já é um assunto para um próximo artigo. Não perca!
 
* Mustafá Ali Kanso é escritor, professor, engenheiro químico, empresário da mídia educacional e divulgador científico em programas culturais da TV.
mustafa@hiperciencia.com
Fonte: http://hypescience.com/

“Quando só o papa salva”


Marcelo Barros*


“Só o papa salva” é a manchete de primeira página do O Globo deste sábado, 27 de julho, penúltimo dia da Jornada Mundial da Juventude. Essa manchete do jornal carioca joga propositalmente com a ambiguidade de sentidos. Quem lê a notícia descobre que se está tratando da desorganização da jornada a qual o prefeito do Rio deu nota zero. No caos que a jornada provocou na cidade, o papa é o único elemento que deu certo, tanto em sua comunicação direta e simpática, como por sua disponibilidade e energia em cumprir pontualmente todos os compromissos e agradar a todos os que o esperavam e queriam encontrá-lo. De todos os modos, por falar em salvação, o título não parece distante daquilo que é proposto e acreditado pelos organizadores e pela maioria dos/das participantes da Jornada Mundial da Juventude. É um evento criado pelo papa João Paulo II em 1985 para atrair a juventude do mundo para a Igreja Católica tradicional, para não dizer tradicionalista, no sentido de volta à velha Cristandade dos séculos medievais com algumas pinturas de nova (alguns falam em neo-cristandade): Cristandade centralizada e simbolizada pela figura monárquica do papa. Conforme o desejo de João Paulo II e o pensamento do Vaticano, o papa é a única estrela do evento. Se não fosse o papa, nunca a Jornada da Juventude reuniria um milhão e meio de pessoas. Por outro lado, a novidade desta Jornada do Rio é o papa Francisco. A pergunta que muita gente se faz é o que significa esse papa com seu estilo simples e simpático nessa estrutura monárquica, absolutista e, ao mesmo tempo, fossilizada e em grave crise do Vaticano e da hierarquia eclesiástica católico-romana.
Não podemos esquecer: a própria figura do papa, como ele se apresenta hoje, chefe de Estado e sumo-pontífice, é de Igreja Cristandade. Ele pode falar no evangelho e pedir fé em Jesus, mas, seja quem for o papa, a centralização que provoca em sua pessoa e em cada gesto seu (mesmo se for simpático e evangélico), no lugar de ajudar as pessoas a se aproximarem do evangelho, como pede justamente o papa Francisco, acaba reforçando a estrutura eclesiástica e patriarcal e não o testemunho do Cristo simples, pobre e libertador. Enquanto o papa não renunciar a ser chefe de estado e monarca absoluto da cristandade medieval, pode fazer esses gestos simpáticos de deixar papamóvel e andar de jipe ou querer estar mais perto do povo. Entretanto, será sempre um rei, como rei será visto e como rei, mesmo rei humilde e simpático, mas rei, se comportará.
A Jornada fala em missão. Seu lema é “Ide e anunciai. Fazei discípulos em todas as nações”. No entanto, a compreensão sobre missão é estritamente religiosa e espiritualista. Não há nenhuma abertura para a missão do jovem na escola e na universidade ou no trabalho. Nada ecumênico, nenhuma referência a outras Igrejas, outras religiões ou simplesmente à juventude do mundo que não acampa em nenhuma catedral religiosa. E mesmo a concepção dessa missão religiosa é estritamente tradicional, baseada em devoções dos tempos de nossos avós e anterior à renovação da Igreja promovida pelo Concílio Vaticano II.
Durante a semana, ligada à Jornada, o pessoal mais ligado às pastorais sociais e CEBs, organizaram a Tenda dos Mártires, implantada em uma paróquia da zona norte do Rio, com debates e celebrações no estilo da caminhada da Igreja dos mártires e da libertação. Longe de Copacabana e dos principais eventos, só foi lá quem já estava ligado.
Sem dúvida, nesses dias, companheiros/as mais ligados à Igreja das bases, tentamos aproveitar uma ou outra palavra de Francisco, aqui e ali, para ressaltar o seu apoio aos empobrecidos e seu desejo de um mundo mais justo e igualitário. E o papa disse palavras assim. Mas, como transpor a própria cultura na qual isso é dito e assim essas palavras se tornarem mais eficazes?
Na Via Sacra encenada na Jornada, de um lado liam textos da profecia do Servo Sofredor de Isaías (sobre o messias humilhado e oprimido) e, ao mesmo tempo, embaixo do palco, a Cruz peregrina tinha uma guarda de honra da marinha brasileira ou do exército marchando militarmente ao seu lado, enquanto os atores da Globo recitavam os textos.
Nessa jornada, ao inserir-se nessa Igreja tão tradicional e fechada, o papa ajudou porque, através de seus gestos e palavras, propôs que ela se torne mais humana e próxima das pessoas. O papa exortou os cristãos a não perderem a esperança, a manterem a alegria e a não cederem à cultura do individualismo. Tomara que ao menos isso fique como proposta do papa durante essa semana e padres e bispos obedeçam a esse conselho.
Ontem, entrei em uma farmácia para comprar uma aspirina e ouvi a discussão de dois homens na fila do caixa. Um protestava pelo fato de um evento particular de uma Igreja causar tanto dano ao trânsito à vida da cidade (dois dias de feriado municipal). E o outro respondeu: “Tem paciência porque isso é o canto do cisne de uma Igreja que está morrendo e não aceita reconhecer isso”. Ouvi aquilo, mas discordei. Justamente, ao contrário, minha impressão ao ver essa semana toda centrada em devocionalismos baratos ou meio vazios e em uma papolatria superficial e inútil, uma coisa me impressionou: a teimosia da fé de muita gente, (tanto pessoas jovens, como adultas), que, apesar de tudo e contra tudo, se mantém como base para comunidades de fé, mais sólidas e autônomas, centradas na liberdade do Espírito que “sopra onde quer, ouvimos a sua voz, mas não sabemos de onde vem, nem para onde vai” (Cf. Jo 3, 7).

sexta-feira, 26 de julho de 2013
Estou acabando de acompanhar pela rede Globo a via sacra com o papa e a multidão de um milhão de jovens (1.500.000?).
A via sacra é uma devoção que me lembra minha infância e um catolicismo mais fixado na cruz e na morte de Jesus do que na Páscoa e na ressurreição (não estou com isso querendo separar a morte e a ressurreição, mas superar o isolamento no aspecto doloroso e sacrificial). É popular e por isso compreendo que pastoralmente a Igreja a preserve. Mas, justamente o que achei dessa que está acabando de se realizar na praia de Copacabana é que não tem nada de popular e tem alguns aspectos contraditórios com a mensagem que deseja passar. Em primeiro lugar, a tal Cruz peregrina, que na Jornada representa Jesus, é ladeada por um batalhão da marinha ou de algum outro grupo militar, devidamente fardado e marchando militarmente. Que forma estranha de honrar a cruz de Jesus que morreu para trazer ao mundo paz e reconciliação.
Além disso, entre os jovens que carregaram a cruz durante toda a via sacra, nenhum/a negro/a, nenhum com cara de pobre. Todos vestidos de bata, mas alvos ou brancos e cara de classe média alta... Posso estar enganado. Todas as pessoas que proclamaram textos bíblicos (curtos e bem escolhidos) o fizeram de longo, ou de paletó e gravata... A maioria artistas da Globo (Ana Maria Braga, Eriberto Leão, Cássia Kiss, Elba Ramalho, etc). As que faziam oração representavam um seminarista de batina e fala bem alienada, uma freirinha - coitada - suspirando piedade. E para não ser tudo assim, havia em uma das estações alusões à pastoral carcerária, mas sem dizer nada sobre ela Parece que havia carcerários diante do cenário, Não percebi porque estavam todos de terno e gravata... Algumas orações faziam alusão a problemas de hoje (evangelizar o mundo virtual da internet, vencer a opressão econômica sobre o jovem, o problema dos doentes terminais, mas tudo tinha um tom individualista de alguém que expressava sua piedade e a multidão de juventude em nenhum momento foi convidada a participar de nada. Só olhar e admirar.
A Via Sacra teve uma dramatização artística de bom gosto, com música clássica tocada por uma orquestra maravilhosa, textos musicais belíssimos e atores excelentes. Mas, em termos de oração, me pareceu nada participativa. E a própria grandiosidade e majestade do cenário - um palco para mil pessoas e que colocava o papa sentado em uma cátedra a oito metros de altura, tudo isso tornava difícil conciliar o que se falava sobre entrega da vida e amor de Jesus e aquilo que se via - o palco tomado por bispos e cardeais vestidos de preto e vermelho - o papa parecia de todos o mais simples - com sua batina branca - e em algumas imagens que o mostravam durante a via sacra - posso estar enganado - tive a impressão de que ele tirava um cochilo - o que fazia muito bem - que ninguém é de ferro.
Agora estou escutando a homilia do papa Francisco. Uma palavra profunda e como sempre afetuosa. Tocou em vários problemas concretos. Propôs uma oração pelos jovens, vítimas do incêndio da boate de Santa Maria. Falou dos pais e mães que têm filhos e filhas dominados pela droga. Falou da juventude decepcionada com a política oficial e a corrupção. Fez um apelo à esperança e à sairmos de nós mesmos e sermos solidários.
Foi a homilia mais viva e mais direta que eu senti dele nessa semana.
Conversa, sexta feira, 26 de julho 2013
Uma primeira lição que tiro dessa minha participação (mesmo indireta) na Jornada Mundial da Juventude não diz respeito à jornada como tal e sim ao país em que vivo. Se eu puder, fugirei do Brasil nos dias da próxima copa de futebol em 2014. Meu Deus, que desorganização e falta absoluta de estruturas para acolher muita gente. Ontem, pelo fato de que na praia de Copacabana, se reuniria a multidão dos jovens (há quem diga que chegam a um milhão e meio) junto com o papa Francisco, no Rio, ninguém mais fazia nada nem nada funcionava. Metrô parado das 16 h até às 21 h. Não havia ônibus nem mesmo taxi podia entrar em Copacabana. Eu voltava do meu trabalho no morro de Sta Marta, já mais cedo para evitar isso e fiquei de 18 às 21 horas esperando em Botafogo que abrissem o metrô e eu pudesse embarcar. Assim mesmo, não podiam parar na estação mais próxima de onde estou hospedado e com isso tive de descer na estação seguinte e percorrer cinco ruas absolutamente lotadas de gente (todos muito pacíficos e sem nenhum problema), mas hoje decretei que não tenho condições de passar pelo mesmo problema. Trabalho aqui e não vou sair para fazer gravações.
Até aqui, sinto que a simpatia e a simplicidade do papa Francisco não o levaram a nenhuma atitude ou palavra profética. Ele diz que devemos fazer uma sociedade solidária, mas nenhuma palavra sobre como seria isso. Por que não falar da economia solidária ou mesmo que fosse da tal economia de comunhão proposta pelo grupo católico dos folcolarinos? Nada. Tudo vago e genérico. Esteve na favela de Manguinhos, falou no campo de futebol, onde na parede em frente a qual ele estava falando tinha uma grande foto de Dom Oscar Romero. Poderia ter feito uma alusão ao arcebispo mártir. Nada.
Foi a uma capela da favela onde não é paróquia e ali se reune uma comunidade eclesial de base. Seria a oportunidade para apoiar as Cebs. Nada.
Será que isso é uma estratégia de começo de ministério para não bater de frente com a cúria romana e com o papa emérito? Não sei.
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* Monge beneditino. Escritor.
Fonte: http://www.marcelobarros.com/

Que papa é esse?

 

jmvaggione
Quis a Providência Divina, diriam alguns, que a primeira visita do primeiro papa latino-americano da história fosse ao Brasil, maior país católico do mundo. E o papa Francisco fez jus à singularidade desse acontecimento. Em imagens que encheram os olhos de fiéis de todas as partes do mundo, o pontífice argentino Jorge Mario Bergoglio desfilou em um carro simples de passeio, carregou a própria mala e se comunicou em linguagem afetuosa e coloquial, pontuada por expressões locais. "Deus é brasileiro e vocês ainda queriam um papa?", disse Francisco, brincando até com a proverbial
rivalidade nacional com os hermanos.

À poderosa carga simbólica dessa aparição, o papa agregou um conteúdo a um só tempo renovador e austero. Reafirmou a opção preferencial pelos pobres, até outro dia considerada subversiva na região e passível de decretação de "silêncios obsequiosos" por parte da Igreja. Condenou a corrupção de autoridades, empresários e cidadãos. Criticou os "ídolos passageiros" do dinheiro, do consumo e do prazer. E exorcizou o discurso em voga sobre a liberalização do uso de drogas.

"Até o momento, o papa Bergoglio começa a construir uma linha simbólica de alteridade, reposicionando a Igreja na direção do Concílio Vaticano II e devolvendo a pobreza ao centro das preocupações do Vaticano", analisa o sociólogo Juan Marco Vaggione, conterrâneo do papa e estudioso das intersecções entre a religião e os direitos sociais e civis no mundo. Ainda não se sabe, porém, como e quanto o novo gestual do papa "vai impactar as políticas concretas da Igreja Católica".
Pesquisador da Universidade Nacional de Córdoba e do Instituto Conicet, na mesma cidade, Vaggione formou-se em direito na Argentina, obteve Ph.D. em sociologia na New School for Social Research de Nova York e atua há anos junto à ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Na entrevista a seguir, o sociólogo mostra como a eleição – e as escolhas – de um papa podem ser entendidas no contexto mais amplo dos embates de uma instituição global e sua inserção no mundo moderno. E sugere que o atual pontífice adotará uma postura moderada, entre o conservadorismo da cúria romana e anseios progressistas manifestados pela própria comunidade católica.

Eis a entrevista.

Nos anos 1980, quando João Paulo II esteve no Brasil, 89% da população se dizia católica. Hoje, o número não chega a 57%. Que significados isso traz à visita?
A visita de um papa precisa ser lida em um duplo registro: ela é, ao mesmo tempo, a visita de um líder religioso e de um ator político. Do ponto de vista estritamente religioso, é a visita do líder de uma instituição que vê em crise a influência e a legitimidade que tinha na América Latina, e no Brasil em particular. A própria eleição de Bergoglio como papa expressou, entre outras coisas, essa necessidade da Igreja Católica em reconquistar fiéis nessa parte do mundo. Trata-se também da visita de um papa que é também chefe de Estado do Vaticano, que de alguma maneira revela as fissuras dos nossos sistemas políticos frente à influência do religioso como lugar de encantamento. Ou seja, o êxito de uma figura religiosa e a atração política que ela exerce deixam evidentes as dificuldades do sistema político em manter seu próprio encanto e legitimidade.

Teólogos não alinhados com Bento XVI, como o alemão Hans Küng, manifestaram entusiasmo com o novo papa, ressaltando a escolha do nome ‘Francisco’ e seu despojamento como sinais de ruptura. São mesmo?
Concordo, em um plano simbólico. Até o momento, o papa Bergoglio começa a construir essa linha simbólica de alteridade, reposicionando a Igreja na direção do Concílio Vaticano II e devolvendo a pobreza ao centro das preocupações do Vaticano. E é indiscutível o efeito poderoso que isso tem tido. Resta saber como esse plano simbólico, que é muito importante e eu não subestimo de forma alguma, vai impactar as políticas concretas da Igreja Católica como instituição religiosa.

Em um artigo no Le Monde Diplomatique o sr. sustenta que tanto João Paulo II quanto Bento XVI ocuparam-se em ‘criticar a modernidade para reinserir nela uma Igreja Católica poderosa, visível e ativa que amplie suas estratégias de intervenção política’. Como se deu isso e qual é o cenário hoje?
Quando se analisa as eleições dos papas sob uma perspectiva histórica, não como ações da vontade do Espírito Santo, a Igreja emerge como uma das instituições mais globalizadas que existem. Desse ponto de vista, a eleição de um papa implica na eleição de um líder político global que responde a momentos determinados. A chegada de João Paulo II ao topo da hierarquia católica pode ser lida como a eleição de um papa polonês que respondeu à tensão geopolítica forte entre capitalismo e comunismo. É o momento em que a Polônia se converte em pedra central para o desmantelamento da ex-União Soviética. De maneira semelhante, o papa alemão que o sucedeu é aquele que se volta para a Europa laica, como símbolo de um fenômeno também global da retirada do sentido religioso da política e da esfera privada dos cidadãos. Bento XVI é aquele que vem para recompor a esfera de influência da religião na Europa Ocidental, ressaltando as raízes cristãs da constituição europeia. Agora também, com a chegada de um papa latino-americano, não devemos ignorar a dimensão geopolítica dessa escolha – que se explica, por um lado, pela quantidade de fiéis existentes nessa parte do mundo e, de outro, pelo avanço de outras denominações religiosas na região. O fato de sua primeira visita ocorrer no Brasil coloca isso tudo ainda mais em evidência.

O sr. diz que três fenômenos da modernidade foram combatidas pela Igreja nos últimos anos: o ateísmo, o laicismo e o relativismo moral. Francisco vai travar as mesmas batalhas?
Creio que Francisco não poderá ficar de fora dessas batalhas. Sobretudo daquela contra o que a Igreja chama de relativismo moral e compreende questões reprodutivas e de gênero. A doutrina católica está muito entranhada pela ideia de uma moral única sobre essas questões. A sensação que tenho é de que vai haver uma continuidade entre Ratzinger e Bergoglio no que diz respeito a uma moral sexual conservadora. E ocorrerá a dupla articulação de que falamos em relação à América Latina, região tão caracterizada pela desigualdade social: a reaproximação da pobreza não só em nível doutrinário, mas em termos de estratégia para recuperar um rebanho que vem se perdendo especialmente nos setores mais pobres da população.

Há poucos dias, uma pesquisa encomendada pela ONG Católicas pelo Direito de Decidir mostrou que católicos brasileiros têm visões às vezes opostas à da Igreja. 82% deles apoiam o uso da pílula do dia seguinte, 56% defendem a união entre pessoas do mesmo sexo, 72% aprovam o fim do celibato para padres e 62% são à favor da ordenação de mulheres. A Igreja leva isso em conta?
O hiato entre a doutrina oficial da Igreja Católica e as convicções dos fiéis detectado pela pesquisa é característico da forma de ser católico na América Latina. Há uma distância abissal entre o que a doutrina exige e a forma de se viver as crenças entre nós. Convivem na região uma identificação ainda forte com o catolicismo e um posicionamento mais aberto para a liberdade e a diversidade sexual. Uma mudança política e social que afeta, inclusive, a hierarquia religiosa. É um desafio importante com o qual o papa Francisco terá que se defrontar. Pessoalmente, não acredito na possibilidade de que ele faça grandes mudanças na postura doutrinária nessa direção. Há quem fale de uma maior flexibilidade da Igreja em relação aos recasamentos e divórcios heterossexuais, mas não tenho expectativas de que esse papa possa acomodar muito mais que isso.

Em seu discurso no Brasil o papa sinalizou mais diálogo com outras religiões, mas manifestou rigidez em temas como a liberalização do uso de drogas – defendida pelo ex-presidente Fernando Henrique. Francisco será mais ou menos conservador que Bento XVI?
Para responder à pergunta, temos de considerar o papel de Bergoglio no debate sobre o casamento gay em 2010 na Argentina. Na ocasião, ele demonstrou o que alguns chamaram de "posição moderada" – até flexível em relação a mudanças na legislação estatal, mas claramente conservador no que concerne à moral. Ele não encarnou naquele momento a figura de alguém capaz de promover mudanças na hierarquia religiosa. O que o desempenho de Bergoglio na Argentina deixa ver sobre seu perfil é uma reconexão com o carisma de João Paulo II, com a Igreja dos pobres do Concílio Vaticano II, aliadas à defesa de uma moral sexual conservadora.

Não é curioso que, no mesmo discurso, o papa tenha criticado o culto ao prazer, no exato momento em que o representante por ele indicado para o Banco do Vaticano, monsenhor d. Battista Salvatore Ricca, é acusado de ter um caso com um capitão da guarda suíça – no primeiro escândalo de seu pontificado?
Totalmente. E, nesse sentido, mesmo as hierarquias católicas da ala mais formal da Igreja vêm mostrando esse paradoxo. O ponto é: como a Igreja pode sair dessa contradição? Mantém o discurso de uma moral posta em dúvida por boa parte dos fiéis e até por representantes da instituição ou flexibiliza os dogmatismos sobre o comportamento e a sexualidade? E aqui não falamos só de temas delicados como o casamento gay ou a interrupção da gravidez, mas dos mais correntes, como o sexo antes do casamento e o uso de anticoncepcionais. Entretanto, a Igreja Católica tem sabido manejar o duplo discurso de proibir em público o que se faz em privado. Exemplos disso são os recentes escândalos que atingem a instituição.

Em sua opinião, a polêmica sobre a suposta colaboração do então bispo Bergoglio com a ditadura militar argentina foi esclarecida?
Esse é um tema complexo. O que a mim me surpreendeu foi a forma como, Bergoglio eleito papa, houve a necessidade imediata de esclarecer o episódio, de se afirmar sem demora que não houve tal colaboração. Ao orgulho nacional de termos um papa argentino sucedeu-se uma tentativa de "branqueamento" do passado por parte de setores os mais diversos. Então, "Bergoglio não foi tão conservador no debate sobre o casamento igualitário", "o que se diz dele durante a ditadura tampouco é real", etc. Parecia ser preciso tornar imaculado o papa argentino. O que mostra o quanto as classes políticas ainda sustentam seu prestígio em posicionamentos religiosos. Mais do que especular se Bergoglio colaborou ou não com a ditadura, o que me espanta é a dificuldade que a Igreja Católica Argentina ainda tem de realizar uma autocrítica sobre seu papel no apoio e legitimação do regime militar.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff viu na ‘Igreja pobre, humilde, que dialoga com o povo’ de Francisco a reabilitação da Teologia da Libertação, que vicejou na América Latina nos anos 1950 e 60. O sr. acredita nisso?
Creio, como disse, que o papa Francisco tenha a intenção real de voltar a situar a pobreza como sujeito da prédica e da intervenção da Igreja Católica no mundo. E que Leonardo Boff e outros teólogos progressistas têm razão ao identificar nisso um novo sentido para a instituição. Cabe perguntar, no entanto, qual será a construção simbólica feita em torno da pobreza. Ao redor de um conceito podem estar os mais distintos conteúdos ideológicos. Parece-me que a limitante de Bergoglio e da forma como vai armando o seu papado segue sendo um "corpo da pobreza" que não é reconhecido nas dimensões que se conectam com a sexualidade, a reprodução e a liberdade desse corpo. A Teologia da Libertação foi, sem dúvida, uma das tradições mais ricas e justas que a Igreja Católica já produziu. Mas se ela não for pensada em suas intersecções com as novas teologias feministas, terá caráter limitado. A velha Teologia da Libertação também pode ser patriarcal e homofóbica, uma vez que nos anos 1960 tais questões não estavam inseridas da mesma maneira na agenda política. Reinscrever a pobreza como sujeito histórico é um grande avanço, mas para que ele seja mais justo não se devem desconsiderar as desigualdades de um sistema patriarcal que priva de direitos as mulheres e nega autonomia e liberdade aos corpos.
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A reportagem e a entrevista é de Ivan Marsiglia e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 28-07-2013.
Fonte: IHU on line, 29/07/2013