terça-feira, 31 de dezembro de 2013

" Um ano fora do comum "




                               LIBERATO VIEIRA DA CUNHA



Já vi filmes como Os Melhores Anos de Nossas Vidas ou O Ano em que Vivemos em Perigo, mas raramente presenciei, em tempo real, algo tão impactante como 2013. Foi um ano extraordinário, e ainda agora me dou conta de que o adjetivo talvez não seja suficiente.

Tudo começou com aquela tragédia arrasadora de Santa Maria que extinguiu em chamas 242 mentes e corações jovens e provocou imensas cicatrizes em milhares de pessoas que os amavam. Nada retrata melhor as dimensões daquele holocausto do que a foto de Yasmin Müller como que desfalecida sobre as cinzas do noivo, no instantâneo pungente e magnífico de Lauro Alves.

Moços como aqueles ganharam as ruas em junho em colossais manifestações que sacudiram o país. Lembro que trocava e-mails com uma amiga de São Paulo, quando ela me avisou que ia sair do ar: seu carro, preso num gigantesco congestionamento, estava cercado por uma multidão inumerável na Avenida Paulista. “O que os manifestantes querem?” – perguntei. “Mudar o Brasil” – respondeu ela, e nessa resposta, desculpado o incômodo, estava dito tudo.

Foi este também o ano em que o mais carismático dos pontífices de que há memória conquistou o Brasil com sua incrível capacidade de comunicação. Não foi um episódio isolado. O Papa Francisco continua a varrer as teias seculares que encobrem a hierarquia do Vaticano. O Bispo de Roma proscreve velhos usos do poder, mora num apartamento simples, usa sapatos gastos, carrega sua própria mala. Há algo que se pode chamar de mais cristão? E por falar nisso, partiu outro gigante: Nelson Mandela, o homem que derrubou o regime racista do apartheid.

Em Pindorama, o Dia da República desta vez fez justiça ao nome. O presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, marcou a data mandando para a cadeia quatro dos principais líderes da quadrilha que protagonizou o maior dos assaltos aos cofres da nação.

Como diria Edward Snowden, não é pouco para um ano só, fora o que ainda não foi revelado.
feliz,comprometido,um 2014



PAMPA DO SILÍCIO

Programa busca atrair startups para o Estado

Governo e iniciativa privada unem esforços para criar ambiente favorável a empresas inovadoras
Seguindo os passos de Minas Gerais e Rio de Janeiro, o governo gaúcho com apoio de empresários locais, planeja lançar um programa para atrair empresas de tecnologia para Porto Alegre. A ideia é criar um ambiente que seja referência em inovação, semelhante ao que ocorreu no Vale do Silício (EUA), berço de empresas que nasceram nanicas, mas que hoje são colossais, como Google e Apple.

O valor para tirar o projeto do papel ainda é incerto, mas deve ficar perto de R$ 20 milhões, cifra modesta se comparada com o faturamento de qualquer gigante da internet.

A iniciativa vem na esteira do programa Startup Brasil, criado no início de 2013. Ao dar dinheiro para as empresas de tecnologia iniciantes, mas não definir um local para que se estabelecessem, o governo federal acabou criando uma competição entre os Estados, que agora tentam oferecer benefícios extras para atrair bons negócios.

A aposta é que, ao colocar empreendedores de diferentes regiões em contato diário – seja em um mesmo bairro ou prédio –, haja aumento no volume de negócios e seja criado um ambiente de inovação que possa ser referência no continente. A partir daí, outras startups viriam de forma espontânea. Até agora, isso ainda não ocorreu no país.

Além de evitar que boas ideias migrem para outras regiões, a proposta do programa gaúcho, cuja data de lançamento ainda está indefinida, é conquistar empresas de outros países, como já acontece em Israel e Chile.

Cleber Prodanov, secretário estadual da Ciência, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico, diz que, em janeiro, serão realizadas as primeiras reuniões para definir o financiamento do programa, mas adianta que a ideia não é tornar o governo protagonista:

– Já recebi ligações de empresários interessados em participar. Trabalharemos para atrair mais investidores.

Diego Remus, sócio da Startupi, empresa com sede em São Paulo e que promove interação entre inovadores e investidores potenciais, vê com entusiasmo a iniciativa, mas lembra que inovação não se dá por decreto.

– O empresariado precisa entrar de cabeça. Outro ponto determinante para o sucesso é a escolha de bons mentores. Só funciona se tiver gente boa ajudando gente boa – afirma.


cadu.caldas@zerohora.com.br

" O Brasil pode dar certo ??? !!! "




 

Renato Janine Ribeiro*
Agência Brasil/ABr
Nenhum inglês rico completava a educação, nos séculos XVII e XVIII, sem o "Grand Tour", uma longa viagem ao continente europeu para conhecer cidades e artes. (O mais ilustre dos preceptores desses moços foi o filósofo Thomas Hobbes, que assim conheceu René Descartes.). Seria bom, hoje que a Europa está ao alcance da classe média, que nossos jovens a visitassem para aprender o que é uma realidade socialmente justa. Ao menos no núcleo duro da Europa Ocidental - França, Alemanha, Benelux, Escandinávia - uma cultura basicamente socialdemocrata se implantou após a Segunda Guerra e ainda resiste, formando um modelo de sociedade até hoje insuperado, superior ao nosso e ao norte-americano.

Levantei no Facebook a questão que considero a mais relevante para o Brasil: por que países devastados, como a Alemanha de 1945, ou atrasados, como a Espanha de 1975, conseguiram "dar certo" - e nós não? As respostas racharam. Em geral, quem se situa à "esquerda" protestou contra a ideia de "dar certo", sustentando que nem os europeus vão bem nem nós, tão mal. Já quem se diz liberal receitou reformas econômicas, como a desregulamentação da atividade empresarial (o exemplo mais comum). Entendo que essas são duas formas de não responder à pergunta mais importante sobre a sociedade brasileira.

Ética e gestão, os dois pilares
da boa política

Começo discutindo as reações mais à esquerda.

Primeiro, o que é uma sociedade "dar certo"? Entendo:

1) um sistema de saúde eficiente e justo. Eficiente: que todos sejam atendidos bem, em prazo razoável, pelo menos para a maioria esmagadora das moléstias. Justo: ninguém receie que uma doença possa destruir sua renda ou patrimônio; a sociedade, pelo imposto (em especial, o de renda da pessoa física), cobrirá os gastos de saúde. Imaginem como esse ganho em termos de saúde melhorará as aposentadorias. Ninguém precisará passar a vida acumulando para o dia em que pagará 2 mil reais de plano de saúde, mil de remédios e ainda consultas e cirurgias.

2) uma educação de qualidade, gratuita ou quase. A importância inédita que a sociedade contemporânea atribui à educação tem duas grandes metas. Primeira: proporcionar, a todos, condições de concorrer em certa igualdade, neutralizando o bônus que a riqueza confere a alguns (e o bônus negativo que a pobreza inflige à maioria). Segunda: deixar que aflorem as mais variadas competências. Nunca houve sociedade rica e complexa como a atual. Ela precisa de competências mais variadas do que sociedades que só repetiam o passado. Hoje há mais espaço para cada um seguir sua vocação. Uma educação boa realiza vocacionalmente o indivíduo e capacita-o, se mostrar dedicação e empenho, a se projetar economicamente.

3) um transporte público bom, em grande parte - pelo menos nas maiores cidades - sobre trilhos. Na Grande Paris, mesmo no horário de pico dificilmente se gasta mais de uma hora e quinze para ir de uma ponta dos subúrbios a outra - com ou sem acidentes na rota. O transporte coletivo deve ser subsidiado, porque traz vantagens para a cidade, preservando-a da destruição operada por carros e avenidas. O Brasil é perverso: subsidia o carro privado, com isenção de impostos e construção de vias; por que não o transporte coletivo, que é mais saudável?

4) uma segurança pública decente, com policiais que respeitem o cidadão em vez de ameaçá-lo, e sejam dispostos e capacitados a apurar crimes.

Todos estes pontos associam ética e eficiência, valores e gestão. Todos tratam do que é mais justo socialmente, e do que é mais eficaz, virtude esta que geralmente associamos à economia e à administração. A fusão da ética com a eficiência é o segredo - que aguardamos - da boa governança.

Poderia falar da cultura, que aprimora qualidades humanas e capacidades profissionais, e das cadeias, que em vez de educar para o crime deveriam recuperar os detentos (como nas prisões rurais autogeridas de Minas Gerais, tema de recente reportagem do Valor), mas fico no "minimum minimorum". No Brasil, já seria uma revolução.

Esta satisfação das necessidades dá à Europa uma tranquilidade no convívio cotidiano. Se no Brasil as pessoas furam fila e passam pelo acostamento, em parte é pela crença de que "não vai haver o suficiente para todos": precisamos garantir o nosso, antes que a oferta se esgote. Mas, quando há bastante para todos, isso não é necessário. A vida fica melhor. O valor disso não tem preço.

Por isso, estranhei tanta gente que se diz de esquerda fechar os olhos ao desastre social que é nosso atraso nestes pontos. Os avanços petistas na inclusão social apenas tornam prioritária a construção de uma sociedade social-democrática (pouco a ver com o que propõe nosso partido de nome socialdemocrata). As faixas exclusivas de ônibus recentemente abertas em São Paulo fazem parte dessa mudança, mas que precisa ir além do emergencial - como as cotas, o elogiado Bolsa Família - e se tornar estrutural.

Estes anos, aumentou o dinheiro para os pobres consumirem, mas não houve um salto real nas funções distintivas do poder público. É paradoxal. O partido mais acusado de estatista promoveu um crescimento que beneficiou os pobres, sem tirar dos ricos. Talvez esteja se esgotando essa conciliação de classes. Talvez por isso, os conflitos sociais se tornem ásperos.

Discutirei, na semana que vem, o que a centro-direita propõe para o país dar certo.
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* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
E-mail: rjanine@usp.br
Fonte: Valor Econômico online, 30/12/2013

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

" Julinho e o ensino " - Artigos

ARTIGOS - Paulo Brossard*
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Um fato chocante e de inegável importância social foi divulgado por ZH dias antes do Natal ao retratar a alarmante deterioração de um dos mais conceituados colégios de Porto Alegre, o Julinho, como era familiarmente denominado o Julio de Castilhos. Ao tempo em que surgiam colégios de inspiração religiosa, logo consagrados pela excelência do ensino ministrado por notáveis educadores, o governo rio-grandense, de forte tintura comtiana, cuidou de formar seu colégio padrão, que viria a levar o nome do chefe republicano; cansei de ouvir referências respeitosas ao colégio laico destinado a cotejar com os católicos e evangélicos; o maior louvor suponho viesse daquele que o houvessem frequentado.

O trabalho da jornalista Letícia Duarte estendeu-se pelo ano escolar, de 27 de fevereiro a 22 de novembro de 2013; registrando o colapso do que fora um colégio modelar; é impossível resumi-lo, o espaço seria insuficiente para um resumo do resumo, limito-me a dizer que, a todos os títulos, o quadro é deplorável.

É óbvio que sem professor não há escola nem ensino, no entanto, no Julinho, até sete professores por dia faltam às aulas, 89% dos alunos chegam ao final do Ensino Médio sem aprender o mínimo em matemática, 38% saem do Ensino Médio e chegam ao Superior e não sabem ler e escrever plenamente; ao fundo da sala, alunos se divertem com equipamentos eletrônicos durante as aulas; essas singelas observações esclarecem por que a classificação do Brasil entre 65 nações ocupa posição desoladora. É de notar-se que isto acontece em um colégio que durante muitos anos foi dos melhores aqui existentes e em consequência no Brasil inteiro. Esta metamorfose não se operou de repente, o mal, por conseguinte não começou ontem.

O colégio que foi o melhor não se transforma no pior da noite para o dia. E o mais grave é que a degradação se infiltra a setores relevantes do país, do governo inclusive a de instituições docentes. Dir-se-á que existem, Deus seja louvado, colégios da melhor e mais justificada reputação e eu sei disso e como brasileiro por isto me felicito, mas infelizmente isto não justifica a cota de colégios de inqualificável reputação. Segundo as repercussões até agora conhecidas, verifica-se que há os que pensam que o fenômeno que deformou o Julinho tem caráter geral e há os que entendem que a falência do antigo e modelar ornamento do colégio oficial é uma exceção.

Não tenho elementos para opinar em favor de uma ou outra das interpretações, mas confesso a minha angústia cívica diante do espetáculo público do caso funesto e vexatório do Julinho, uma vez que os efeitos dele se irradiam aos demais graus do ensino; é evidente que o ensino primário contamina o Ensino Médio e este compromete o Ensino Superior; a esse respeito, louvores seriam poucos, se as numerosas universidades emergentes realmente encarnassem o que a sua denominação anuncia. Também neste caso me confesso sem condições de opinar em assunto de tal relevância, pois não conheço o real teor do ensino oferecido e, mais do que o ensino, da real formação de seus jovens frequentadores.

No entanto, há um dado idôneo que ajuda a esclarecer o problema em causa, não é segredo, foi amplamente divulgado que dos 65 países que participam do exame de avaliação internacional de alunos de 15 e 16 anos em várias áreas ficou o Brasil na 55ª posição em leitura, 58ª em matemática e 59ª em ciências. Dispensável dizer que esses dados indicam as carências do ensino no Brasil. Os dados referidos são dolorosos para não dizer humilhantes. O caso do Julinho soa como uma espécie de S.O.S. partindo da educação.

**** falência no ensino,na educação no Rio Grande do Sul.


*JURISTA, MINISTRO APOSENTADO DO STF

" As vísceras delicadas "

 



Marcelo Reis de Mello*
Delicadeza é uma palavra ambígua, difícil. Poderíamos usá-la para denunciar o lirismo comedido e afetado, como fez João Cabral em sua "Antiode": "Delicado, evitava/ o estrume do poema,/ seu caule, seu ovário, suas intestinações". E muito antes do pernambucano o simbolista francês Arthur Rimbaud já tinha escrito: "Por delicadeza/ Perdi minha vida". Mas também há quem enxergue na delicadeza uma potência positiva e uma sutil resistência à brutalidade do mundo. Além disso, a palavra sempre foi usada para enfatizar a perícia técnica e a sensibilidade invulgar dos poetas, não sendo difícil ler por aí que os versos de Drummond ou Bandeira - para ficar apenas com os exemplos canônicos - são de uma delicadeza extraordinária.

Tudo isso para dizer que o sexto livro do poeta carioca Eucanaã Ferraz, "Sentimental" (Companhia das Letras, 96 págs., R$ 32,00), é certamente delicado. Mas não é doce. Nem limpinho. Seu coração é uma víscera empedrada: "Quase só músculo a carne dura./ É preciso morder com força". Dentes fortes sim, sem dúvida, mas não para despedaçar ou despoetizar a poesia, como reivindicam alguns entre os seus pares. Ferraz não é um poeta barulhento, de punho cerrado e boca espumante. Mas nos melhores momentos a sua poesia é vigorosa, é radical.

Quando o livro "Desassombro" foi lançado, em 2002, Francisco Bosco afirmou acertadamente que Eucanaã Ferraz trabalha na "radicalidade dos desextremos". E é isso que o leitor encontra em todos os seus livros, inclusive no mais recente, no qual se recombinam os temas e as formas cristalizadas da tradição literária, para deslindar suas brechas, os interstícios, as margens dentro das margens.

Destacado no complexo cenário da poesia brasileira contemporânea por Heloisa Buarque de Hollanda, no fim dos anos 1990, Eucanaã Ferraz ficou conhecido pela revalorização da forma poética que os poetas marginais tinham trocado pela ideologia do desbunde e pelo espontaneísmo. O cuidado de Ferraz com o verso é acentuado desde "Martelo", de 1997, tornando-se perceptível principalmente pelo uso engenhoso dos "enjambements", ou cavalgamentos, que são os cortes ao fim dos versos.

Isso não basta, porém, para explicar os diferenciais e a qualidade da sua obra. Em retrospecto, a travessia do poeta pode ser vista como uma busca por formas sempre renovadas de dizer o mundo, sem estacar numa opção confortável ou em fórmulas bem-sucedidas. De um livro a outro, o que se nota é o enfrentamento com a tradição, a disposição ao erro e aos inevitáveis enganos de quem se reconhece lançado à transitividade das coisas e das palavras.

"Sentimental", que acaba de receber o Prêmio Portugal Telecom de Literatura, é a prova de que o autor se expõe ao abismo da língua sem cair no desespero. E mostra que é possível fazer um livro quase todo sobre a loucura, a solidão e a falta de sentido do mundo sem levantar a voz com arrogância sapiencial, sem desqualificar a diversidade da poesia, jogando igualmente com a prosa e com o lirismo.

Um dos poemas mais marcantes da recolha é "Sob a Luz Feroz do Teu Rosto", que aborda a distância escavada entre o ser amante e o ser amado; pois o amor transforma o outro em leão, em fera, e

"à visão de nosso coração
ofertado, tudo nele se eriça,
seu desprezo cresce (...)".

E é por isso que:
"Amar um leão não se devia,
agora que já não somos divinos,
quando a flauta que tudo
encantaria, gentes animais
pedras, nós a quebramos contra
a ventania;
amar um leão é só distância: tê-lo ao lado,
não poder beijá-lo, o deserto
que habita em torno dele (...)".

O amor de que fala Eucanaã Ferraz não está banhado na sopa açucarada do "lirismo namorador" (o sintagma é bandeiriano), mas não nega a possibilidade do sublime ou a descoberta da beleza que habita a nossa condição trágica. Sem dúvida há uma violência implícita no amor, que, como disse Baudelaire em "Meu Coração Desnudado", é uma forma de tortura. Aliás, a própria linguagem pode ser também uma espécie de coração pedregoso.

A grande poeta polonesa Wislawa Szymborska uma vez escreveu: "Não tenho porta - diz a pedra". Por isso, no poema "Sou eu, me deixa entrar", de Ferraz, vemos a própria Wislawa cochilando, exausta, com a cabeça recostada numa pedra. Só que dessa vez a pedra está se abrindo para ela e (em sonho) a convida a entrar, pois assaltou "as chaves com que os minerais se trancam". Mesmo assim, a pedra não se abre sem dificuldade, "porque não há desabrochar suave, em pétalas, quando/ se ignora totalmente a primavera e tudo o que se sabe,/ não podes imaginar, é o cavo escuro do chão".

Não há formalismo tacanho, tampouco uma leveza distendida ou beleza ornamental. Sua delicadeza está mais próxima da que nos fala Roland Barthes, no livro "O Neutro". Ali, o princípio de delicadeza é uma forma de perversão da linguagem, de paixão pela diferença ("neuter": nem um nem outro), que no caso de "Sentimental" se manifesta entre o verso e a prosa, a fábula e a alegoria, a simetria e a desordem, a partir de uma leitura revigorante da poesia moderna.

E se Cabral, Bandeira e Drummond são sempre citados, é importante frisar que a influência dos poetas portugueses sobre Eucanaã Ferraz é igualmente marcante. Indo ao encontro da ternura de Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade - ambos de uma beleza sem fim e ao mesmo tempo de uma lucidez inegavelmente trágica -, os poemas de Ferraz se enriquecem de uma volta ao outro lado do Atlântico. Em "Turístico de Lisboa", um de seus poemas mais narrativos, fica evidente a autoironia do poeta na relação precária dos brasileiros com os lusos: "Lisboa, diferentemente de Paris, é cidade dos amores/ desfeitos, sítio de desencontros, é o que diz a rapariga/ ao seu amigo que eu não posso ver assim de costas/ numa mesa d'A Brasileira. Os brasileiros parecem estar sempre de costas para os portugueses".

O poema mais impressionante do livro, que por si só já mereceria uma comemoração, se chama "El Labirinto de la Soledad". O título é em espanhol porque foi tomado emprestado de um livro homônimo do mexicano Octavio Paz, um dos personagens com quem Yuri Gagarin (o "protagonista" do poema) se encontra ao voltar de sua viagem à Lua. Nesse poema entendemos a familiaridade da palavra sentimental com a loucura - ou uma espécie particular de "ternura devastadora".

O astronauta retorna do espaço arrebatado ao ponto de não distinguir mais entre as coisas e as palavras e por isso se expressa apenas por tautologias:

"Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.
Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente
e dizia a água é transparente (...)".

Ninguém sabia se ele estava apenas sendo óbvio, tolo, ou se havia se convertido num "idiota/ que se comovia mais que o esperado". Foi então que os "vizinhos e cunhados decretaram:/ o homem estava doido; mas sua mulher assegurava/ que ele apenas voltara sentimental".

É como se Yuri tivesse conhecido o silêncio da pedra sonhada por Wislawa Szymborska, mas fosse incapaz de dizê-lo. O homem perde todo o senso pragmático e se volta não à transcendência, mas à beleza das coisas efêmeras: "O astronauta/ lacrimoso sentia o peito tangido de amor total/ ao ver as filhas brincando de passar anel/ e de melancolia ao deparar com antigas fotos/ de Klushino (...)". Podemos presumir que esse homem não era um cidadão exemplar na União Soviética, nos tempos da Guerra Fria:

"(...) um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que
Yuri Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe-se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamente isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas. (...)".

Com ironia fina, são postas em jogo tanto as imposturas e a hipocrisia do amor tipicamente burguês quanto a inaptidão para o amor dos burocratas comunistas. O senso pragmático de ambos faz que se tornem impermeáveis demais à loucura, à piração necessária ao amor, quando um indivíduo volta sentimental de um encontro com o sublime.

"Sentimental" é um livro muito rico e cheio de possibilidades de leitura. É merecido o reconhecimento do prêmio, que reivindica também uma atenção ainda mais generosa dos leitores de poesia e da crítica especializada. Eucanaã Ferraz é um autor delicado. Mas a delicadeza da sua poesia quase nunca é decorativa ou preciosista, apesar do polimento cuidadoso que ele dá às palavras; ao contrário, é um exercício sutil e constante de trapaça, movido por um desejo de burlar a rigidez dos dogmatismos literários. Sem recorrer a uma linguagem escandalosa, catastrófica, Ferraz acessa a violência do mundo. Por isso, a leitura de "Sentimental" é uma boa porta de entrada aos que desejam conhecer melhor o seu trabalho. E uma prova de que a poesia contemporânea está oxigenada, mesmo quando a asfixia do nosso tempo parece a única coisa a dizer.
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* Marcelo Reis de Mello é poeta, editor do selo literário Cozinha Experimental e membro da Oficina Experimental de Poesia. Sua dissertação de mestrado na UFF é sobre o conceito de delicadeza e a obra poética de Eucanaã Ferraz

domingo, 29 de dezembro de 2013

" Tática de guerrilha ( para homens distraídos )


 " Fabrício Carpinejar "
O que uma mulher mais reclama do homem é sua distração: esquece de observá-la, não valoriza os detalhes, não identifica surpresas e passa reto em datas importantes e comemorações amorosas.
Com objetivo de salvar casamentos e namoros, encontrei a saída do labirinto.

O homem deveria confessar que tem déficit de atenção já no primeiro encontro. Na verdade, déficit de atenção é um outro nome para egoísmo - ele só escuta o que quer e só faz o que deseja -, mas rebatizando o defeito terá uma nova vida sem atribulações e julgamento, sem críticas e implicâncias.

Tente, funciona perfeitamente.

Está começando uma relação, chame sua garota para perto, faça o olhar triste do Gato de Botas do Shrek, e puxe uma conversa séria:

— Antes de tudo, preciso expor algo, você tem o direito de não ficar comigo, eu entenderia, mas não desejo esconder nada: eu tenho déficit de atenção!

É óbvio que ela aceitará, todo mundo admite qualquer coisa que é dita na primeira semana de relacionamento (é a fase da tolerância e impunidade). Ela arregalará os olhos, lamentará a dificuldade, prometerá ajuda e não terá mais como cobrar absolutamente nada daqui por diante de seus lapsos e apagões. Será o paraíso fiscal, a redefinição mágica de sua rotina.

Você não reparou que ela cortou os cabelos, daí você diz:

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não lembrou que completam um ano de relacionamento, não comprou presente e flores.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você saiu com os amigos para beber, e não avisou.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não gravou quando ela avisou que não gostava de azeitonas e buscou servi-la.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não reconheceu o sogro de sunga e a sogra de biquíni.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você troca risos e bocas com uma estranha.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Você não notou que a casa está tomada de velas e que sua mulher dança sensualmente, e ligou a televisão no canal de esporte.

— Amor, você sabe que eu tenho déficit de atenção!

Mas, se ela se depilou e você não viu, por favor, não culpe o déficit de atenção, é o único caso que ele não pode ser usado. Vai voar um tabefe na sua orelha para voltar a ouvir. Ou para ensurdecê-lo de vez.

" Boa Entrada "


Vou citar dois filmes antigos. Um é o inglês Mero Acaso, de 1999. Primeira cena: um rapaz bate na porta do vizinho, que é psiquiatra, e diz que precisa desabafar. São 6 horas da manhã, o vizinho ainda está de pijama, mas diante do inusitado da situação, convida-o para entrar e o acomoda numa poltrona.

O outro filme é o francês Confidências Muito Íntimas, de 2003. Um mulher está se separando e procura um psiquiatra pela primeira vez. Entra sala adentro e já começa a contar seu drama, sem dar tempo para o homem respirar. Ele fica absolutamente envolvido pela história dela.

Mesmo que você não tenha visto estes filmes, pode imaginar o que eles têm em comum. No filme inglês, o homem se enganou de porta e bateu na casa de um engenheiro, que ouve tudo quieto e só então avisa que o psiquiatra mora no apartamento ao lado.

Mesmíssima coisa no filme francês. A mulher se enganou de porta e invadiu o consultório de um contabilista. Mesmo depois do engano desfeito, os dois seguem se vendo para amenizar a solidão um do outro.

Ambos os filmes demonstram que terapia é, basicamente, uma via de desabafo, de investigação emocional, de elucidação de si mesmo, e tudo isso se dá quando estamos dispostos a falar.

Então qualquer amigo poderia substituir um profissional? Não. Conversar com amigos é ótimo, porém eles estão comprometidos afetivamente conosco. Conhecem a nossa história e já não prestam atenção nos detalhes. E tomam um tempo para falar deles mesmos, o que é natural. Além disso, estes papos são frequentemente interrompidos pela chegada do garçom, por um telefone que toca, por outras distrações. E, pra culminar, você não está pagando. Faz diferença. Você não é o centro das atenções. É um encontro, literalmente, gratuito. E, em terapia, o foco tem que estar todo em você. Vigilância total para você não fugir de si mesmo.

Longe de mim estimular alguém a bater na casa do vizinho para contar seus sonhos e fantasias secretas. Ele mandará você plantar batatas, com razão. O que interessa disso tudo é o crucial: o quanto é importante falar. E ser profundamente escutado. E, mais profundamente ainda, escutar a si mesmo. Não é fácil ouvir nossa própria voz verbalizando aquilo que sentimos de forma tão confusa e irregular. É quando passamos a reconhecer abertamente nossas inquietudes, medos, vergonhas. E a nos comprometer com o que está sendo dito. A verdade ganha legitimação. Deixa de habitar apenas o silêncio, onde tudo fica protegido demais.

Alguns não acreditam em terapia e dizem que não é qualquer um que merece ouvir nossas intimidades. Mas tem que ser qualquer um, no sentido de qualquer desconhecido, qualquer pessoa que não tenha nada contra e nada a favor de você, que não lhe conheça, para poder lhe ouvir sem uma opinião prévia sobre sua história. De preferência qualquer um com um diploma na parede e competência para ajudá-lo a se conhecer pra valer.

Que lhe faça descobrir os efeitos terapêuticos de ouvir a própria voz assumindo questões que até então não eram enfrentadas. Dá para fazer isso sozinho também, mas com um interlocutor é mais fácil. Ou menos difícil. Tente. Nada como bater na própria porta e entrar. Feliz 2014
Um bonito,saudável e feliz 2014
 

" Presente de grego no natal " - tipicidade dos políticos,no Brasil e do Brasil !!!


ELIANE CANTANHÊDE



BRASÍLIA - Os viajantes brasileiros deixaram (deixamos) mais de US$ 20 bilhões no exterior neste ano. No fim das contas vai dar umas cinco vezes mais do que a compra de caças suecos para renovar a frota da FAB, a serem pagos durante décadas.

Em vez de aquecer a economia do Brasil, estamos movimentando o comércio e gerando empregos nos países alheios, sobretudo nos ricos. Miami passou a ser o principal destino da brasileirada, que volta com malas gigantescas abarrotadas de peças de grife e todo tipo de bugiganga.

Na versão cor de rosa do governo, tudo isso é resultado do sucesso: o país está bombando, e os brasileiros estão cheios de amor para dar e com montanhas de dinheiro para viajar e gastar. Mas a realidade é outra e tem um nome: preço. Os preços no Brasil estão pela hora da morte.

Numa tarde em Miami, sentei para tomar um café e me senti em casa, mas a minha casa é aqui. À mesa da direita, paulistas; à da esquerda, nordestinos. E havia três moças de Minas. Todos cheios de sacolas.

Na volta, fiquei vagando duas horas num shopping em São Paulo à procura de lembrancinhas de Natal e tudo o que comprei foram dois lencinhos de seda, só para não sair de mãos abanando. Ah! E gastei R$ 60 de estacionamento num único dia.

Os produtos nacionais viraram artigo de luxo, os importados custam três vezes mais que nos EUA. Nem as feiras e o comércio popular escapam. Imagine a aflição da maioria de trabalhadores ao procurar brinquedos, tênis e roupas para os filhos.

Não foi nenhuma surpresa saber que o comércio teve seu pior Natal em 11 anos. A surpresa ficou por conta da reação desvairada do governo: em vez de se preocupar e se ocupar com os preços internos abusivos, aumentou o IOF e penalizou os cartões de débito em moeda estrangeira. Falta pão? Suprimam-se os brioches.

Se o brasileiro ficar, o bicho preço come; se correr, o bicho imposto pega. Obrigada, presidente Dilma, pelo presente de grego no Natal.

" A Privataria PETISTA mora nos detalhes "


                                ELIO GASPARI



A privatização dos aeroportos da Viúva pode virar um grande espetáculo de especulação imobiliária

Durante o tucanato converteram-se papéis podres de dívidas da União em moeda corrente, juntaram-se financiamentos do BNDES, dinheiro dos fundos de pensão estatais e torrou-se a patrimônio do Viúva na festa da privataria. O comissariado petista diz que não faz isso, pois não vende o que é da Boa Senhora. Tomando-se o caso dos leilão dos aeroportos, resulta que fazem diferente, e pior.

Em novembro a Odebrecht, associada a uma operadora de aeroporto de Cingapura, arrematou a concessão do Galeão por R$ 19 bilhões. Quem ouve uma coisa dessas acredita que o futuro chegou. As vítimas da Infraero pensam que se livrarão do dinossauro e que o novo dono investirá seu dinheiro no aeroporto para torná-lo uma vitrine da cidade. Não é bem assim. A Infraero continua com 49% do negócio, e o velho e bom BNDES, mais um fundo de investimentos estatal, botaram R$ 1,4 bilhão na operadora de transportes da Odebrecht. Somando-se essa participação à da Infraero, a Viúva fica com mais de 50% do Galeão.

Pode-se argumentar que a gestão ganhará a eficácia da iniciativa privada, mas ganha uma passagem de ida a Davos quem sabe onde terminam os braços das empreiteiras e onde começa o Estado dos comissários. Ganha a passagem de volta quem sabe onde termina a máquina de administração de serviços do Estado e onde começa a das empreiteiras.

Até aí, ainda haveria lógica, mas, conforme o repórter Daniel Rittner revelou, as empreiteiras que arremataram as concessões dos aeroportos de Guarulhos, Brasília e Viracopos querem fazer uma pequena mudança nos contratos assinados em 2012. Pelo que se acertou, as concessionárias podem construir hotéis, centros de convenções e torres de escritórios nas áreas arrendadas, explorando-os por períodos de 20 a 30 anos. Agora, uma associação de concessionários cabala a prorrogação da posse dessas melhorias. Nesse caso, o negócio não é administrar aeroporto, mas explorar empreendimentos imobiliários. Parece a piada do chinês de Nova York: "Meu negócio é a tinturaria, venda de cocaína é disfarce".

A privataria tucana patrocinava grandes tacadas iniciais, a petista move-se suavemente nas mudanças dos contratos. Cada mudança, um negócio. Para quem quer desmoralizar o país como destino de investimentos estrangeiros, nada melhor. Nem a criatividade dos advogados da bancada da Papuda seria suficiente para explicar a uma empresa que entrou no leilão de um aeroporto e teve seu lance superado que devia ter previsto a possibilidade da extensão do período de exploração dos empreendimentos imobiliários.

A doutora Dilma deve botar sobre sua mesa um talonário do jogo do bicho carioca: "Casa Lotérica São Jorge, vale o que está escrito".

PRIVATARIA NO RIO

A Prefeitura do Rio e o Instituto do Patrimônio Histórico continuam apanhando dos aproveitadores que privatizaram o espaço público e tombado do Aterro do Flamengo.

O Iphan embargou a construção do Cirque do Soleil na Marina da Glória, a empresa que explora o espetáculo recorreu, e o próprio instituto voltou atrás. Jogo jogado. Ninguém está aqui para cortar a alegria de quem quer ir ao circo nem para atrapalhar os negócios de quem oferece festas ao povo.

A área do Aterro foi tombada pelo Iphan nos anos 60. Ali não podem ser montados circos nem mafuás. Quando Eike Batista tinha os poderes da kriptonita que faziam dele um super-homem, tentou transformar a Marina num centro de convenções anexo ao Hotel Glória. Para isso, contou com o estímulo da Prefeitura do Rio e com a distração do Iphan. Deu no que deu.

Tudo o que se pede é que o Iphan e a prefeitura anunciem que, com o fim da temporada do circo, o Aterro estará blindado, como manda a lei.

GUIDO VANDERBILT

Diante do avanço do Imposto de Renda sobre o andar de baixo, o ministro Guido Mantega recusou-se a discutir o assunto.

É o modelo Alice Vanderbilt. Um dia ela chegou atrasada a um jantar porque seu motorista não lembrava direito o endereço. Ela lembrava, mas não dirigia a palavra a criados.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo transferirá seu domicílio eleitoral para o Estado do Paraná. Quer votar em Gleisi Hoffmann. Graças a ela, aprendeu que "não temos como evitar chuvas".

O cretino acreditava que o PT cuidaria disso, mas viu-se gratificado com a demonstração de modéstia da comissária.

BARROSO, A ESCOLHA FELIZ DOS COMISSÁRIOS

Se o ministro Luiz Fux foi uma decepção para o comissariado, seu colega Luís Roberto Barroso surge como uma surpresa alentadora. Num caso pode ter ocorrido um erro tático, no outro deu-se um acerto estratégico.

A simpatia dos comissários decorre da antiga militância do doutor Barroso na defesa de uma modalidade de voto de lista e na enfática condenação do atual sistema eleitoral. Ele aceita sistema distrital misto, com lista e voto majoritário, mas nem ele nem ninguém explicou como serão desenhados os distritos, fonte de corrupção na atual política dos Estados Unidos.

Num artigo para a revista eletrônica "Consultor Jurídico", Barroso classificou o "atual sistema de voto proporcional e lista aberta" como "antidemocrático e antirrepublicano". Direito dele, mas trata-se de algo decidido pelo competente poder democrático e republicano, que é o Congresso. Ainda não apareceu jurisconsulto palaciano defendendo que essa atribuição seja passada aos tribunais.

Barroso sustenta que, depois das sentenças do mensalão e da ida do povo para a rua, o país precisa de:

1) "A alteração drástica do sistema político, na qual o dinheiro sem procedência é o personagem principal."

2) A reforma do sistema punitivo brasileiro, "seletivo, racial e classista".

Precisa, mas faltou dizer que convém botar mais gente na cadeia, visto que "dinheiro sem procedência" não anda sozinho. É preciso que alguém o ponha no bolso.

Atualmente, o dinheiro rola porque, além das doações legais, há o caixa dois. Quando o Supremo proíbe as doações ilimitadas de empresas, trava apenas o ervanário com procedência. Nenhum tostão do mensalão saiu de doações legais. Para conter o dinheiro ilegal só há um caminho: o medo da Papuda, e povoá-la é função do Judiciário.

Isso tudo pode acabar na realização do sonho petista do financiamento público das campanhas. (Com o PT recebendo a maior fatia desses recursos.) Junto com o voto de lista, resultará no seguinte: o eleitor paga pelas campanhas e ainda por cima perde o direito de dizer que votou no candidato de sua escolha, pois quem fixa a ordem de sagração dos parlamentares é o partido. No atual sistema, houve eleitores que votaram em Delfim Netto e foi para a Câmara Michel Temer. Coisa esquisita, mas o cidadão sempre poderá dizer que votou em Delfim. E o caixa dois? Barroso acredita que ele acaba.

" Alquimia na quitanda "

as quitandas,traduziam o povo no brasil ...
FERREIRA GULLAR

A realidade é impermeável, enquanto a outra, feita de palavras, amolda-se a nossa insatisfação com o real

Pode ser que, no final das contas, isso que vou dizer aqui não interesse a ninguém, mas é que, numa crônica em que falava das poucas coisas que lembro, esqueci de mencionar uma das que mais me lembro: as bananas que, às vezes, ficavam sem vender e apodreciam na quitanda de meu pai.

Aliás, se bem me lembro, não era na quitanda dele e, sim, na de uma mulata gorda e simpática que, na rua de trás, vendia frutas: bananas, goiabas, tamarindo, atas, bagos de jaca e manga-rosa. Mas o que é verdade ou não, neste caso, pouco importa, porque o que vale é o momento lembrado (ou inventado) em que as bananas apodrecem. E mais que as bananas, o que importava mesmo era seu apodrecer, talvez porque o que conta, de fato, é que ele se torna poesia.

Essas bananas me vieram à lembrança quando escrevi o "Poema Sujo". Jamais havia pensado nelas ao longo daqueles últimos 30 anos. Mas, de repente, ao falar da quitanda de meu pai, me vieram à lembrança as bananas que, certo dia, vi dentro de um cesto, sobre o qual voejavam moscas varejeiras, zunindo.

Haverá coisa mais banal que bananas apodrecendo dentro de um cesto, certa tarde, na rua das Hortas, em São Luís do Maranhão? Pois é, não obstante entrei naquele barato e vi aquelas frutas enegrecidas pelo apodrecer, um fato fulgurante, quase cósmico, se se compara o chorume que pingava das frutas podres ao processo geral que muda as coisas, que faz da vida morte e vice-versa.

E essas bananas outras --não as da quitanda, mas as do poema-- inseriram-se em mim, integraram-se em minha memória, em minha carne, de tal modo que são agora parte do que sou.

Agora, se tivesse de dizer quem sou eu, diria que uma parte de mim são agora essas bananas que, no podre dourado da fantasia, me iluminaram, naquela tarde em Buenos Aires, inesperadamente, tornando-me dourados os olhos, as mãos, a pele de meu braço.

Entenderam agora por que costumo dizer que a arte não revela a realidade e, sim, a inventa? Pois é, as bananas de dona Margarida, apodrecendo num cesto, numa quitanda em São Luís --e que ela depois, se não as vendesse, as jogaria no lixo--, ganharam outra dimensão, outro significado nas palavras do poema e na existência do seu autor. Porque a banana real é pouca, já que a gente a torna mais rica de significados e beleza.
Veja bem, não é que a banana real não tenha ela mesma seu mistério, sua insondável significação. Tem, mas, embora tendo, não nos basta, porque nós, seres humanos, queremos sempre mais. Ou seria esse um modo de escapar da realidade inexplicável?

Se pensamos bem, a banana inventada pertence ao mundo humano, é mais nós do que a banana real. E não só isso: a realidade mesma é impermeável, enquanto a outra, feita de palavras, amolda-se a nossa irreparável insatisfação com o real.

Depois que as bananas podres surgiram no "Poema Sujo", numa situação de fato inventada por mim, e mais verdadeira que a verdadeira, incorporaram-se à memória do vivido, de modo que, mais tarde, elas voltaram, não como invenção poética, mas como parte da
vida efetivamente vivida por mim.

Sim, porque criar um poema é viver e viver mais intensamente que no correr dos dias. Por isso, como se tornaram vida vivida, me fizeram escrever outros poemas, já que a memória inventada se junta à experiência real, quando novos momentos também se tornarão memória. Até esgotarem-se, e se esgotam.

Do mesmo modo que não sei explicar como a lembrança das bananas apodrecidas na rua das Hortas voltou inesperadamente naquela dia em Buenos Aires, nem por que, depois de cinco reincidências, a lembrança das bananas cessou, apagou-se, nenhum poema mais nasceu daquela experiência banal, vivida por um menino de uns dez anos de idade sob o calor do versão maranhense.

Foi o que pensei, mas o assunto não morrera. Ao ver uma folha de jornal suja de tinta, onde limpava os pincéis, pareceu-me ser a mesma cor das bananas podres. Recortei o papel em forma de bananas e fiz uma colagem. Logo me veio a ideia de fazer outras para ilustrar os poemas sobre elas. E disso resultou um livro de colagens, com os poemas que preferi escrever a mão.

 

sábado, 28 de dezembro de 2013

" QUANDO sempre é Natal "

" Palavra de Médico "
   Dr J.J.Camargo
 
Passado o Natal, havia que inventariar as mensagens, reter algumas poucas na gaveta, fazer backup das enviadas por e-mails, armazenar todas no coração.
 
Entre estas, uma mensagem especial, como especial é o seu autor. Milton Meier é uma lenda da cirurgia cardíaca carioca e brasileira. O conheci há quatro anos, quando postulei uma vaga na Academia Nacional de Medicina, eu estreante na disputa, e ele concorrendo pela segunda vez. Ficamos amigos durante a campanha, e me apaixonei por ele quando, disfarçando a euforia pela vitória, fui abraçá-lo depois da eleição, e ele foi capaz de me dizer: "Perdi de novo, mas desta vez ganhei em te conhecer!".
 
Pois este tipo, de grandeza invulgar, mandou-me a seguinte história como mensagem de Natal, tudo com a cara dele. Vejam como é fácil gostar do Milton Meier:
 
"Tratei uma vez um menino pequeno e magricela, chamado André. Ativo e esperto, vivia gripado. As visitas ao médico eram sempre iguais, uma ausculta rápida, uma espiada na garganta e ia embora com uma receita. Um dia alguém mais cuidadoso pediu uma radiografia e se descobriu que o menino tinha um defeito cardíaco que lhe causava problemas respiratórios e lhe impedia de crescer. Era preciso corrigir o defeito, e a cirurgia transcorreu sem problemas.
Os pais receberam a boa notícia e a informação de que, depois de uns quatro dias, poderiam levá-lo para casa. Na manhã seguinte, quando os efeitos da anestesia já deveriam ter passado, o André não acordou. A despeito de todos os exames normais, ele continuava dormindo, respirava preguiçosamente e necessitava de aparelhos. Eram outros tempos aqueles e não existiam os mesmos recursos de hoje.
Após operações cardíacas, as lesões neurológicas não eram raras. Três ou quatro dias se passaram e estávamos todos muito preocupados. A mãe me contara que o aniversário dele era logo depois do Natal e eu havia prometido que naquela data ele já estaria em casa. Mas nesta noite o André continuava na UTI, necessitando de cuidados. Desolado, decidi ficar com ele. Estávamos sós, o dorminhoco, uma enfermeira e eu. Pouco depois da meia noite, me aproximei da cama e perguntei: 'Quantos anos será que ele vai fazer?'. André mexeu-se, abriu os olhos, levantou o braço e mostrou: quatro dedinhos. A angústia explodiu em alegria, os alarmes dos monitores se tornaram sinos badalando e as luzes opacas em estrelas brilhantes. Que maravilhoso presente, aqueles olhos abertos, me vendo, e o menino acordado! André teve alta, cresceu, se formou, casou, e hoje é pai de uma linda família. Mas mesmo que eu viva cem anos, aquele sempre será o meu melhor Natal!"
Obrigado amigo, por compartilhar esta história de puro afeto. Para os corações generosos, os sinos podem ser dispensados, mas o NATAL acontece todos os dias.

" Na rua ou no mundo ??? "

CAROL BENSIMON

Eu tinha um desses telefones celulares muito simples e muito antigos, com uma parte que deslizava sobre a outra, uma pequena tela, e nada de internet. Saía para jantar. Todos os amigos vidrados em seus iPhones. Não preciso listar aqui as vantagens de se ter um celular com 3G. Um dia, nós queríamos saber o nome daquela música do Simply Red, e de repente lá estava ela. Então, já não era o bastante. Assistimos ao clipe. Uma mulher gigante debruçada sobre dunas, aquela sobreposição bizarra de imagens, e finalmente alguma coisa preta grudada em um dos caninos do vocalista, Mick Hucknall. Ver aquele vídeo foi o pico da noite.

Dá pra dizer que virou quase uma luta de gerações, baby boomers x geração Y, você pode ficar com sua estética duvidosa, Mick, com seu céu de estrelas falsas, porque nós temos os celulares, o Facebook, nós temos o Lulu e os abusos da PM em tempo real. Nós temos Aline (vamos chamá-la de Aline) desfiando memórias escolares e, ao mesmo tempo, levando às últimas consequências uma discussão com o namorado via WhatsApp. Lide com isso, Mick.
" O famoso tijolão "


O.k., vamos ser sinceros agora. Eu nunca engoli muito bem essa coisa de estar em dois lugares ao mesmo tempo, não fosse como uma maneira de aumentar exponencialmente minha já preocupante ansiedade. Sei que o sintoma não tem nada de pessoal (ou ao menos não só): é um reflexo do mundo de hoje como o era, no século 19, a histeria das mulheres vienenses. Você sabe exatamente do que eu estou falando. A ansiedade que vem da espera do próximo e-mail ou da próxima mensagem. A frustração quando não há nenhum e-mail e nenhuma mensagem.

Se todo mundo sente, significa que está tudo bem? Não necessariamente. Minha maneira de lidar com isso foi apelar para uma solução pessoal e irredutível: não me permitir estar conectada o tempo todo. Nada de celulares com 3G, portanto. Radical como colocar pimenta nas unhas de quem está habituado a roê-las? Talvez. Tenho certeza, no entanto, de que não sou a única e de que os mais corajosos optaram por abolir o uso dos celulares (neste preciso instante, aliás, gargalham com minha solução paliativa, hesitante, parcial, vergonhosa).
A propósito: aquele meu celular jurássico estragou. Semana passada, comprei um outro que me promete acesso ao mundo, mas declinei o convite e, quando saio na rua, é na rua que estou. Simples assim.

" A Impunidade nocauteada "

é o descaso da Política Brasileira.!!!
                                                                         EDITORIAIS

Ninguém acreditava, nem os próprios condenados, mas o processo judicial conhecido como mensalão resultou na prisão de personagens importantes da vida nacional, entre os quais um ex-ministro, vários parlamentares, empresários e banqueiros. Reconhecido como um dos maiores escândalos de corrupção da história do país, a compra de apoio parlamentar pelo governo demorou mais de oito anos para ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal, mas acabou se transformando num golpe real na impunidade: dos 38 investigados pelo caso, 25 foram condenados em dezembro de 2012 e nove tiveram seus últimos recursos avaliados pela Corte em novembro último. Até a metade de dezembro, 17 condenados já estavam na cadeia e um, foragido no Exterior.

O julgamento ainda suscita controvérsias, especialmente por parte de dirigentes e militantes do Partido dos Trabalhadores, que sofreu um abalo na sua reputação em decorrência do envolvimento de figuras proeminentes da agremiação no pagamento de propinas a políticos. Mas a maioria da população brasileira apoiou integralmente a decisão colegiada da Suprema Corte, composta por 11 ministros, oito deles indicados por governantes petistas.

Apesar do inconformismo dos militantes do PT, os réus tiveram amplo direito de defesa e o julgamento não poderia ter sido mais transparente, pois todas as sessões da Corte tiveram cobertura permanente da imprensa. Durante várias semanas, o país acompanhou atento os debates entre os magistrados, as acusações do procurador-geral da República e as defesas dos advogados.

Nesse período, entraram para o vocabulário nacional termos jurídicos como a Teoria do Domínio do Fato – pela qual é considerado autor de um crime a pessoa que, mesmo não tendo participado diretamente do ato infracional, decidiu, ordenou ou facilitou a sua efetivação – e embargos infringentes, que são recursos cabíveis contra decisões não unânimes de segunda instância, desfavoráveis aos réus. O julgamento também transformou em celebridade o relator do processo e atual presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa, que se mostrou inflexível nas condenações.

Habituada a ver delinquentes poderosos escaparem impunes, parcela expressiva da população brasileira celebrou no último dia 15 de novembro, quando o Supremo decretou a prisão imediata de 12 réus condenados no processo. É exagero dizer que o desfecho da Ação Penal 470 assinala o fim da impunidade no país, até mesmo porque há processos semelhantes inconclusos, entre os quais o chamado mensalão tucano, que envolve um ex-governador mineiro. Mas não há dúvida de que foi o fato mais marcante de 2013 e tende a se transformar numa referência de moralidade para a política brasileira.

Ainda é cedo para se saber se a condenação dos réus do mensalão realmente inaugurará um novo tempo e contribuirá efetivamente para reduzir os casos de corrupção na administração pública do país. Porém, a partir da ampla exposição do episódio, já se percebe um significativo resgate da confiança dos brasileiros nas instituições democráticas e no poder dos cidadãos para exigir honestidade e integridade de seus representantes.

" A virada dos céticos "





Adivinhos de todos os signos e de todos os credos já fazem aquecimento para a virada do ano. Sou cético de nascença, mas também me arrisco a fazer uma previsão: eles vão errar quase tudo. Claro que, com tantos chutes na Lua, alguém sempre pode tirar a Mega Sena da adivinhação e fazer o seu nome em cima disso. E tem aquelas que são pule de 10: um ator de novela vai morrer, um político ilustre não vai se eleger, um cantor de rock vai se envolver com drogas, um jogador de futebol ficará fora da Copa por lesão... Isso até eu sou capaz de prever.

Quero ver é o cara dizer que o Papa vai renunciar e que um argentino assumirá o seu lugar. Quero ver o sujeito jogar os búzios e alertar para as manifestações de rua que explodiram em junho pelas ruas do Brasil. Ou um desses estudiosos das estrelas avisar que no dia 15 de fevereiro um meteoro de 10 toneladas cruzará os céus da Rússia, quebrará vidraças e provocará ferimentos em cerca de mil pessoas. Como se vê, nem mesmo as previsões de cunho científico são precisas – que o diga o Cléo Kuhn, porta-voz diário da inconstância das nuvens.

Não faltará alguém para alegar que acertou a morte do Mandela (que tinha 95 anos) ou do Hugo Chávez (já doente). E a quebra do Eike Batista? E as denúncias do Snowden sobre a espionagem americana? Se olharmos para as retrospectivas do ano, que estão sendo apresentadas pelos veículos de comunicação, dificilmente perceberemos algum desses oráculos.

Os melhores (e talvez os únicos) visionários são aqueles que colocam o futuro na ponta da ferramenta. Se não podemos prever o futuro, podemos construí-lo. Mas isso, com todo respeito aos defensores das ciências esotéricas, se faz muito mais com trabalho do que com bola de cristal. Não estou condenando quem faz previsões ou quem acredita nelas. É humano acreditar, como é humano rezar para que aconteça aquilo que a gente deseja. Só condeno quem explora a boa-fé dos crentes e utiliza a enganação em benefício próprio.

Também reconheço que tentar adivinhar o amanhã não é só uma brincadeira. Apostadores, políticos, economistas, investidores e cientistas, entre outros, dedicam-se a exercícios de futurologia com a maior seriedade, muitos deles arriscando fortunas e carreiras. Normalmente se saem melhor aqueles que dão uma forcinha para o futuro, preparando-se para sua chegada.

Que 2014 seja um ano maravilhoso para todos – mas, por favor, não esqueçam de viver cada dia como se não houvesse calendário. Quem não luta pelo futuro que quer acaba tendo que aceitar o que vier.
 

" O que será , que será ??? "



      Pessoalmente, me tornarei mais burro. Minha capacidade de adaptação ficará ainda menor
Uma certeza já tenho para o ano que entra: haverá um contínuo desfile de caras feias. Teremos horário eleitoral. Alguém já viu político bonito? Existem alguns, mas são raros. Em novelas e séries de televisão, o elenco é importante para atrair o público. Os políticos têm a vantagem do horário obrigatório, portanto não têm de se esforçar em relação à aparência. Serei obrigado a ver um por um.

Óbvio, político não tem de ser belo. O ideal é que seja honesto, não corrupto, empreendedor, cheio de projetos, bom gestor etc. Mas me pergunto: não sobra dinheiro para comprar um creminho? A própria presidente Dilma anda engordando. Em campanha, será mais difícil emagrecer, pois será obrigada a comer de tudo, para não ofender os eleitores.

Dilma engordará ainda mais. E ficará mais impaciente durante a campanha, se for obrigada a deglutir buchada de bode, como ocorreu com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, num episódio inesquecível. Aguarde a balança, presidenta!

De maneira geral, não importa muito o que os políticos, sem me referir a nenhum, terão de engolir na campanha. Eles nos farão engolir mais coisas, depois de eleitos, e essa é uma previsão que já fica para 2015.

Pessoalmente, me tornarei mais burro. À medida que os anos passam, minha capacidade de adaptação à realidade se torna menor. Brinco chamando de burrice, porque a questão é mais profunda. Sou da geração que está com 60 anos. É quase impossível acompanhar o mundo. Já nem sei quantas reformas ortográficas ocorreram durante meu tempo de vida. Foram algumas, e eu teria me adaptado, se não houvesse exceções em todas elas. Caem acentos, mas em alguns casos permanecem. Hifens sobrevivem.

E assim por diante. Já me conformei, nunca mais escreverei de maneira tão perfeita quanto antes. Já não consigo nem guardar a data de aniversário dos amigos. Também aposto, e isso já é uma certeza, que surgirão inovações tecnológicas que não absorverei. Gente, sou da época da máquina de escrever. Não tenho saudades, o computador é mais prático. Mas tudo faz tanta coisa, que já não sei como me virar. São programas e mais programas capazes de resolver minha vida, se eu soubesse lidar com eles. Basicamente, continuo usando a máquina para escrever textos, enviar e-mails.

Há mais ou menos 30 anos, quando o computador doméstico começou a ser usado no país, eu me orgulhava de ser um precursor. Entre meus amigos, fui o primeiro a comprar um. Passava as noites decifrando programas. Cheguei até a pensar em dar um golpe financeiro pela internet, mas não achei cúmplice. (Sempre penso em golpes, mas acabo deixando para meus personagens.) Hoje surge uma novidade por minuto.

Abro meu computador, e algum programa deixou o silêncio do HD para invadir minha tela. Passo horas tentando reprimi-lo para voltar a escrever. Estou falando no celular e, de repente, entra um programa diferente, que interfere na ligação. Já me explicaram que o problema não está no aparelho, mas na forma como o coloco na orelha. Existe combinação perfeita para orelha e celular, meu Deus? Sonho com um celular que faça e receba ligações, apenas isso. Um computador que sirva para criar e enviar textos, não mais. Aparelhos simples, em que eu possa mexer sem correr o risco de danos cerebrais.

Mas o mundo caminha noutra direção – e isso não é uma aposta. É uma certeza. Conto os dias para o lançamento do robô doméstico. Vai chegar, e não falta muito. As grandes montadoras do Japão estão de olho nesse mercado. Há anos apostam no produto. Já cheguei a ver um que serve cafezinho, em Tóquio. Alguns robôs específicos já fritam hambúrgueres. Há um aspirador de pó robotizado. Pensa-se em “cuidadores”, que acompanhem e deem medicação a pessoas inválidas.

Entre minha dificuldade para acompanhar toda essa tecnologia e as surpresas que ela oferecerá, fica uma última aposta. Há alguns anos, numa conferência no Japão, conheci o trabalho de um gênio que tentava criar robôs capazes de agir em grupo e de reagir ao meio ambiente.

Mas... isso não é mais ou menos o que somos? Não se tratará, de fato, de uma nova espécie?

Isso me assusta um pouco, mas não mais que o jeitão dos políticos. São eles que decidirão como usar a revolução tecnológica em larga escala. Se você apostar no que vai acontecer, perderá. Será sempre algo pior. Penso no que virá com os saltos da tecnologia em suas mãos.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

" Me ensina a esquecer "

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DAVID COIMBRA



Meu filho já deveria ter largado o bico. Seis anos de idade, francamente. Ele sabe disso, tanto que, neste ano, decidiu que entregaria o bico para o Papai Noel. Desde novembro vem falando:

No Natal, vou dar o bico para o Papai Noel. Eu vou.

Noel. Eu vou. Bem. Contratei um Papai Noel. Um ótimo Papai Noel. Eu mesmo quase acreditei que fosse o próprio, vindo direto do Polo Norte com seu trenó voador. Quando ele chegou à porta, batendo sino, meu guri saiu correndo pela casa:

O bico! Tenho que achar o bico!

De fato, mal o Papai Noel entrou, ele lhe estendeu o bico: – Ó.

Depois, encheu o Papai Noel de perguntas. Sobre o clima da Lapônia, sobre a velocidade das renas, sobre o salário dos duendes que trabalham na fábrica de brinquedos. A festa prosseguiu, depois que o Papai Noel se foi, e o meu guri se distraiu com os brinquedos novos, sobretudo com um mínion, ele adora os mínions. Então, chegou a hora de dormir.A hora do bico. Nesse momento, acometeu-o uma violenta síndrome de abstinência.

– O bico! – implorava, aos prantos.

– Quero o bico! Liga pro Papai Noel! Liga pro celular dele! Tentei consolá-lo sugerindo que pensasse nos brinquedos que havia recebido. Que tentasse esquecer do bico.

– Mas eu não consigo esquecer! – Ele gritava.

– Não consigo esquecer! – E, olhando para mim com os olhos rasos d’água, pediu:

– Pai, me ensina a esquecer! Me ensina a esquecer.

Suspirei.

Disse que ia tentar. Que aprender a esquecer talvez seja o mais importante da vida, porque a vida é feita de perdas. Que, às vezes, é fundamental deixar de lutar, aceitar a derrota e seguir em frente, porque lá adiante tudo será novo e diferente e, decerto, melhor.

– Em certas ocasiões, a gente tem que desistir, meu filho. Simplesmente desistir. Porque, depois que a gente desiste, começa a esquecer, e vai esquecendo, vai esquecendo, até que um dia aquilo não faz mais falta e a gente olha e nem quer mais.

Ele esfregou os olhos.Aprumou-se na cama:

- Eu vou desistir do bico, pai. – Isso. Isso...

– Porque é bom esquecer.

Eis a verdade. É bom esquecer

" Judiciário , onde estás ? "


ARTIGOS Claudia Gay Barbedo*
 



Nos últimos dias, anteriores ao recesso forense, não faltaram advogados batendo à porta do Judiciário com a finalidade de regulamentar a convivência das férias de verão entre pai e filhos. O ponto nevrálgico dessa questão é a resposta do Judiciário, quando provocado a se manifestar, que acaba, por cautela injustificada, restringindo a convivência de pai e filhos nas férias de verão. Pois só cabe convivência paterno-filial restritiva diante de atos que desabonem a conduta paterna, caso contrário, ela deve ser de forma ampliada e em igualdade de condições com o desfrute materno.

A provocação ao Judiciário ocorre porque, muitas vezes, a mãe, apropriando-se de um pensamento foucaultiano, vigia a relação paterno-filial e pune o pai, restringindo o seu acesso ao filho quando passa a impor poucos dias e horas de convívio, o que não deixa de ser um ato de prática da alienação parental.

No entanto, o Judiciário deve estar atento à inconformidade da mãe com relação à regulamentação ampliada das férias de verão em favor do pai, pois, segundo Foucault, uma das tecnologias de poder, que é uma modalidade de acordo com a qual se exerce o poder de punir, são “marcas rituais da vingança”, especificamente, no Direito de Família retratada por uma dissolução conjugal mal conduzida. A modalidade acima é elucidativa, a fim de se depreender claramente que o pai está sofrendo no corpo a tecnologia de poder do fim do século 18.

Como nos diz José Camargo, em muitos dias as pessoas são acometidas pela sensação dilacerante de que lhes arrancaram pedaços vivos de afeto, sem reposição. A convivência paterno-filial regulamentada de forma restritiva enaltece o poder de punir da mãe, sem remorsos. Isso porque, com mais frequência, a alienação parental parte da mãe. Por ora, não há reposição do tempo perdido, mas é possível a construção de uma visão prospectiva a definir uma convivência materno-paterno-filial igualitária, salvo ato que desabone a conduta de um dos pais.

Por isso, a inquietude da pergunta: Judiciário, onde estás, que restritivamente respondes? O pai recorre ao Judiciário para modificar essa situação, ainda mais quando se trata de criança mais nova e, não raras vezes, recebe uma resposta restringindo o seu período de férias – janeiro e fevereiro – com o filho, a uma semana ou no máximo 15 dias, restando a outra parte na totalidade para a mãe. Infelizes datas festivas de final de ano para aquele pai que lutou por um período de férias de verão em igualdade de condições com a mãe e teve uma resposta restritiva do Judiciário, sem qualquer ato que desabone a conduta paterna.
*Advogada, professora universitária da Uniritter e diretora jurídica interdisciplinar do Instituto Proteger

" O ano de 2013 foi jornalístico "

Jaime Cimenti

Esse ano foi um prato cheio para jornalistas e estudantes de Jornalismo. Só faltou os postes da Padre Chagas fazerem xixi nos cachorros das madames e elas morderem os cãezinhos. Sobraram fatos esquisitos, notícias incríveis. Em fevereiro, o Papa Bento XVI, quem diria, pediu o boné, ops, o solidéu, e foi substituído pelo modesto e franciscano argentino Francisco, o primeiro latino-americano Papa e o primeiro portenho humilde.

Na Grécia, viu-se que, se filosofia realmente funcionasse, as coisas por lá não estariam tão crespas, com a economia arrasada. No Brasil, os protestos, incrivelmente resultaram em diminuição do preço da passagem e fizeram os poderosos colocarem as barbas de molho, como se dizia no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça. Será que os protestos surpreenderam até os marqueteiros de plantão ou não foi bem assim?

O Supremo Tribunal Federal surpreendeu. Julgou o mensalão com rigor e decretou as prisões. Quem diria, o Messi apareceu de smoking de bolinhas, parecendo um pijaminha ou o ratinho Stuart Little. Falando em jogadores, quem esperava o selinho que o Emerson Sheik tascou no Izac?

Antigamente, diziam que futebol era coisa para homem, hoje melhor dizer, então, que é para pessoas? Quem diria o Inter quase campeão da segundona, o único título que falta para o campeão de tudo, e o Grêmio fazendo aquela campanha? Vice para o Grêmio não surpreende, mas a campanha... No ano incrível uma contista, Alice Munro, levou o Nobel de Literatura. Em 112 anos, é a primeira vez. A academia sueca disse que ela ganhou pela clareza e realismo psicológico. Dizia uma antiga lenda que contistas só ganhariam no quarto milênio. Pois é.

Quase no fim do ano, o comportado Obama ficou de quiquiqui com a ministra loira, e aí a Michelle teve que botar ordem na mansão. No apagar das luzes, o jovem Mandela, imortal em vida, se foi com apenas 95 anos e surpreendeu mais uma vez. Dizem que nos últimos momentos de vida, uns líderes foram pedir para sucedê-lo e ele disse: tudo bem, mas vocês vão precisar, primeiro, cumprir 27 anos de cadeia. Aí os caras arrepiaram e mudaram de assunto, passando a falar de futebol e tal.

E a viagem de 20 horas de avião da presidente Dilma com Collor, Sarney, Lula e FHC? E a foto, todos de sorriso Colgate, dentro do avião que os levou para o funeral de Mandela? Nem tão incrível a foto e a notícia, nesse país onde até o incrível passado é, tipo assim, imprevisível.

 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

" Apenas Natal "


João Pereira Coutinho*

Simplificando, existem dois grupos: para os ansiosos, o Natal é uma prova; para os deprimidos, uma provação

Anos atrás, comprei em Londres uns cartões de Natal que faziam uma paráfrase do célebre "Keep Calm and Carry On" (fique tranquilo e continue). No caso, a frase era apenas um "Keep Calm, It's Only Christmas" (fique tranquilo, é apenas Natal).

Foi sucesso de bilheteria: as pessoas agradeciam o cartão e depois começavam um longo rol de misérias pessoais que a quadra traz consigo. Simplificando, existem dois grupos: os ansiosos e os deprimidos.

Os ansiosos começam a sofrer em finais de outubro, inícios de novembro. Com os presentes que é preciso comprar (ou evitar); mas sobretudo com a logística que é preciso respeitar: noite de 24 na mãe dele; almoço de 25 na mãe dela; jantar de 25 na própria casa; dia 26 no manicômio da cidade.
 
O "espírito de Natal", para esses infelizes, é muito semelhante a uma prova universitária que é preciso fazer todos os anos, com os mesmos professores, sobre a mesma matéria. O eterno retorno da etiqueta. E com possibilidade de reprovação.

Os deprimidos são outra história: incapazes de viver o Natal presente, eles são como Mr. Scrooge, o personagem de Dickens, só que perpetuamente condenados a viverem apenas os Natais passados.

Aproxima-se o dia 24 e é vê-los, meditabundos e lacrimejantes, recordando as companhias que tiveram e já não têm; as oportunidades que surgiram e já não surgem; os lugares por onde passaram e onde já não passa nada.

Para os ansiosos, o Natal é uma prova; para os deprimidos, uma provação: uma forma de serem novamente esfolados vivos pelos fantasmas do fracasso e do arrependimento.

Um amigo meu, usualmente solar, hiberna sempre dia 24 e só ressuscita dia 26. Hiberna em hotéis ("são mais impessoais") ou, de vez em quando, cruzando os céus quando as famílias terráqueas se reúnem cá em baixo. "É mais fácil assim", dizia-me ele há uns meses, recusando qualquer convite para um jantar lá em casa. E a sentença final: "Eu só quero que o Natal passe depressa, João".

E quando não são as provações pessoais, são as profissionais. Não sei quando começou a moda das "festinhas de escritório". Mas espanto-me por não haver notícias na TV de chacinas em massa durante esses encontros.

Colegas que não se falam e até se apunhalam todo o ano surgem nessas "vernissages" com um amor pelo próximo que faz das figuras de cera do Madame Tussauds verdadeiros seres de carne e osso.

Pergunta-se pelos filhos (cujos nomes se desconhece) e pela saúde dos progenitores (entretanto já falecidos e enterrados). Brinda-se ao nada. Tiram-se fotos, muitas fotos, para vender alegria "sincera" no Facebook. E depois regressa-se a casa com os músculos do rosto doridos.

Quando janeiro começa, o escritório é o que sempre foi: um ringue de inimigos e estranhos. Como sobreviver a tudo isso?

Primeiro que tudo, apagando o verbo "sobreviver" da gramática natalina. Não há nada de que sobreviver se o dia 24 for igual ao 23. E a única forma de o tornar igual é retirar do 25 os contornos de "juízo final" com que nos danamos ou salvamos.

No fundo, devemos ser o oposto de Logan Mountstuart, o personagem de "Any Human Heart", a série de TV inspirada no livro (mediano) de William Boyd. Não sei se já falei dela nesta Folha. Provavelmente.

Mas nunca é demais repetir, até como sugestão natalina: na série, Mountstuart é um escritor torturado pelos erros que ensombram os seus dias. As mulheres que perdeu. Os amigos que o deixaram. E, claro, os romances que ele nunca conseguiu escrever.

Ao longo da vida, ele vai anotando esses erros nas páginas do diário --um exercício confessional a que ele, o grande romancista, concede diminuta importância.

E, no entanto, são os diários que ficam depois da morte. Como se os diários fossem o resumo mais autêntico de uma vida verdadeiramente autêntica: uma vida que é feita de toda a sorte e de todo o azar. Mas que também é definida pela forma como gostamos de a ver e contar.

Porque é sempre possível contar a mesma vida de duas perspectivas distintas: a perspectiva derrotista de Logan Mountstuart; e a perspectiva de sucesso que a posteridade concedeu aos seus diários --e, no limite, à sua vida e até aos seus erros.

Não se martirize, leitor. Raramente somos os melhores juízes em causa própria. Brindar ao Natal deveria ser, tão simplesmente, brindar ao pouco que sabemos --e ao muito que um dia se contará sobre nós.
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* José João Pereira Coutinho é um jornalista, escritor, historiador e comentador e cientista político português. É professor da Universidade Católica Portuguesa e comentador do Correio da Manhã e da TVI24
Fonte: Folhe online, 24/12/2013