quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Muito além da compra parcelada sem juro

- RAQUEL BALARIN

Valor Econômico - 28/02

O avanço da tecnologia e a queda na taxa de juro no país estão provocando mudanças profundas no sistema financeiro brasileiro, uma pequena revolução silenciosa, com dimensões que ainda passam despercebidas. Nas últimas semanas, a discussão sobre compras parceladas "sem juros" no cartão de crédito tomou conta das páginas de jornais e sites, mas a medida é só uma pequena amostra do que está em discussão.

No Brasil, os bancos são, acima de tudo, pragmáticos. Defendem seus negócios e seus ganhos, mas quando percebem que a maré começa a puxar fortemente para outro lado, deixam-se levar e abraçam as novas ideias como se tivessem sido favoráveis a elas desde o princípio. Foi assim, por exemplo, com o crédito consignado, que começou em bancos menores, em Minas Gerais, com forte apoio do PMDB na época. Foi assim, também, com o recente movimento das "fintechs". Hoje, os dois principais bancos brasileiros, Itaú e Bradesco, mantêm centros dedicados a start-ups e empresas de Inovação, o Cubo e o Habitat.

A maré mostrou aos bancos que viria dessas empresas de tecnologia a mais nova onda de concorrência no setor, e não de instituições financeiras tradicionais. Abraçar ideias inovadoras e apoiar empresas menores permitiram que as instituições financeiras brasileiras começassem a se preparar para uma briga muito maior no horizonte: a da disputa com as grandes companhias de tecnologia, como Amazon, Google, Facebook e Apple. 

Assim como os veículos de comunicação, que tiveram de aprender a trabalhar com essas empresas em um modelo de competição e de parceria ao mesmo tempo, também os bancos estão no mesmo caminho. Na última semana, por exemplo, o Bradesco anunciou sua parceria com o Google Pay, para correntistas com cartão de crédito Visa. O aplicativo dos smartphones com sistema operacional Android permite pagar compras sem a necessidade do cartão físico ou da digitação de senhas. Basta aproximar o celular da maquininha do lojista - a conectividade por NFC permite a comunicação sem fio e com segurança entre dispositivos próximos. A Apple deve em breve lançar o mesmo recurso no Brasil -- em seu site, é possível ver telas com a logo do Itaú aplicado.

O Banco Central está acompanhando bem de perto a evolução tecnológica e tem se dedicado a realizar uma série de mudanças nas regras para permitir que esses avanços não fiquem apenas no ambiente dos bancos, mas que cheguem aos consumidores e às empresas. O segmento de cartões tem recebido uma atenção especial. O objetivo é que o cartão de débito seja de fato utilizado como meio de pagamento. Para ampliar seu uso, será preciso reduzir a taxa cobrada, hoje um percentual sobre o valor da operação e dividida em três componentes: o "fee" da bandeira, um custo de intercâmbio cobrado pelos bancos e um custo cobrado pelo adquirente. Com a entrada de novas empresas no mercado de adquirentes, como Eleven e Stone, uma parte dessa taxa já se reduziu. Mas ainda é preciso discutir como reduzir a taxa de intercâmbio cobrada por bancos e que é negociada entre a bandeira do cartão e a instituição financeira.

Em países como os Estados Unidos, a taxa cobrada no débito é mista, ou seja, tem um valor fixo por operação e um percentual sobre o volume da operação - US$ 0,20 mais 0,05% sobre operação. A cobrança passa por regulamentação do governo. Um especialista explica que há espaço para que o Banco Central brasileiro pressione as instituições a reduzir as taxas porque em uma venda com débito, o dinheiro está disponível na conta corrente do comprador. Não há risco de crédito. "Não faz sentido termos taxas para débito e crédito tão próximas se o risco de um meio e outro é tão diferente." 

No caso do cartão de crédito, há muita polêmica sobre um possível fim da compra parcelada no cartão sem juros. O foco da discussão, entretanto, é o de dar transparência para o juro que está embutido na operação - seja ele pago pelo consumidor ao lojista ou ao banco que passaria a oferecer uma linha de crédito no cartão. Da mesma forma como o fim da hiperinflação levou a um ciclo de ajustes em instituições financeiras e no comércio, também a nova fase de juros mais baixos deve provocar uma reacomodação. Algumas grandes redes de varejo têm hoje uma parte importante de seus ganhos atrelados à cobrança de juro em vendas parceladas, no cartão de crédito ou não. É natural, portanto, que haja uma certa queda-de-braço entre grandes lojistas e bancos para ver quem vai ficar com esse ganho. O desenho final pode vir a ser o de uma compra ter um preço mais baixo para o pagamento à vista e dois preços a prazo na cobrança no cartão - um com a taxa de juro cobrada pelo lojista (financiamento loja) e outro com a taxa cobrada pelo banco que concedeu o crédito. Nada ainda está definido. Vários desenhos estão sendo estudados e em todos eles se prevê uma redução dos prazos de repasse da compra para o lojista, hoje de 30 dias.

Para as pessoas jurídicas, o governo tem trabalhado desde o ano passado na formatação da duplicata eletrônica - que agora entrou no pacote de medidas do presidente Michel Temer para substituir o vazio deixado pela reforma da Previdência. A duplicata estará ligada aos bancos de dados fiscais das secretarias estaduais de finanças. O objetivo é casar a operação física com a transação comercial e financeira, sem a necessidade de validação em cartórios. Reduz-se a burocracia e o custo (com esperada redução nas taxas cobradas em antecipação de recebíveis) e se amplia a transparência e a formalidade.

A duplicata eletrônica será opcional - a tradicional continuará a ser aceita país afora. Afinal, como diz uma fonte que acompanha o processo, a tecnologia avançou muito e continua avançando, mas não dá pra esquecer que o Brasil tem grandes diferenças regionais. Não é possível comparar a infraestrutura tecnológica da avenida Faria Lima, em São Paulo, com a de uma cidade no interior da Amazônia. O que é possível dizer é que, em cinco anos, o relacionamento do consumidor e das empresas com os meios de pagamento e de crédito será totalmente diferente do desenho atual.

        Intervenção: um mal necessário?

Maria Clara Lucchetti Bingemer*
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O Estado do Rio de Janeiro está sob intervenção federal. O presidente da República nomeou interventor o general de Exército Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, sediado na Cidade do Rio.  O oficial assumirá o comando das forças de segurança e da ordem no Estado, a saber: as Polícias Militar e Civil e o Corpo de Bombeiros.  Seus comandados do Comando Militar do Leste serão mobilizados para interferir nos problemas de segurança, respondendo apenas ao Presidente da República. 
 
Ninguém nega que o estado precisa encontrar um caminho para resolver a situação de insegurança em que se encontra.  Com um governo inoperante, uma prefeitura da cidade do Rio ausente e o poder paralelo do tráfico armado até os dentes e cada vez mais organizado, as mortes se multiplicam e os cidadãos não conseguem sequer exercer seu direito de ir e vir com um mínimo de tranquilidade.

Porém é fato igualmente inegável que intervenção militar desencadeia em nossa memória recente recordações – e, portanto, reações – muito mais negativas que positivas.  O Brasil conheceu por décadas o gosto amargo da intervenção militar feita ditadura, com um saldo irreparável de violência, medo, torturas e morte.  Continuam sendo encontradas ossadas de uma geração ferida de morte por aqueles que saíram dos quartéis para garantir a ordem que acreditavam perturbada e tardaram muito em retornar a eles. 

Por isso, intervenção é palavra ambígua e movediça. Com origem no vocábulo latino interventĭo, intervenção é formada pelos vocábulos “inter” e “venire”, e indica a ação ou o efeito de intervir.  E isso faz referência direta a diversas questões onde identidade e alteridade se cruzam e se esbarram mutuamente. Abrange desde o ato cirúrgico que, em medicina, destina-se a solucionar um problema de saúde com a ciência exercida na prática, até o ato de dirigir os assuntos que correspondem a outro, seja este pessoa física ou entidade coletiva. 

Uma intervenção militar supõe o fracasso da sociedade civil em resolver seus próprios problemas, sua incapacidade de controlar uma situação que está sob sua alçada.  Outra esfera da sociedade vem então e intervém para solucionar aquilo que a sociedade não consegue administrar.  Assim foi nos tristes idos de março de 1964.  Acreditando o Brasil em perigo diante do comunismo internacional, o Exército interveio e assumiu o controle do país. Quando se trata de relações internacionais, a intervenção diz respeito a dirigir, de forma temporária, os assuntos internos de outra nação. 

Na recente história da humanidade, podemos contar várias destas intervenções, protagonizadas por distintas potências estrangeiras, como a Alemanha nazista e a Rússia comunista.  Ambas fracassaram em seus intentos e a médio ou longo prazo foram derrotadas e substituídas por regimes democráticos.  Ainda que essas democracias não sejam perfeitas, os povos que se encontravam sob o tacão intervencionista preferem as dificuldades que têm hoje do que se sentir invadidos em casa e ver sua soberania atacada. 

Os Estados Unidos – muitas vezes com o auxílio de outras potências mundiais – têm se especializado nessas intervenções, que se revelam tanto militares como políticas.  Na América Latina, contamos mais de um caso, como o Panamá do General Noriega, El Salvador, a Nicarágua entre outros.  Hoje, o Oriente Médio – Iraque, Afeganistão, etc. -  é o palco principal dessas intervenções que pretendem forçar uma mudança de rumo político com o pretexto da segurança mundial e do bem-estar do povo local.  

E o que temos visto como consequência é um constante recrudescimento da violência e dos fanatismos os mais diversos como resposta de povos que não desejam ser tutelados por outros povos e reagem negativamente a este tipo de intervenções que ameaçam sua autonomia. 

É o profundo desejo da sofrida população carioca que a intervenção federal agora decretada não acrescente mais sangue, mais luto e mais dor aos que já povoam diariamente seu cotidiano.  Que seja uma medida destinada a restabelecer a segurança no território do Rio de Janeiro apenas por um tempo até que a situação melhore e atinja níveis um pouco menos traumáticos. Para tal, os métodos não podem ser mais violentos do que a violência já presente na situação estabelecida. 

Violência gera violência. Dinâmicas de paz não poderão ser aplicadas se o ponto de partida for a intervenção truculenta e agressiva.  Isso só gerará revolta e mais agressividade, sobretudo naqueles que diariamente sofrem as consequências da injustiça.  A violência é filha da injustiça.  Se a intervenção pode ser uma necessidade para dirimir uma situação que chegou a um ponto de estrangulamento, pode ser um profundo fator de risco que tende a piorar esta situação em lugar de minorá-la ou resolvê-la. 

Que não se deixe de, a par das ações que a intervenção federal realizará na cidade e no estado, buscar construir soluções a longo prazo.  E isso implica  escolhas políticas que tragam governantes mais capacitados e desejosos de investir naquilo que realmente importa: educação, saúde e superação das injustiças.  Só aí estará o caminho para uma paz dinâmica e realista para o Rio, que já não suporta mais contar cadáveres e deseja voltar a viver com dignidade. 
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* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
Fonte:  http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2018/02/22/intervencao-um-mal-necessario/ 

                  A estatal da maconha

Diego Olivera, Secretário Geral da Junta Nacional de Drogas do Uruguai

Presidente do órgão do governo uruguaio que controla produção, venda e uso da Cannabis diz que legalização é a política de drogas mais segura que existe

23 fev 2018
Diego Olivera, de 38 anos, assumiu o cargo de secretário-geral da Junta Nacional de Drogas (JND) do Uruguai quando a lei que regulava o consumo de maconha no país ainda não havia sido aplicada integralmente. Era junho de 2016, e já fazia três anos que o Parlamento aprovara a medida. O governo não demonstrava muito interesse em adotar um dos aspectos mais controvertidos da lei: a venda de maconha nas farmácias. Um ano depois, Olivera assumiu também a presidência do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis, vinculado à JND, e conseguiu que algumas farmácias começassem a vender maconha recreativa a milhares de uruguaios registrados. Atualmente, há 21 559 cidadãos cadastrados. Cada um deles pode comprar até 40 gramas da droga por mês. Além disso, há 8 145 registrados para cultivar até seis plantas de Cannabis em casa e 78 clubes qualificados para fornecer a erva para fins medicinais a um máximo de 45 sócios. “A regulamentação da maconha veio para ficar”, disse Olivera a VEJA na entrevista a seguir.

Até agora, qual lição se pode tirar da legalização da maconha no Uruguai?  Uma das principais lições é que é possível regular o mercado de Cannabis e que isso não leva a uma situação disruptiva da sociedade. Quase 50 000 uruguaios, de diferentes idades e regiões do país, têm acesso à maconha por uma das três vias legais (farmácias, plantio doméstico e clubes especializados). Não ocorreram episódios inconvenientes ou críticos do ponto de vista da segurança nem da saúde pública. Ou seja, a sociedade uruguaia não entrou em colapso por ter regulamentado a maconha. Ao contrário, a imagem que fica é que essa se provou a política mais segura de todas as que se tentaram até hoje. Isso se reflete nas pesquisas de opinião pública. Há seis meses, 70% dos uruguaios eram contra a medida. Hoje, 50% rechaçam a legalização. A proporção ainda é alta, mas percebe-se uma tendência de reversão da percepção negativa. É claro que existem críticas sobre se estamos fazendo as coisas no ritmo adequado, se deveríamos aprofundar o modelo e se o peso regulatório ou de controle do mercado deveria ser mais frouxo. Mas a percepção é que tomamos o caminho certo.

A legalização da maconha reduziu a criminalidade no Uruguai? Neste momento e com os dados disponíveis, ainda não é possível afirmar que houve um impacto direto na queda da criminalidade. A violência social é um fenômeno complexo e estrutural demais para que se possa assegurar que em um prazo tão curto de implementação da lei se obtenha uma diminuição nos crimes. Nesse período, os homicídios caíram, os roubos violentos também, e a violência de gênero se manteve nos mesmos níveis. Paralelamente, houve uma reestruturação da polícia e das políticas de segurança, o que também influencia os indicadores de segurança. Por isso, ainda não é possível isolar o efeito da regulamentação da maconha sobre esses dados.

O que falta para avaliar o impacto da lei? Será possível vê-lo sobretudo na violência associada ao narcotráfico e na quantidade de pessoas processadas por delitos de drogas, que levam a um encarceramento massivo por infrações às vezes pequenas e à superlotação das cadeias. Essas pessoas passam a fazer parte de um ciclo de violência ou da “escola do crime” das prisões e acabam saindo pior do que quando entraram. É o caso, por exemplo, de cidadãos que eram processados por cultivar Cannabis para uso pessoal. Se houver uma queda nos indiciamentos por tráfico, teremos um indicador interessante de como a regulamentação da maconha contribui para a melhoria da segurança pública.


“A política de drogas proibicionista, que exige fortes medidas 
de coerção, fracassou. Em nenhum país 
essa estratégia diminuiu os impactos 
na saúde pública”

A venda de maconha em farmácias fez o crime organizado perder mercado? Graças à lei, algo como 30% dos usuários de maconha não recorrem mais ao mercado ilícito. Isso representa milhões de dólares que deixaram de ir para o tráfico (considerando que o mercado uruguaio de maconha legalizada é de 45 milhões de dólares por ano, o faturamento perdido seria de 13 milhões de dólares). Há, portanto, um impacto econômico real para os traficantes.

A legalização permite diminuir o combate aos narcotraficantes? São coisas distintas. A política de drogas proibicionista, que exige fortes medidas de coerção, fracassou. Em nenhum país essa estratégia diminuiu significativamente os impactos na saúde pública provocados pelo consumo de drogas, muito menos conseguiu vencer de forma clara o narcotráfico. Pelo contrário, o fato de criar um mercado negro — que necessariamente aparece como efeito do proibicionismo — gera um negócio ilícito altamente lucrativo e que é porta de entrada para organizações criminosas. O proibicionismo conduz a uma espiral de violência. Em uma política integral de drogas como a que adotamos no Uruguai, por sua vez, não se descartam as ações de caráter repressivo contra as organizações de tráfico. As medidas regulatórias de produção, comercialização e consumo da droga não substituem as medidas de coerção, mas convivem com elas e devem integrar-se a elas de maneira mais equilibrada. Temos de continuar perseguindo as organizações criminosas, que são cada vez mais polivalentes e incorporam o tráfico, a lavagem de dinheiro, o negócio das armas e a corrupção.

A atenção volta-se para os grandes traficantes? A guerra às drogas, quando aplicada de forma radical, golpeia, fundamentalmente, os elos mais fracos do narcotráfico. É ali que vemos o impacto sobre, por exemplo, as mulheres pobres chefes de família, que se veem empurradas para o tráfico por penúria social ou coagidas pelo entorno e terminam atuando como mulas ou microtraficantes. É assim que vemos a população carcerária aumentar basicamente com pessoas pobres e com um viés racial específico. A legalização da maconha permite mudar a equação, pois faz com que as infrações menores de drogas sejam substituídas pelo aspecto regulatório. Com isso, de fato, as organizações meramente criminais entram no foco das políticas de segurança.

Se a ideia é essa, todas as drogas deveriam ser legalizadas, não? No momento, essa possibilidade não está sendo considerada pelo governo. É de esperar, porém, que, com a regulação da Cannabis, se inicie um debate nesses termos. Mas o mercado de drogas ilícitas é, em grande medida, um mer­cado de maconha. As outras drogas psicoativas têm um peso significativamente menor no consumo (6,5% dos uruguaios são consumidores habituais de maconha, enquanto 0,6% usa cocaína).


“Algo como 30% dos usuários de maconha não recorrem 
mais ao mercado ilícito. Isso representa milhões de 
dólares que deixaram de ir para o tráfico. 
Há impacto real para os traficantes”

Qual é o papel do Estado no mercado de maconha? No esquema uruguaio, o Estado ocupa um papel regulatório central: supervisiona a produção, as movimentações financeiras e a distribuição. Controla até a qualidade dos produtos. Ou seja, é uma regulação exigente, não se trata apenas de criar um mercado liberalizado e deixá-lo andar com as próprias pernas.

Em 2017, das 2 toneladas de maconha apreendidas pela polícia, 17 quilos provinham da flor da planta, um produto de alta qualidade que pode ter saído dos clubes de Cannabisautorizados pelo governo. Como combater esse “mercado cinza” da droga? Considero esse conceito de “mercado cinza” pouco claro e, a rigor, equivocado. Existem atividades permitidas por lei, e ponto. As outras estão proibidas. Também é preciso dimensionar corretamente o fenômeno. Os dados da polícia mostraram que as apreensões de flores só representam 0,9% da maconha do mercado ilícito. Além disso, durante todo o ano de 2017 foram encontradas flores em apenas catorze operações em bocas de fumo. A situação merece nossa atenção, mas neste momento não a consideramos de alta gravidade. Em um processo de transição de um mercado ilícito para um mercado regulado, é de esperar que as coisa
Uma lei como a do Uruguai poderia ser aplicada no Brasil? Seria muito atrevido da minha s não entrem nos eixos da noite para o dia. Ainda estamos fazendo os ajustes para que não haja incentivos a quem queira atuar fora das regras do jogo. Uma maneira de fazer isso é consolidar e expandir o acesso à Cannabis legal, principalmente nas farmácias.

O interesse de turistas pela droga não incentiva o desvio de parte da produção legalizada para as bocas de fumo? O Uruguai tem uma posição muito clara a esse respeito. O acesso dos turistas não está permitido na lei e o governo não tem planos de mudar isso. A regulamentação da Cannabis no Uruguai pretende construir uma alternativa eficiente ao esgotado modelo de guerra às drogas no nosso país. Isso implica a necessidade de prosseguir com cuidado para não afetar os outros países, particularmente os nossos vizinhos que não escolheram seguir o mesmo caminho. Tendo em conta que uma porção importante dos mais de 4 milhões de turistas que o Uruguai recebe anualmente vem de países vizinhos, é essencial manter a nossa recusa em dar aos visitantes acesso ao mercado de maconha.
parte discutir a situação brasileira. Não tenho elementos suficientes para fazer isso. Por outro lado, em todo o processo uruguaio, desde a discussão da lei até a sua implementação, temos sido muito cuidadosos em ser livres para tomar decisões soberanas e defender essa soberania. Também tivemos a cautela de não entrar na discussão política de outros países. É evidente que a experiência uruguaia tem produzido informação e incentivado o debate nos países vizinhos, e há organizações e políticos que tomaram o c
aso uruguaio como um exemplo para defender suas posições, mas como governo nós não os incentivamos.
A produção científica uruguaia beneficiou-se com a regulamentação da maconha? Há novidades interessantes. Foram criados cursos de mestrado que não existiam. Agora há unidades acadêmicas dedicadas à política de drogas. Antes, havia somente dois pontos de vista sobre a questão: o jurídico-legal e o médico. Essas duas visões ainda existem, mas hoje também há pesquisas nas áreas de bioquímica, antropologia e sociologia. Com isso, outras profissões que não colocavam o tema das drogas na agenda da pesquisa agora o incorporaram. Na área da saúde, surgiram pesquisas associadas ao uso medicinal da Cannabis. A legalização ajudou nisso, porque antes os pesquisadores não podiam manter um cultivo ou não podiam comprar Cannabis para desenvolver seus estudos. Agora podem.

Com as eleições presidenciais de 2019 no Uruguai, há o risco de volta atrás na política de drogas? Não existem atores relevantes na política uruguaia propondo isso, salvo algumas exceções. Há diferenças de opinião sobre como a regulação deve acontecer ou qual alcance deve ter. As formas de comercialização são a questão mais debatida. Mas não vejo posições contrárias consistentes e que encontrem eco na população. A regulamentação da maconha chegou para ficar.
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Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2018, edição nº 2571 - Páginas Amarelas
Fonte: https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-estatal-da-maconha/

A sociedade hipertecnológica? Não precisa de técnicos, mas de híbridos

 http://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2018/02/26_02_celulares_foto_pixabay.jpg
Serão necessários gestores da complexidade capazes de habitar as fronteiras entre os saberes, buscando oportunidades. Entrevista com Piero Dominici, Professor de Comunicação Pública e Atividades de Inteligência na Universidade degli Studi de Perugia, publicada por Morning Future, 16-02-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

O futuro será das "figuras híbridas", os "gerentes da complexidade", de quem saberá "habitar o que hoje consideramos como os limites e limitações entre os saberes".

Professor universitário e formador profissional, Piero Dominici ensina Comunicação Pública e Atividades de Inteligência na Universidade degli Studi de Perugia. Há vinte anos está envolvido com as complexidades e a teoria dos sistemas, com referência específica às organizações complexas e as temáticas relativas à educação, inovação, cidadania, democracia e ética pública. É Diretor Científico do Complexity Education Project, coordena um blog sobre Nova em Il Sole 24 Ore, intitulado "Fora do Prisma".

Aqui estão os seus conselhos sobre o que os jovens deveriam esperar das escolas, universidades e, em geral, das instituições de educação e formação. Começando por aqueles que estudam ciências da comunicação.

Eis a entrevista.

O Fórum Econômico Mundial afirma isso há tempo, mas agora o conceito tornou-se dominante: 65% das crianças que estão no primário, "quando crescerem" estarão envolvidos em algum trabalho que hoje não só não existe, mas que nem sequer podemos imaginar. Neste cenário, no qual as competências e os conhecimentos rapidamente tornam-se obsoletos, o que devem buscar os jovens para sua formação?
A reflexão básica é que os jovens deveriam primeiro encontrar, descobrir e viver suas paixões. Não dos seus interesses, mas realmente das suas paixões, daquilo que aquece o coração, aquilo que quando você fica trabalhando até tarde te faz sentir bem e quase não te causa cansaço. Devemos ter a coragem de ir além da visão enganosa que nos impulsiona a sempre ter que encontrar a utilidade em tudo o que fazemos, mesmo no que diz respeito ao nosso crescimento e amadurecimento pessoal e intelectual. As paixões precisam ser descobertas, estimuladas, suscitadas e afloradas com um percurso educacional que deve começar nos primeiros anos escolares, que saiba como vincular razão e imaginação, pensamento e emoções, muitas vezes removidos dos trajetos educacionais e de formação. Tudo isso implica naquela que é - em minha opinião - uma questão de crucial importância, embora muito subestimada: redescobrir o valor da autenticidade e voltar para uma educação da autenticidade. Podem parecer dimensões desvinculadas com o tema do trabalho, mas é exatamente o oposto.

Por que este discurso pode parecer à primeira vista um tanto genérico ou de valores, mas é crucial em relação ao tema do trabalho?
Porque nós somos pessoas, ou seja, sujeitos de relação antes que trabalhadores, cidadãos e consumidores. Na base de todo o nosso discurso, existe a necessidade urgente de recuperar as dimensões (complexas) da complexidade educacional, na perspectiva sistêmica de umaeducação sócio-emocional. Sobre esse ponto, teríamos muito a falar, inclusive sobre a ausência de uma "verdadeira" orientação e de políticas de orientação, capazes de acompanhar os nossos jovens na transição da escola para a universidade. Em segundo lugar, para dar uma tradução operacional para o que foi dito, é necessário focar em percursos de formação que sejam cada vez mais construídos e projetados com uma ótica interdisciplinar e multidisciplinar, em condições de deixar para trás as velhas lógicas de separação, como, por exemplo, aquela bem conhecida entre as chamadas "duas culturas". Aquelas que hoje são consideradas fronteiras e limites - entre os saberes, entre os conhecimentos e as competências, entre a racionalidade e a criatividade - devem tornar-se brechas, aberturas, percursos e oportunidades. Precisamos cada vez mais de figuras híbridas, de perfis curriculares que possam manter juntas imaginação e racionalidade, criatividade e rigor metodológico, o humano e o tecnológico. É a complexidade da mudança que está ocorrendo, a sua ambivalência, velocidade e imprevisibilidade que nos mostra a inadequação de processos educacionais e de formação atuais, mas também a inconsistência das explicações reducionistas e dos tradicionais modelos interpretativos lineares.

Para tanto como as escolas, universidades, instituições de ensino e formação deveriam mudar?
O discurso sobre os interesses, as paixões, que é capaz de emocionar e estimular a criatividade comporta em repensar sobre os processos educacionais e de formação, no sentido da redescoberta da construção social da pessoa e não apenas do indivíduo. Isso teria repercussões importantes sobre a existência dos jovens, não só no aspecto de trabalho e profissional. Pelo contrário, continuamos a alimentar aquelas que muitos anos atrás eu chamava de "falsas dicotomias", inclusive aquela entre pensamento e emoção: sobre elas continuamos a impostar a educação e a formação, baseando-as sobre uma determinada ideia da racionalidade e da utilidade do saber. Hoje, como nunca antes, é necessário recuperar as dimensões complexas da complexidade educacional: a empatia, o pensamento crítico, uma visão sistêmica dos fenômenos, a educação para a comunicação, além das dimensões que temos deliberadamente removidos, como o imaginário e a criatividade. Isso significa repensar o espaço relacional e de comunicação dentro das instituições educacionais e de formação, revitalizar a educação na perspectiva sistêmica de uma educação que só pode ser sócio-emocional. O "grande equívoco" da educação na civilização hipertecnológica é justamente aquele de pensar que sejam necessárias uma educação e uma formação de natureza especificamente técnica e/ou tecnológica; isso é exatamente o oposto do que temos e teremos desesperadamente necessidade.

Então, quais são os melhores percursos sobre os quais apostar?
Os melhores percursos (não ideais), como resultado, serão aqueles que buscam uma interdisciplinar e multidisciplinaridade. Aqueles, em outras palavras, mais adequados para preparar as pessoas para viver a complexidade atual e futura, aqueles que irão formar, em todos os níveis, mentes críticas elásticas, figuras híbridas, abertas às contaminações entre os saberes e as competências. Figuras e perfis sempre prontos para ver as fronteiras e os limites, seja qual for a sua natureza, como uma oportunidade para crescer e experimentar.

Em seus estudos, você destaca que "na sociedade hiper complexa não são mais suficientes o ‘saber’ ou o ‘saber fazer’: precisamos ‘saber’, precisamos ‘saber fazer’, mas também precisamos ‘saber como comunicar o saber e saber comunicar o saber fazer’”. O quanto é importante a comunicação nos novos paradigmas do trabalho?
E, acima de tudo, qual comunicação? A comunicação importa muito, é quase banal dizer. A nova viralidade da comunicação, entre outras coisas, é um dos elementos que determinou a passagem da complexidade para a hipercomplexidade. A comunicação sempre foi estratégica para a sobrevivência dos sistemas sociais e das organizações, mas hoje é ainda mais porque a sua nova viralidade (que só em parte está relacionada com o aspecto digital) trouxe para fora da "torre de marfim" os saberes, os conhecimentos, as questões que antes eram de domínio exclusivo dos cientistas, dos estudiosos e dos especialistas, destacando a importância estratégica de questões relacionadas com a representação e a percepção dos fenômenos. Temas de fundamental importância para a própria manutenção das modernas democracias. O problema é não ter consciência da importância da comunicação, o problema é reconhecer que a comunicação, ou melhor, uma determinada ideia/concepção/visão de comunicação, deve ser repensada e redefinida, tomando cuidado para não confundi-la com o marketing e muito menos com a conexão.

Basicamente aqui, a comunicação é mais do que apenas uma técnica ...
A comunicação é um processo social complexo de compartilhamento de conhecimentos, não só onde o conhecimento é equivalente a poder (questão muito antiga), uma vez que a comunicação tem a ver com a criação de vínculos de confiança, com o fortalecimento das conexões entre os sistemas e os ecossistemas. Portanto, é importante estar ciente de que os conhecimentos e as competências no campo da comunicação não devem ser ligados exclusivamente com a habilidade técnica de governar instrumentos de comunicação ou de conexão; o problema é tentar governar a complexidade social e organizacional e, ao mesmo tempo, aprender a comunicar as suas numerosas implicações. Isso requer uma atenção especial à dimensão metodológica e àquela de cultura organizacional. Em vez disso, existe o risco muito concreto de que a nossa oferta de formação universitária, no que diz respeito ao papel do comunicador, venha a coincidir substancialmente com a formação de um vendedor ou um formador de opinião, mais ou menos oculto. O ponto principal, em minha opinião, é que não se deve apenas formar para a comunicação, mas também educar para a comunicação.

Você falou acima de figuras híbridas como protagonistas do próximo futuro. Também escreveu que "não podemos mais nos dar ao luxo de formar apenas técnicos e isso justamente porque estamos em uma civilização hipertecnológica": não é um paradoxo?
Não é apenas um paradoxo, é o "grande equívoco" da civilização tecnológica. Precisamos formar cada vez mais "gestores da complexidade", que é uma complexidade social, relacional, organizacional, uma complexidade não passível de objetivação por nenhuma fórmula, capaz de escapar a qualquer processo de redução. As organizações em que vão e irão trabalhar os jovens, são sistemas sociais, nós precisamos educá-los, formá-los e atualizá-los para isso, para viver essa complexidade, que nunca é previsível até o fundo. Ao nível do discurso público, em vez disso se continua a repetir que são necessários (apenas) engenheiros, profissionais das ciências exatas, algumas figuras e não outras; ainda se está pensando em termos de "duas culturas", sobre a falsa dicotomia entre educação humanista e formação científica, algo inacreditável. Precisamos obrigatoriamente superar tais dicotomias.

Qual é o risco de permanecer presos no antigo dualismo entre cultura humanista e técnico-científica?
Continuar a pensar que, para essa civilização hipertecnológica, só sirvam figuras muito preparados para "saber fazer", para "saber como usar", no âmbito de uma dimensão altamente técnica e tecnológica, responde a uma impostação míope que vai nos manter em um estado de perene atraso cultural. Como eu sempre repito, continuaremos a nos contar que a tecnologia é mais rápida que a cultura, como se a primeira fosse algo externo à segunda. Repito: precisamos de figuras híbridas, de gestores da complexidade (uso tal fórmula por conveniência e por síntese), que saibam enxergar oportunidades no que hoje definimos e reconhecemos como riscos, vulnerabilidades, variáveis de uma perigosa desordem, capazes de tornar ainda mais instáveis e inseguros os sistemas e a vida social. Para outros temas e questões muitas vezes se recorre à metáfora das "pontes, não muros", uma metáfora que podemos empregar também nesses contextos. É hora de facilitar a construção de pontes entre os saberes, entre as competências, entre o natural e o artificial (ultrapassando fronteiras), entre os saberes e a vida, entre o humano e o tecnológico. Habitar a hipercomplexidade, não só saber gerenciar/controlar as tecnologias, explorando todo o seu potencial: e há muito mais.

Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/576411-a-sociedade-hipertecnologica-nao-precisa-de-tecnicos-mas-de-hibridos 27/02/201

                      A utopia das redes sociais

 Joel Pinheiro da Fonseca*
 
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Imagem mostra logo do Facebook - 20/11/2017 - AFP

É uma surpresa que o resultado dos megafones nas mãos dos indivíduos seja barulho e tribalismo?


Havia um sonho no início da internet: o sonho de uma humanidade mais unida. Com mais facilidade de comunicação, pessoas de lugares distantes interagiriam mais e derrubariam muros. Com um mar de informações disponível a um clique, quaisquer discordâncias seriam facilmente resolvidas. A tecnologia abria as portas para um mundo da união universal pautada pela ciência.

Infelizmente, não foi o que aconteceu. O contato entre pessoas distantes permitiu que aqueles que pensam igual troquem mais figurinhas e articulem ações conjuntas. Ao mesmo tempo, a abundância de informações permitiu que cada narrativa se servisse de dados e exemplos para reforçá-la e aumentar seu poder de persuasão junto a ouvintes indefesos.

Hoje, aquele sonho de internet (um espaço amplo, aberto e descentralizado) se foi; vivemos no enorme condomínio fechado do Facebook, que acelera a polarização. No início dos anos 2000, alguns poucos aficionados por política e cultura discutiam entre desconhecidos em fóruns online sob identidades anônimas. Hoje, as coisas se misturaram: seu manifesto político na rede te dá reputação (ou ódio) entre pessoas que te conhecem.

O Facebook se apresenta como uma plataforma neutra, na qual o sucesso de cada post depende apenas do interesse que ele gera nos usuários. Quanto ao conteúdo ideológico (e excetuando uma política rígida de excluir nudez e possíveis ofensas a algum grupo), ele realmente não faz nenhum tipo de filtro ou controle do que é publicado.

Se mentiras sensacionalistas capturam melhor a atenção dos leitores do que reportagens ponderadas, o que se há de fazer? É a natureza humana. É uma surpresa que o resultado dos megafones nas mãos dos indivíduos não seja imparcialidade e profundidade, e sim barulho e tribalismo?

Para quem se dispõe a ser protagonista da própria busca por conhecimento, a internet foi uma das maiores dádivas da história. Entre jornais e revistas do mundo todo, sites especializados, Wikipedia, blogs com análise de alta qualidade (que jamais teriam espaço na mídia tradicional), interlocutores inteligentes e proximidade com formadores de opinião, a vida melhorou muito. Agora, para quem adota uma postura passiva (infelizmente, a maioria), ficou mais fácil ser enganado e, pior, aumentou a propensão a se fechar dentro de uma bolha ideológica.

Por mais que seja neutra em sua proposta, a plataforma do Facebook, como qualquer outra, pode ser manipulada. Foi o que a Rússia fez (via a "Internet Research Agency", IRA, que serve aos interesses do governo russo), com milhares de usuários falsos e a criação de páginas e posts —compartilhados milhões de vezes— para desestabilizar o debate público americano em 2016.

As páginas criadas pela IRA ocupavam ambos os extremos do espectro ideológico: de ativismo negro a campanha anti-imigração de latinos. A finalidade era sempre a mesma: aumentar o caos para enfraquecer o país internamente. 

Não está claro o tamanho da influência russa. Eu acredito que o processo natural de interação nas redes já leve a esse resultado, com a interferência de agentes externos sendo apenas um acessório. 

No Brasil, nada indica que o governo russo interfira no debate público. Contudo, é curioso notar que, em sua luta sincera pelo que acreditam ser o bem do Brasil, cidadãos convictos e grupos de ativismo político se comportem exatamente da maneira que um inimigo gostaria de incentivar para destruir a nação.
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* É economista pelo Insper, mestre em filosofia pela USP e palestrante do movimento liberal brasileiro. 
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/ 27.02.2018

 agenda inadiável do próximo governo 

- BASÍLIO JAFET

ESTADÃO -

O candidato que revelar convicção em relação a estas e outras questões será uma luz no fim de um túne

Para que o Brasil não volte a dormir em berço esplêndido – quando despertamos do último, não imaginamos que o sonho desembocaria num longo pesadelo – o futuro presidente terá de contar com integral respaldo da sociedade para enfrentar uma complexa agenda.

Trata-se de uma velha conhecida pauta, mas que se rejuvenesceu por conta da exuberância irracional gerada pela melhoria dos cenários internacionais (os melhores números da década), das safras recordes obtidas pelo agronegócio nacional e da opção dos brasileiros, cansados de tantas crises, de se encantarem com a tímida retomada da economia.

Ao decidir “brincar de Poliana”, acreditando que tudo vai se resolver amanhã a população tende a tapar o sol com peneira. Olhar para a frente, sem pensar no que, sem soluções efetivas, ficou para trás. Um tipo de preocupante postura que também se identifica em parte das classes empresarial e política. Retomar essa agenda, e eleger como presidente alguém com ela comprometido, é medida obrigatória para que a recuperação econômica seja sustentável e não mais um voo de galinha.

É preciso reconhecer que os fundamentos econômicos estão fracos. Temos a maior relação dívida/PIB dentre os países emergentes. O Brasil continua gastando mais do que arrecada, seguindo uma trajetória explosiva.

E ainda há quem resista em admitir que a reforma da Previdência é caminho para conter esse processo. Gastamos com os 10% da população aposentada o mesmo que países do Primeiro Mundo gastam com 30% de aposentados. Um remendo não irá resolver.

Também cabe buscar soluções para questões que comprometem nossas condições de competitividade no mundo. Comemoramos a possibilidade de a taxa de juros chegar a 6,5% ao ano. Só que essa taxa é de 3% a 4% nos países em desenvolvimento.

Nosso produto é caro; a burocracia é imensa; o sistema tributário é irracional; e nosso sistema educacional, obsoleto e ideologizado, não forma cidadãos capazes de ampliar a produtividade. Para piorar, não há simbiose entre academia e mercado. Quase não existe pesquisa de ponta. Em virtude disso, estamos comprometendo o futuro, o qual exige inovação e eficiência.

A reforma do Judiciário deve fazer parte desta pauta redentora. De acordo com estudo divulgado (CNJ 2012, European Commission for the Efficiency of Justice), entre outras fontes, o Brasil tem 8,2 juízes para cada 100 mil habitantes, enquanto a Alemanha tem 24,7.

Apesar disso, a despesa do Poder Judiciário nacional consome 0,30% do PIB (a Alemanha, 0,32%). A relação despesa/PIB do Ministério Público é de 0,32% (a Alemanha, 0,02%).

Adicione-se que um Judiciário caro e sujeito às pressões das ruas assumiu um protagonismo exacerbado, desautorizando decisões do Executivo e do Legislativo. O Ministério Público, por sua vez, funciona fora do sistema de pesos e contrapesos, sem ser responsabilizado pelos seus atos. Esses fatos, somados à lentidão no julgamento de processos, resultam em insegurança jurídica que afasta o investimento, reduz a competitividade e a produtividade, aniquila o empreendedorismo.

Existe, ainda, a necessidade de garantir segurança pública. O medo afasta o progresso. Quem se anima a investir no Rio de Janeiro atualmente? Até o turismo, grande fonte de renda de um Estado em situação de insolvência, está sendo prejudicado.

Por fim, embora não por último (a pauta é longa), governo, imprensa e sociedade devem se articular no sentido de mudar a cultura brasileira de que sucesso é pecado; que só os pobres têm direito ao céu, perpetuando políticas assistencialistas ao invés de estimular a meritocracia. Bolsa Família e outras iniciativas similares surgiram para tirar as pessoas da miséria absoluta, oferecendo condições mínimas de evolução pessoal (estudo/trabalho). O que vemos hoje é uma grande quantidade de cidadãos reféns de bolsas, e se conformando com essa situação.

O candidato que revelar convicção em relação a estas e outras questões (como diminuir o tamanho do Estado e ter tolerância zero com corruptos e corruptores) será uma luz no fim de um túnel. Torçamos para que esse estadista se apresente, e logo.


* É VICE-PRESIDENTE DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS DO SECOVI-SP

A jogada de mestre e o colapso narrativo

 - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 
O enunciado ‘segurança pública’ é o mais sensível ao brasileiro real. Qualquer movimento que lhe seja relativo e que insinue avanço mobiliza esperanças

No exato instante em que Michel Temer assinou o decreto da intervenção federal no Rio de Janeiro: o ano começou — o ano eleitoral de 2018 começou. Não há ator relevante no tablado que não tenha percebido. Geraldo Alckmin — o que joga sempre parado, para quem, até há pouco, o grande tema da campanha seria a dupla emprego e renda — teve de se mexer e mudar: agora é a segurança pública. A questão tomou a frente. Temer tomou a frente. Naquele momento, ao formalizar o decreto, fato novo por excelência, marco deflagrador-acelerador da corrida presidencial, o presidente se impôs como protagonista, o sujeito-matriz que pauta o debate público e exige respostas dos adversários, de súbito, pegos de surpresa, obrigados, como se diz, a correr atrás.

Entramos no delicado terreno da percepção. O enunciado “segurança pública” é o mais sensível ao brasileiro real. Qualquer movimento que lhe seja relativo e que insinue avanço — ruptura no comodismo — mobiliza esperanças e provoca sensações. Jamais acreditei, por exemplo, na viabilidade das Unidades de Polícia Pacificadora. Sempre considerei o projeto uma farsa. Mas nunca desprezei a potência político-eleitoral daquela irresponsabilidade: força por meio da qual, já nos ecos, até Pezão conseguiria se eleger, em 2014, governador do Rio de Janeiro; cortina de fumaça legitimadora por trás da qual a quadrilha de Sérgio Cabral pilhou o estado.

Estamos em ano eleitoral. Quase março. A eleição é em outubro. Daqui até lá: tiro curto. Condições perfeitas a que se explore o impulso perceptivo do cidadão — corrida a cuja vitória um voo de galinha pode bastar. Não importa que a intervenção federal seja, hoje, na prática, mero protocolo de intenções sobre base excepcional; sem, portanto, qualquer conquista palpável. Não importa. Seu simples anúncio, valorizado pela natureza atípica do dispositivo constitucional e pela centralidade concedida ao Exército, deu à questão da segurança pública caráter prioritário — ou criou o ambiente para que assim fosse percebido. Sobre um assunto cuja materialidade pode ser medida em 60 mil homicídios anuais, não será pouco.

É a percepção de que os efeitos político-eleitorais da ação podem ser decisivos — e alterar a impressão das pessoas sobre o presidente — o que orienta, à direita e à esquerda, a reação dos adversários.

Há uma nuance aqui. Não creio que a popularidade de Michel Temer possa reagir de modo a torná-lo competitivo eleitoralmente. Não é esse o ponto. A perturbação está em se o governo Temer, ademais no controle da máquina e desfrutando da capilaridade nacional do MDB, pode — beneficiado por avanços nos indicadores econômicos e por alguma imediata sensação de melhora na área de segurança — chegar a meados do ano como um, talvez o, grande eleitor.

A manifestação — tardia — de Lula a respeito da intervenção passou recibo de apreensão e é altamente significativa de quem acusa o golpe sem ter meios de contra-atacar com ideias. Até então aquele que dava — sozinho — as cartas e ditava o ritmo da pré-campanha, senhor absoluto do jogo, o ex-presidente de repente se viu na defensiva, à margem do debate, desprovido de ferramentas para se contrapor senão reproduzindo o discurso de histéricos como Lindbergh Farias: Temer teria, num golpe de marketing, roubado o programa de Jair Bolsonaro e encontrado para si um veio eleitoral influente. O senador petista Humberto Costa chegou mesmo a dizer que o governo federal, em busca de um mote para 2018, lançara-se a um processo de bolsonarização.

Bolsonaristas não discordarão. Ao contrário: não faltam manifestações — perplexas — de apoiadores do deputado que se sentem afanados no discurso. O próprio Jair Bolsonaro verbalizou o sentimento de homem roubado. É a mais precisa definição — à esquerda e à direita — de colapso narrativo.

A propósito, aliás, de Bolsonaro, e sob o impacto da intervenção federal de Temer em ano eleitoral, convém fazer uma distinção politicamente importante, que independe da qualidade das propostas do deputado federal e do presidente para a segurança pública.

Bolsonaro, o pioneiro, é o que há mais tempo — e longamente sozinho — segura a bandeira do tema. Ele soube identificar, com rara antecedência, aquela que é a maior demanda do cidadão brasileiro — e tem lucrado eleitoralmente com isso. É um mérito. Temer, por sua vez, é aquele que, em decorrência do decreto, anabolizado pela força do cargo que ocupa, tirou os adversários da zona de conforto e, ao trazer para si o enfrentamento prioritário do flagelo também conhecido como segurança pública no Rio de Janeiro, inscreveu-se como o pauteiro da agenda política atual.

Não são poucas as chances de que tenha encontrado, naquele que é estandarte histórico de Bolsonaro, uma identidade para seu governo; uma identidade com vigor para transformá-lo. Goste-se ou não: é política. Goste-se ou não: fica evidente que a diferença está no peso da caneta. Um é candidato a presidente e deputado federal. O outro é o presidente da República.

Não se pode subestimar a máquina, a musculatura do establishment. Essa é uma boa lição — ainda a se aprender — antes que a campanha comece à vera.

Carlos Andreazza é editor de livros

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Ventos policiais


 - MERVAL PEREIRA

          O GLOBO - 27/02

Os palanques eleitorais para a eleição presidencial deste ano estão sendo montados aos trancos e barrancos, mais ao sabor dos ventos policiais do que dos políticos. E numa eleição casada, onde estarão em jogo nada menos que sete cargos eletivos – Presidente da República, governadores, dois senadores, deputados estadual, distrital e federal -, quem tiver as melhores alianças partidárias terá o maior tempo de propaganda na televisão, mas com o advento das redes sociais no mercado eleitoral, e o encurtamento da campanha oficial, não é possível garantir que o tempo de televisão seja mais importante.

Até que se prove o contrário, as alianças políticas regionais serão fundamentais para a captação de votos, mais até que o curto espaço que sobrará para a campanha de propaganda oficial de rádio e televisão, que terá a duração de apenas 35 dias, a partir de 31 de agosto.

A Bahia entrou ontem na lista dos estados que serão afetados pelas investigações da Operação Lava Jato, que ao mesmo tempo em que dificultou a campanha regional do PT, atingiu em cheio a opção mais palatável eleitoralmente para substituir Lula como candidato presidencial.

O ex-governador e ex-ministro Jaques Wagner buscava na eleição quase certa para o Senado o foro especial que o protegeria justamente dessa investigação, que já fora arquivada no âmbito da Justiça eleitoral local, normalmente mais exposta à influência do poder político incumbente. Mas era a melhor bala de prata petista para substituir Lula na campanha presidencial, apesar de não querer assumir essa missão.

Mesmo que o enfraquecimento da situação petista tenha beneficiado seu maior adversário político, o prefeito de Salvador ACM Neto do DEM, o governador paulista Geraldo Alckmin, virtual candidato tucano à presidência, não compensa com essa revigorada em fundamental estado nordestino a perda que pode vir a ter com as descobertas sobre o dinheiro guardado no exterior pelo ex-presidente da Dersa paulista Paulo Preto.

O desvendamento da rota dos pagamentos clandestinos para obras viárias dos diversos governos tucanos em São Paulo necessariamente revelará o esquema que vem alimentando as vitórias do PSDB no Estado pelos últimos 20 anos. Mesmo que recursos judiciais consigam retardar o processo ao ponto de os eventuais crimes descobertos prescreverem, politicamente o estrago está feito, e Alckmin fará uma campanha presidencial mais difícil do que normalmente se desenhava.

A busca por palanques regionais fez também com que o governador paulista oferecesse a legenda do PSDB ao ex-prefeito do Rio Eduardo Paes, que por sua vez luta para livrar-se o estigma do PMDB do Rio. Embora até agora nada tenha surgido contra ele nas investigações locais da Lava Jato, a relação política estreita com o ex-governador Sérgio Cabral cobrará seu preço na campanha para o governo do Estado, onde Paes, mesmo assim, aparece como uma força política de peso.

Outro tucano importante na estrutura partidária que se encontra em situação limite é o ex-governador mineiro Aécio Neves, derrubado politicamente por vídeos e áudios que registram negociação em dinheiro vivo com o empresário Joesley Batista.

Mesmo que, como pretende, consiga anular o processo contra ele depois que ficou constatado que o ex-procurador do Ministério Público Marcelo Miller participou do esquema montado para flagrar o presidente Temer e Aécio Neves, os áudios e os vídeos não se apagarão da mente de quem os viu e ouviu.

O PSDB busca reconquistar o poder político em Minas, e a pressão para que Aécio Neves seja candidato a governador está grande, o que demonstra o desespero diante da falta de opção. O senador Antonio Anastasia recusa-se a aceitar a missão de tentar novamente o governo de Minas, e as opções tucanas são raras e arriscadas politicamente, mesmo que o governador petista Fernando Pimentel também esteja às voltas com diversas investigações.

Esses problemas que assolam PT e PSDB, os dois partidos que se acostumaram a dividir o poder político-partidário no país nos últimos 25 anos, mostram bem que eleição teremos dentro de pouco mais de sete meses, sem que se saiba hoje ao certo quais serão os candidatos que sobreviverão.

O Brasil perde tempo 


- EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

    GAZETA DO POVO - PR - 27/02

A miséria e a pobreza persistem porque perdemos anos preciosos, ora por crises econômicas, ora por crises políticas, quando não pelas duas ao mesmo tempo


O economista britânico Thomas Malthus (1766-1834) ganhou fama por seus estudos sobre o crescimento da população e o aumento da produção de alimentos. Tendo vivido nos primórdios da Revolução Industrial, ele fez estudos com base em dados rigorosos e fundamentou a hipótese de que as populações humanas crescem em progressão geométrica enquanto a produção de alimentos aumenta em progressão aritmética. Ou seja, enquanto a produção de alimentos vai se somando a cada expansão da área plantada, as pessoas se multiplicam à medida que cada casal gera vários filhos que também geram vários filhos, fazendo que a população cresça proporcionalmente muito mais que a produção de alimentos.

Malthus afirmou que a humanidade estava diante do desafio de descobrir meios para elevar a produção a taxas elevadas e, ao mesmo tempo, diminuir a velocidade de crescimento da população. Ele também alertava para a necessidade de conseguir o crescimento econômico, o desenvolvimento da tecnologia e, principalmente, fazer isso sem perder tempo, pois a população não dá trégua e segue crescendo continuamente. Não conseguindo êxito nesse intento, o mundo veria crescer a fome, a miséria e o sofrimento. Ainda que suas previsões catastróficas não tenham se realizado, as teorias e as reflexões de Thomas Malthus são úteis até hoje, e servem de alerta para uma questão essencial: a superação da pobreza e a melhoria do bem-estar social exigem que o país evite a perda de tempo mergulhado em crises econômicas, crise política e crise social.

O Brasil vem desperdiçando tempo de forma grave e retardando o desenvolvimento

De fato, o tempo é um fator relevante na determinação do crescimento econômico e da melhoria social. O Brasil pode ser analisado nos termos dos estudos de Malthus, pois o país chega a 2018 com elevados índices de pobreza e baixo padrão de vida. Assim, cabe compreender as razões que impediram a elevação do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos 70 anos a taxas suficientes para acabar com a miséria, a pobreza e a baixa renda por habitante. Uma dessas razões é a perda de anos e anos preciosos, ora por crises econômicas, ora por crises políticas, quando não pelas duas ao mesmo tempo.

Merecem registros pelo menos quatro momentos caracterizados por erros ou crises de alto porte que castigaram o Brasil e atrasaram o progresso. Primeiro, ainda que tenha sido uma época de importantes avanços, os anos 1950 foram marcados pela cultura do nacionalismo – pela qual o país fechou-se ao mundo, rejeitou o capital estrangeiro e não ampliou a participação no mercado internacional – e pela cultura do estatismo, que levou à criação de várias empresas estatais e gerou a crença de que o motor do desenvolvimento era o governo, e não o setor privado. O segundo momento foi a década de 1960, marcada pela exacerbação da inflação, convulsões sociais, crise política e implantação de um regime militar; o crescimento econômico foi retardado em pelo menos cinco anos.

O terceiro momento iniciou na segunda metade dos anos 70 e percorreu toda a década de 1980, que foram anos de crise do petróleo, aumento da inflação a partir de 1974, elevação da dívida externa, descontrole das contas do governo, hiperinflação nos governos Sarney e Collor, planos econômicos desastrosos e aumento da estatização de empresas, ao ponto de a década de 80 ser considerada uma década perdida. Os anos 90 deixaram marcas positivas, como o fim da inflação (com o Plano Real, em 1994), a reorganização do sistema bancário, a privatização de empresas, a Lei de Responsabilidade Fiscal e, já nos anos 2000, melhorias de alguns indicadores sociais, até o país desembocar, após 2010, na maior recessão de sua história ao lado da deterioração da moral pública refletida nos escândalos do mensalão, do petrolão, de outros escândalos de corrupção, fraudes, desvios e falência financeira do setor público.

Se consideradas apenas essas realidades – outras muitas devem ser levadas em conta –, tem-se aí um quadro de grave desperdício de tempo que ajuda a explicar por que o Brasil chega ao fim desta segunda década do século 21 com altos índices de miséria, pobreza, analfabetismo funcional, em suma, um país pobre e atrasado. O Brasil vem desperdiçando tempo de forma grave e retardando o desenvolvimento. A população brasileira saiu de 51,9 milhões em 1950 para 70,9 milhões em 1960, 94,5 milhões em 1970, 121,1 milhões em 1980, 169,8 milhões em 2000 e terminou 2017 com 208,5 milhões. Para contrariar Malthus, o setor que mais se desenvolveu nesse período foi o agronegócio em geral, e a produção de alimentos em particular. Mas isso não basta para que a população inteira disponha de uma renda por habitante capaz de lançar o país no clube das nações desenvolvidas, deixando a miséria e pobreza para trás. O país tem de parar de perder tempo, como tem feito até agora.