sábado, 15 de março de 2014

" A Serenidade "

PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO*
Como a dissimulação tem cara e crachá, é sempre desagradável dar notícia ruim e, na falta da verdade, é quase impossível resgatar a credibilidade indispensável para a preservação do convívio.

Quando Jonas foi internado já veio com o pacote completo de informações desfavoráveis: tinha um tumor raro de pleura, que ultrapassara os limites da cirurgia, pois se estendera para o abdômen, provocando o acúmulo de líquido.

As possibilidades terapêuticas eram restritas, e a chance de cura, nula. Uma semana depois do diagnóstico, encontrei-o pela primeira vez. Tinha passado a fase da negação sozinho e estava em plena revolta. Nada do que se pudesse dizer faria qualquer sentido e ficou claro que dar ouvido à sua indignação era a melhor forma de oferecer parceria e ganhar confiança.

A falta de solução favorável expõe o médico a todos os tipos de represálias: “Tenho lido o que o senhor escreve sobre os avanços da medicina. Pois fique sabendo que acho a sua profissão uma grande merda!”. Maturidade profissional nesta situação é ouvir, entendendo que este comportamento hostil faz parte da doença, e para aumentar a tolerância não custava nada se imaginar na pele dele. Merda mesmo.

Soube que estávamos do mesmo lado da trincheira quando ele se ofereceu para participar de qualquer projeto de pesquisa com drogas novas e experimentais que estivesse em marcha no serviço de oncologia. Como não havia o que barganhar, ele, rapidamente, mergulhou na depressão e passava a maior parte do tempo deitado, fitando desinteressado uma TV sem som. Numa manhã, quando lhe perguntei se ainda não se banhara, ele simplesmente respondeu: “Acho que as enfermeiras cuidam antes dos pacientes que têm chance de cura”. Noutro dia, fez um protesto explícito: “Sei que tenho uma doença terminal, mas diga ao padre que eu não sou um paciente terminal!”.

Uma de minhas últimas lembranças dele foi o pedido candente para que o ajudasse a contar ao filho de 12 anos o que estava acontecendo. Soube que o tinha conquistado quando fui convidado para ser parceiro naquela hora. Foi de doer.

Depois disso, tudo mudou. As janelas do quarto eram abertas cedo da manhã, o gotejo contínuo do analgésico era a alforria do sofrimento inútil e havia uma paz naquele ambiente que contrastava com o desfecho iminente.

Lembrei-me do Jonas lendo a biografia do Getúlio. Lá, Lira Neto conta que o então jovem deputado comandava uma tropa de soldados fajutos, recrutados entre a peonada em São Borja, com poucas armas e nenhum treinamento militar, e agora, aquartelados na margem do Uruguai, no umbral de uma batalha feroz, comiam churrasco e mateavam, aparentemente despreocupados. Um velho oficial, picando fumo com calma, vendo-os assim fagueiros, comentou: “Tenho pena desses jovens, que nem sabem que vão morrer”. Ao que Getúlio retrucou: “E você, homem, não vai morrer?”. “Eu vou, mas eu sei!”

Era dessa serenidade que falávamos. De onde ela vem? Não tenho a menor ideia.

*Cirurgião e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia

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