segunda-feira, 31 de março de 2014

" Tantas Eternidades "

LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
Passou o aniversário de uma linda senhora e eu não a cumprimentei. Porto Alegre completou 242 outonos e não a abracei, talvez preocupado com os tropeços do país.



Cheguei a esta cidade com seis anos, a bordo de um avião da Varig e de 38 graus de febre. Tenho a vaga ideia de haver avistado nesse primeiro encontro a grande enseada que se abria ao sul, surrealmente de um azul turquesa, mais a escadaria da Rua João Manoel, mas pode ser que fosse a gripe.


porto alegre - capital do rio grande do sul
Passei a primeira semana recolhido ao leito, como se dizia então. Minhas irmãs me noticiavam que, na sacada dos fundos do apartamento, ancoravam imensos navios, e eu acreditei nelas piamente. Foi o que fiz logo que me deram alta: correr à tal sacada dos fundos. Com a permissão de Machado, minha alma caiu ao chão. Havia, sim, navios, bordô e prata, mas passavam a centenas de metros dali, para além da chaminé do Gasômetro.

Sobravam, no entanto, outras razões de encantamento. Quando pude afinal sair à rua, meu pai me apresentou ao bonde Duque. Era algo que suplantava minha imaginação, pois nos surgiu brilhando em meio à neblina. Descemos na Rua da Praia, esquina com a Marechal Floriano, bem onde ficava a Casa Masson. Suas vitrines cintilavam como joias na manhã fria.

Dali caminhamos até a Galeria Chaves, onde me surpreendeu o vitral do forro, cuja imagem nunca esqueci. Meu pai comprou um presente para minha mãe, na Joalheria Ibañez, uma Casa Masson em porte menor, mas igualmente sofisticada. Voltamos a caminhar e, na esquina com a Avenida Borges, fiquei admirando a troca de luzes da sinaleira, manejadas por um guarda no alto de uma guarita.

Eu olhava espantado para as alturas do Sulacap e do Vera Cruz: nunca imaginara que houvesse edifícios tão altos.

– Mora gente lá em cima? – perguntei a meu pai.

– Mora, sim – disse ele. – Mas alguns andares são de escritórios. Já te mostro.

E levou-me pela mão até a entrada de um deles, onde me apresentou a outro fenômeno: o elevador.

A quota de surpresas do dia ainda não estava completa. Seguimos em direção à Praça da Alfândega, onde ainda tremeluziam um ou dois anúncios de néon. Paramos diante de um prédio também alto, mas antigo, que ficava além de uns quantos cinemas.

– Olha ali – falou meu pai. – E eu tive o contato inaugural com a porta giratória do Grande Hotel.

Na esquina entramos na Livraria W. M. Jackson, onde ele ficou namorando as lombadas das obras completas do já dito Machado. Um dia elas seriam nossas. São essas mesmas que me acompanham, tantas eternidades depois, nesta biblioteca em que teço esta crônica de saudade.

" Pensamento engarrafado "

                                                         LETÍCIA WIERZCHOWSKI

Eu morei há 12 anos no Rio de Janeiro e lembro que circular pela cidade era fácil naquele tempo. Claro, havia alguns lugares-problema, os entroncamentos complicados, as avenidas vitais, os horários de pico – determinadas ruas e horários que uma pessoa de bom senso, podendo, deveria evitar.

Hoje, o Rio de Janeiro é uma cidade que não anda, é o grande paradoxo da vida moderna. A cidade dividiu-se em duas, e o caminho que liga essas duas partes – o elevado do Joá e o túnel Zuzu Angel – é um sofrimento que redime qualquer pecador.
 
O trânsito de Porto Alegre não é moleza, você pode mofar dentro do carro um bom tempo, ainda mais com as obras que paralisam a cidade, mas nada se compara ao Rio de Janeiro hoje.
 
E existe cidade mais exuberante neste mundo? O Rio de Janeiro é como uma belíssima mulher com mau hálito – linda, tão linda, todos comentam a sua estonteante beleza, mas beijar a digníssima na boca todos os dias é que são elas.

Dias desses, um amigo publicou uma foto ótima no Instagram: no meio do trânsito absolutamente congestionado em São Conrado, na boca do túnel, estava o carrão do Roberto Carlos (era um desses conversíveis, um Mercedes creio eu, branco e estalando de novo, e ali, escarrapachado no banco de couro alvíssimo, o Rei aguardava, como qualquer mortal, que o trânsito finalmente fluísse e ele pudesse chegar na sua casa na Urca).
 
 Meu amigo (que, aliás, é gaúcho) deve ter se divertido bastante, e pelo menos arranjou ocupação enquanto esperava a sua vez de cruzar o Zuzu Angel.

Cada um se vira como pode, mas a Lucélia Santos, flagrada num ônibus na zona sul carioca, foi motivo de deboche nas redes sociais.
E lá vem o paradoxo outra vez: desde quando usar transporte coletivo é um mico?
O que está acontecendo conosco, o que pensamos de útil enquanto parados no congestionamento horas e horas do nosso dia?
Alguma coisa tem que mudar, e urgentemente. Esperar que a mudança venha do poder público, nem o mais tolo dos brasileiros espera. O carro, hoje em dia, tem que ser eletivo. Se todos quiserem fazer tudo de carro, ninguém fará mais nada. Afinal, gastar horas por dia parado no trânsito não inspira ninguém, nem mesmo o Roberto Carlos, basta ver a sua recente produção musical.

" PeTerização da Petrobras "



ARTIGOS - Paulo Brossard*


Há uma variedade de aspectos relacionados com a aquisição da Refinaria de Pasadena pela Petrobras, que tem feito correr rios de tinta e ainda fará correr outros. A respeito deste assunto, espero aqui dar apenas uma ideia breve e clara. Em 2005, empresa belga adquiriu a refinaria em causa por US$ 42,5 milhões. Em 2006, a Petrobras veio a adquirir 50% das ações, por US$ 360 milhões.
 
Depois de vários insucessos forenses, à Petrobras foi determinado comprasse os restantes 50%, o que ocorreu incluindo honorários e outros benefícios mediante pagamento de US$ 820,5 milhões. Ao cabo, a Petrobras desembolsou mais de US$ 1 bilhão, cerca de US$ 1,2 bilhão.

Este é o caso que deixou na sombra acontecimentos nacionais e internacionais relevantes, como a mudança de fronteiras pela Rússia e a redução da credibilidade do Brasil. Esse o resumo do resumo de uma refinaria obsoleta, que nunca chegara a funcionar, a história de uma entidade que haveria de transformar-se em monumental e malcheiroso elefante branco.

Isto posto, dizendo o que é notório, estava armado com pompa e circunstância o maior dos escândalos administrativos e políticos da empresa que, em ordem de grandeza, chegou a ser a 12ª em termos mundiais, caindo para o 120º lugar em cinco anos, segundo o jornal Financial Times. Esse dado completa de uma forma visível o perfil daquilo que se poderia chamar de forma melíflua uma insensatez; em verdade, talvez não fosse o maior escândalo, mas adquiriu tais dimensões, que, certa ou erradamente, veio a ser proclamado como o maior. Nem foi apenas uma sandice.

Esses números, desidratados, mas objetivos, são de tal significação, que não é necessário ser douto para compreender a enormidade do que foi sendo feito com a Petrobras.

Se eu tivesse de definir o quadro instaurado, poderia dizer que o chão está resvaladio, mas prefiro dizer movediço. Basta registrar que a senhora presidente da República, que é candidata à reeleição, em dias, caiu sete pontos em sua popularidade. Fato a assinalar, se não estou em erro, resulta na progressiva inserção do partido na administração, não apenas em sua vida administrativa, mas em suas entranhas, com a tendência de chegar à intimidade da mancebia; o fenômeno não é bom, nem para a administração nem para o partido.

Talvez seja por tratar-se de uma sociedade anônima, ela vem sendo a presa mais cobiçada do apetite dos amigos do governo e dos que o governo quer fazer amigos. A evolução natural no plano dos partidos sempre foi em outro sentido. A verdade é que, hoje, a questão da refinaria se confunde com a Petrobras, e a Petrobras se confunde com a refinaria. Aliás, esse dado não é de ser estranhado, uma vez que a refinaria desde seu nascimento está ligada à pessoa, nem mais nem menos, que exerce a presidência da República, sem ela a refinaria não teria nascido, sem ela não teria continuado a viver, ainda que viver morrendo e, sem ela, talvez a Petrobras pudesse continuar a ser a 12ª empresa no âmbito mundial.

No período eleitoral, a então candidata ameaçava que seu adversário iria privatizar a Petrobras. Seus companheiros de partido, alguns dos quais hoje estão na penitenciária, criaram o pejorativo de privatização na palavra privataria.

Pois bem, o que o partido da presidente está fazendo na Petrobras enseja a criação de outro neologismo: a PeTerização da empresa, que já foi orgulho nacional.

*JURISTA, MINISTRO APOSENTADO DO STF

" Transição "


Marion Strecker*
Um dia, quando a humanidade acabar, esse mundo tecnológico não vai mais ter importância
Olho as enormes estantes em volta de mim e penso na dureza deste momento de transição. Minha próxima casa talvez não tenha nem metade dessas prateleiras e desses livros. Temo sentir falta deles. Cresci numa casa com estantes generosas e muitas enciclopédias ilustradas para matar as tardes de tédio.

Minha filha adolescente cresce cercada de fios e aparelhos que apitam, imersa na rede. Pergunto a ela se pensa que a casa dela no futuro terá grandes estantes. Ela diz que não sabe, mas avisa que prefere livros em papel ("gosto de segurar"), ainda que invista muito tempo na comunicação eletrônica.

Talvez eu não devesse comparar essas coisas. A gente fica com medo da rua e tranca as crianças em casa, como se isso fosse saudável. Elas saem pelas janelas da internet.

Fiquei pensando que faço parte de uma geração de transição: nasci analógica, cresci elétrica e amadureci eletrônica. Mas isso é bobagem. Minha geração ensinou os pais a programar videocassete e a usar controle remoto antes de ensinar a usar o computador e o e-mail. E a geração dos meus pais deve ter ensinado a geração dos meus avós a fazer outras coisas. Pensando bem, todas as gerações são de transição.

Exceto a última, a derradeira, a que estiver por aqui quando o mundo acabar. Um dia, quando a humanidade acabar, esse mundo tecnológico não vai mais ter importância nenhuma. Tanto esforço para nada. Tanta informação para nada. Puf. Baubau. Acabou.

Tanto satélite, tanto Google e tanto Google Earth e a gente ainda perde esse tempo todo para tentar descobrir que fim levou o avião que saiu da Malásia com 239 pessoas em direção a Pequim e nunca chegou. Essa é a nossa pequenez. Esse é o vasto mundo. Mais vasto ainda o nosso coração.

Onde foram parar os discos em 78 rotações que herdei? E as fitas de rolo com as entrevistas que meu pai fazia com os filhos? Onde guardei o videoteipe do meu bebê? O que será de todas as músicas que baixei em tantos formatos e salvei em tantos aparelhos que já não existem mais? E as fotos, em tantos suportes e padrões? Para onde vão todas as fotos depois que o Facebook e o Instagram acabarem?

Abandonamos as indexações manuais e os arquivos de aço, com as suas infinitas gavetinhas, pelos arquivos eletrônicos e sua memória infinita, onde perdemos todas as coisas e encontramos outras por acaso. E agora voltamos a precisar de indexações manuais, tagueamentos, etiquetas e zooms para encontrar as milhares de coisas que acumulamos sem pensar, por preguiça ou por desleixo, porque custoso é selecionar.

Quando acabar a luz, a porta eletrônica pode não abrir. Mas alguém já pensou numa solução. Alguém já criou mais uma start-up. Alguém já lucrou com a venda. E três quartos dessas start-ups deixam investidores a ver navios, conforme pesquisa de Shinkhar Ghosh, conferencista sênior da escola de negócios da Universidade Harvard. Sem fracasso não há negócio.

Nos Estados Unidos, a taxa de fracasso das empresas é de 25% no primeiro ano de vida, 55% no quinto ano e 71% em dez anos, segundo o site Statistic Brain (statisticbrain.com). A principal razão do fracasso? Incompetência (46%). É essa a nossa inspiração.
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* Colunista da Folha

Fonte: Folha online, 31/03/2014
Imagem da Internet

" Melhor Impossível ? "


Luiz Felipe Pondé*

E se o livro do Eclesiastes estiver certo e não existir
nada de novo sob o Sol?
 
 
Você lembra do filme com Jack Nicholson chamado "Melhor É Impossível"? Há uma cena em que ele, um obsessivo-compulsivo (diríamos, um caso grave de TOC), de repente, saindo do analista, se dá conta: "E se melhor do que isso for impossível?". Referia-se a seu quadro tenso, cheio de rituais obsessivos, mas rasgado por um esforço cotidiano de enfrentá-lo.

Pois bem, outro dia, em meio a uma aula com alunos de graduação, discutindo se é melhor ser religioso ou não, essa questão apareceu: "E se a vida não puder ser melhor do que isso?". Ou: "E se uma vida melhor for impossível de se conseguir?". Que vida é essa da qual falávamos? O que pensa um jovem de 20 anos acerca do que seja qualidade de vida?

A questão se apresentou quando ouvíamos uma menina, religiosa, dizer o quanto melhor era a qualidade de vida que se tinha vivendo dentro de uma comunidade religiosa. Melhores amizades, melhor namoro, meninos mais honestos, melhores férias, melhor convívio com os pais, enfim, melhor tudo que importa, apesar de nunca ser perfeito.

             Os semiletrados pensam que jovens gostam de ser "livres".

Risadas? Jovens querem famílias estáveis, casa com segurança, futuro garantido, um grupo para dizer que é seu, códigos que os definam de forma clara e distinta, enfim, de um quadro de referências que torne o mundo significativo e seu.

Quando encontram, aderem de forma muito mais direta do que pessoas com mais de 30. Estas já começam a entrar no desgaste cético que a vida impõe a todos nós. Da louça que lavamos, do sexo meia boca que fazemos à arte que cultivamos.

Basta ver o caráter dogmático do movimento estudantil pra ver esse tipo de adesão direta e sem medo dos jovens. Às vezes temo que mais atrapalhamos os jovens do que os ajudamos com o conjunto de exigências que fazemos a eles: sejam diferentes, mudem o mundo, rompam com tudo, inventem-se.

 Woodstock foi um surto do qual eles já se curaram, mas nós não.

    Mas, de volta a: "E se a vida não puder ser melhor do que isso?".

O problema era: É melhor viver sem religião ou viver aceitando um código religioso claro?

E vejam: no dia a dia, os poucos jovens religiosos que conheço no meio que frequento costumam ser melhores alunos, mais atentos ao que se fala em sala de aula, menos inseguros com relação a temas como sexo, drogas e rock and roll, assim como também quando se fala de futuros relacionamentos. Enfim, parecem saber mais o que querem e serem menos permeáveis às modinhas bobas que existem por aí.

A conclusão parece ser que uma adesão a uma vida religiosa sem exageros de contenção de comportamento nutre mais esses meninos e meninas ao redor dos 20 anos do que a parafernália de teorias que a filosofia ou as ciências humanas produziram nos últimos séculos.

É como se as religiões tradicionais (como digo sempre, se você quiser uma religião, pegue uma com mais de mil anos...) carregassem uma sabedoria mais instalada, apesar de silenciosa, com relação ao que de fato eles precisam.

E se tivermos alcançado algum limite nas utopias propostas para a modernidade? E se o surto do século 18 pra cá tiver se esgotado como fórmula e chegarmos à conclusão que, como pequenos ajustes aqui e ali, pequenas correções de percurso (um cuidado com os recursos do meio ambiente, uma sensibilidade maior aos riscos de um materialismo extremado, maior longevidade, beijo gay na novela das nove), a vida se impõe em seu ritmo como sempre se impôs aos nossos ancestrais?

E se o velho ritmo de nascer, crescer, plantar, colher, reproduzir e morrer, com variações criadas pela Apple, for tudo o que temos? E se for justamente essa "perenidade do esforço" impermeável às modas de comportamento a realidade silenciosa da vida?

E se o Eclesiastes, livro que compõe o conjunto de quatro textos da Bíblia hebraica (que os cristãos chamam de Velho Testamento) conhecidos como Sabedoria Israelita (Provérbios, Eclesiastes, Livro de Jó e Cântico dos Cânticos) estiver certo, e não existir nada de novo sob o Sol? E se tudo for, como diz o sábio bíblico, vaidade e vento que passa?
 
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* Filósofo. Escritor.
Fonte: Folha online, 31/03/2014

" Más notícias "

 

Luis Fernando Veríssimo*
Um dia você se olhará no espelho e terá uma revelação estarrecedora. Sua mulher está dormindo com outro homem! Depois descobrirá que o que vê no espelho não é outro, é você mesmo. Só que, por uma razão inexplicável, você está mais velho.

Os espelhos são de uma franqueza brutal. Na era das relações públicas, é inadmissível que a sua imagem trate você com tanta crueza. É inaceitável que o espelho lhe diga “você está com 50 (ou 60, ou, meu Deus, 70) anos assim, na cara, mesmo que quem diga seja a sua própria cara. E de manhã, na hora em que, ainda amarrotado pelo sono e antes de botar o rosto que usará durante o dia, você está mais vulnerável.

Se a cena pudesse ser confiada a um profissional da comunicação, seria diferente. Infelizmente, as piores notícias são sempre dadas por amadores. Num mundo mais justo, sua imagem no espelho poderia ser apresentada por um especialista em marketing, e em vez da sua cara no espelho revelador, você veria, por exemplo, a Patrícia Poeta.

– Patrícia! Você por aqui?

– Vim para lhe dizer que você ficará muito bem, com cabelo grisalho. Aumentará sua credibilidade. Será ótimo para os negócios.

– Eu acho que estou perdendo cabelos.

– E daí? Cabelo demais é desperdício. Os fios que ficam são os melhores.

– Será?

– As rugas realçarão seu caráter. E se um queixo já enfatiza sua masculinidade, imagine dois.

– Patrícia. Cabelos grisalhos, rugas, queixo duplo... Você quer me dizer que eu estou ficando... Velho?

– Maduro.

Ou então você deveria poder mergulhar de ponta-cabeça no espelho para descobrir como seria sua vida do outro lado dos 50 (ou 60, ou, meu Deus, 70). E se consolar com o fato de que ela não será muito diferente da vida que você leva hoje – com alguns reajustes. Você terá que evitar carnes brancas, morenas e mulatas, principalmente depois das refeições. E deixar de frequentar motéis com escadaria. Fora isso... Que venham as rugas!
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* Escritor. Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 31/03/2014

" Reintegrar- se no espaço e no tempo "


Leonardo Boff*

A partir dos anos 70 do século passado ficou clara para grande parte da comunidade científica que a Terra não é apenas um planeta sobre o qual existe vida. A Terra se apresenta com tal dosagem de elementos, de temperatura, de composição química da atmosfera e do mar que somente um organismo vivo pode fazer o que ela faz. A Terra não contem simplesmente vida. Ela é viva, um super-organismo vivente, denominado pelos andinos de Pacha Mama e pelos modernos de Gaia, o nome grego para a Terra viva.

A espécie humana representa a capacidade de Gaia de ter um pensamento reflexo e uma consciência sintetizadora e amorosa. Nós humanos, homens e mulheres, possibilitamos à Terra a apreciar a sua luxuriante beleza, a contemplar a sua intrincada complexidade e a descobrir espiritualmente o Mistério que a penetra.

O que os seres humanos são em relação à Terra é a Terra em relação ao cosmos por nós conhecido. O cosmos não é um objeto sobre o qual descobrimos a vida. O cosmos é, segundo muitos cosmólogos contemporâneos, (Goswami, Swimme e outros) um sujeito vivente que se encontra num processo permanente de gênese. Caminhou 13,7 bilhões de anos, se enovelou sobre si mesmo e madurou de tal forma que num canto dele, na Via láctea, no sistema solar, no planeta Terra emergiu a consciência reflexa de si mesmo, de donde veio, para onde vai e qual é a Energia poderosa que tudo sustenta.

Quando um eco-agrônomo estuda a composição química de um solo é a própria Terra que estuda a si mesma. Quando um astrônomo dirige o telescópio para as estrelas, é o próprio universo que olha para si mesmo.


A mudança que esta leitura deve produzir nas mentalidades e nas instituições só é comparável com aquela que se realizou no século XVI ao se comprovar que a Terra era redonda e girava ao redor do sol. Especialmente a transformação de que as coisas ainda não estão prontas, estão continuamente nascendo, abertas a novas formas de auto-realização. Consequentemente a verdade se dá numa referência aberta e não num código fechado e estabelecido. Só está na verdade quem caminha com o processo de manifestação da verdade.

Importa, antes de mais nada, realizar a reintegração do tempo. Nós não temos a idade que se conta a partir do dia do nosso nascimento. Nós temos a idade do cosmos. Começamos a nascer há 13,7 bilhões de anos quando principiaram a se organizar todas aquelas energias e materiais que entram na constituição de nosso corpo e de nossa psiqué. Quando isso madurou então nascemos de verdade e sempre abertos a outros aperfeiçoamentos futuros.

Se sintetizarmos o relógio cósmico de 13,7 bilhões de anos no espaço de um ano solar, como o fez ingeniosamente Carl Sagan no seu livro Os Dragões do Eden (N.York 1977, 14-16) e querendo apenas realçar algumas datas que nos interessam, teríamos o seguinte quadro:

A primeiro de janeiro ocorreu o big bang. A primeiro de maio o surgimento da Via-Láctea. A nove de setembro, a origem do sistema solar. A 14 de setembro, a formação da Terra. A 25 de setembro, a origem da vida. A 30 de dezembro, o aparecimento dos primeiros hominídeos, avós ancestrais dos humanos. A 31 de dezembro, irromperam os primeiros homens e mulheres. Os últimos 10 segundos de 31 de dezembro inauguraram a história do homo sapiens/demens do qual descendemos diretamente. O nascimento de Cristo ter-se-ia dado precisamente às 23 horas 59 minutos e 56 segundos. O mundo moderno teria surgido no 58º segundo do último minuto do ano. E nós individualmente? Na última fracção de segundo antes de completar meia-noite.

Em outras palavras, somente há 24 horas que o universo e a Terra têm consciência reflexa de si mesmos. Se Deus dissesse a um anjo: “procure no espaço e identifique no tempo a Denise ou o Edson ou a Silvia”, certamente não o conseguiria porque eles são menos que um pó de areia vagando no vácuo interstelar e começaram a existir a menos de um segundo atrás. Mas Deus sim, porque Ele escuta o pulsar do coração de cada filho e filha seus, porque neles o universo converge em autoconsciência, em amorização e em celebração.

Uma pedagogia adequada à nova cosmologia nos deveria introduzir nestas dimensões que nos evocam o sagrado do universo e o milagre de nossa própria existência. Isso em todo o processo educativo, da escola primária à universidade.

Em seguida faz-se mister reintegrar o espaço dentro do qual nos encontramos. Vendo a Terra de fora da Terra, nos descobrimos um elo de uma imensa cadeia de seres celestes. Estamos numa das 100 bilhões de galáxias, a Via Láctea. Numa distância de 28 mil anos luz de seu centro; pertencemos ao sistema solar que é um entre bilhões e bilhões de outras estrelas, num planeta pequeno mas extremamente aquinhoado de fatores favoráveis à evolução de formas cada vez complexas e conscientizadas de vida: a Terra.

Na Terra nos encontramos num Continente que se independizou há cerca de 210 milhões de anos atrás quando a Pangea (o continente único da Terra) se fraturou e que ganhou a configuração atual. Estamos nesta cidade, nesta rua nesta casa, neste quarto, e nesta mesa diante do computador partir donde me relaciono e me sinto ligado à totalidade de todos os espaços do universo.

Reintegrados no espaço e no tempo nos sentimos como Pascal diria: um nada diante do Todo e um Todo diante do nada. E nossa grandeza reside em pensar e celebrar tudo isso.

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* Escritor. Teólogo. Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2014/03/30/

" Toda a aproximação é um conflito "


Tania Azevedo Garcia*
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Para sobreviver à natureza e suas intempéries, o homem precisou conviver. Entretanto, estar com o outro, muitas vezes, significa conflito. Seja este de ordem pessoal, familiar ou mesmo social. O premiado filme argentino "O Homem ao lado"
de Gastón Duprat e Mariano Cohn nos apresenta
uma história muito interessante, que nos
permite refletir profundamente sobre o tema.

Estar no mundo é estar com alguém, o que nem sempre significa felicidade. Freud em “O Mal Estar na Civilização” relata que o sofrimento humano advém de três fontes: do poder da natureza sobre nós; da fragilidade de nossos corpos, pois adoecemos e morremos; e das regras sociais que nos ajustam ao mundo. Segundo o autor, de todos esses males, o último é o que nos traz maior sofrimento.

É o que parece sentir Leonardo, arquiteto, professor, burguês, personagem do filme argentino “O Homem ao Lado”. Leonardo tem que conviver com um vizinho menos “nobre” que ele, Victor. Um homem de meia idade, simples, pouco civilizado, segundo os moldes do protagonista rico da história.
O conflito emerge no momento em que Victor resolve abrir uma janela no muro que divide sua simples moradia com a sofisticada casa de Leonardo, única construção na América Latina projetada pelo famoso arquiteto francês Le Corbusier.

Do ponto de vista da lei, Victor jamais poderia abrir a janela. Contudo, a despeito da legalidade, ele o faz, pois diz precisar dela para trazer um “poquito de sol” para sua humilde casa. Aqui começa o embate.

A princípio, o diretor do filme parece nos chamar a atenção para as contradições sociais que vivemos nas grandes cidades, mais precisamente, parece apresentar uma crítica à sociedade burguesa. Muitos amantes de arte arquitetônica visitam Buenos Aires e ficam à espreita observando a casa de Leonardo, já que ela não é aberta à visitação. De sua moradia, Victor consegue ver quase todos os movimentos que ocorrem na residência de Leonardo. E o incômodo reside no fato de que os moradores da casa desenhada por Le Corbusier querem manter a privacidade. O que se torna um paradoxo, já que também desejam ser vistos. É o que acontece, de certa forma, a muitas celebridades no mundo atual.

Para além do conflito entre as classes sociais, chamo a atenção para a forma como Leonardo reage à situação. Ele tenta demover Victor da ideia da janela. Usa primeiramente o argumento da lei; depois, diz que sua mulher é quem não concorda; em seguida, fala que seu sogro, sócio na casa, é quem não aceita a construção da janela. Ele se esquiva o tempo todo do confronto direto com Victor. Este, sem dúvida, muito mais sedutor, envolvente e ameaçador, consegue intimidar Leonardo sem ter uma atitude explícita de agressão. Seu corpo fala. Suas expressões faciais e corporais comandam o processo. Assim, os argumentos civilizados de Leonardo não conseguem vencer as pressões de seu oponente.

Um misto de drama e de comédia. Aliás, o personagem Victor é simplesmente hilário. Um excelente filme para refletirmos sobre o quanto somos capazes de lidar com os diversos e possíveis conflitos que emergem em nossas vidas e sobre a forma como reagimos a eles. Afinal, “toda aproximação é um conflito”, já dizia o poeta português Fernando Pessoa, e, como seres civilizados, não temos como escapar da convivência. Numa afirmação a qual o próprio psicanalista chama de espantosa, Freud nos convoca à reflexão:“… nossa civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas”.

Primitiva é a atitude de Leonardo no final surpreendente do filme, que nos traz desconforto e incômodo intensos. Quando assisti ao filme pela primeira vez, tive a sensação de que eu iria pular na tela e fazer alguma coisa. Isso é cinema de arte. Ele nos coloca em cena.

Referências

FREUD, S. O Mal Estar na Civilização – Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974

O HOMEM AO LADO. Direção: Gastón Duprat, Mariano Cohn: Imovision, 2009. DVD (100 min)
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* Psicóloga, professora universitária.
Fonte: © obvious: http://lounge.obviousmag.org/

" Dois olhares sobre os anos de chumbo:Cida Horta e Frei Betto "

Por Marilza de Melo Foucher*

Cida Horta foi perseguida pela ditadura após se tornar professora e lutar por um país mais justo e igualitário
Cida Horta foi perseguida pela ditadura após se tornar professora e lutar por um país mais justo e igualitário

Nada melhor para escrever um texto de reflexão política do que o contato direto com segmentos da chamada sociedade civil organizada do Brasil, intelectuais, pessoas simples encontradas em encontros casuais, inclusive os taxistas. Nunca senti um país politicamente tão dividido, todavia, meus interlocutores me surpreenderam com suas analises pertinentes e outras inconsequentes, pois fugiam de toda regra da racionalidade política.

Aproveitei também para realizar uma série de entrevistas e recolher alguns depoimentos com pessoas que foram presas, torturadas, perseguidas durante a ditadura, assim como, aquelas que num trabalho de formiga levaram em frente o desafio de colaborar para a emergência da sociedade civil. Muitos militantes utilizaram do instrumento de educação popular segundo Paulo Freire, e adotam uma pratica educativa não autoritária, partindo da ótica que todo conhecimento é construído na relação das pessoas entre si e com o mundo, no sentido de apreender a realidade social de maneira critica desvelando suas contradições.

Aqui lhes apresento o depoimento da educadora popular Cida Horta, em seguida a entrevista de Frei Beto.

Boa Leitura. Ditadura Nunca Mais! Que nossa democracia se fortaleça sempre.

Uma vida pela Educação

Maria Aparecida Antunes Horta tem 68 anos e é professora desde 1966. Participante do movimento de resistência à ditadura foi obrigada a sair do país, tendo vivido em Cuba de 1973 a 1979. De volta ao Brasil, retomou seu trabalho na escola pública e num centro de educação popular dedicado á formação de educadores de jovens e adultos.

“A geração à qual pertenço, nascida nos anos 40, viveu sua juventude e começo da idade adulta sob a ditadura que dominou o Brasil de 1964 a 1984. Nossa caminhada de aprendizagem da vida democrática teve início ao final dos anos 70, a partir de uma chamada abertura lenta, gradual e segura que implicou em uma transição negociada com os antigos ditadores, que, entre outras coisas, se concederam uma auto anistia para seus crimes de usurpação do poder, tortura, morte e desaparecimento de opositores políticos. Essa transição negociada também permitiu a realização de eleições indiretas para a presidência em 1985.

“Se refletirmos sobre o legado desses de 21 anos de regime ditatorial no Brasil, veremos que aquelas duas décadas em que fomos totalmente silenciados e impedidos de qualquer participação política foram marcadas pela entrega do país ao capital internacional, pela concentração da terra e capitalização do campo de onde foram expulsos os camponeses obrigados a se espremerem nas periferias das cidades, pela privatização da educação e desvalorização dos professores através da redução de seus salários, pelo arrocho salarial e repressão a qualquer ameaça de greve operária, além de uma perseguição feroz aos que participaram dos movimentos de resistência, que resultou em milhares de brasileiros torturados, presos, ou mortos e desaparecidos.

“A ditadura civil-militar roubou aos brasileiros a possibilidade de implementar as reformas de base que faziam parte do programa de governo do presidente João Goulart e que contavam com amplo apoio popular. Mataram os movimentos de cultura popular, suspenderam a campanha nacional de alfabetização que se anunciava sob a inspiração de Paulo Freire, que foi preso e exilado, aniquilaram as propostas de reforma urbana e reforma agrária, assim como, de controle sobre as remessas de lucros das empresas estrangeiras instaladas no País. Impôs-nos um atraso de 21 anos, aprofundando as desigualdades sociais, o desemprego, tornando explosiva a questão da moradia nas grandes cidades, tolhendo a nossa cultura enquanto favorecia o domínio da cultura norte-americana em nossos meios de comunicação. Ao mesmo tempo, fortaleceram com sua política os setores conservadores e reacionários, atendendo aos interesses dos grandes latifundiários, empreiteiras, banqueiros e monopólios internacionais.

“Não obstante toda a repressão e controle dos aparelhos repressivos, na década de 70, os movimentos sociais começaram a se reorganizar, as comunidades eclesiais de base inspiradas na Teologia da Libertação se multiplicaram e surgiram vários centros de educação popular que foram protagonistas a partir de meados daquela década de importantes movimentos por moradia, saúde, educação, participando também da luta pela redemocratização e pela anistia. Pude integrar um desses grupos de Educação Popular, no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo a partir de 1979 e, ali, acompanhei de perto todos os desafios enfrentados pelos educadores populares ao longo dos últimos 30 anos.

“O trabalho de educação popular foi certamente um dos fatores que permitiram a vitória das candidaturas de esquerda ao parlamento e ao executivo eis que conseguiu detonar as rochas do reacionarismo fomentadas e alimentadas ao longo de nossa história. Foi determinante, por exemplo, para a eleição de Luíza Erundina à prefeitura de São Paulo em 1988 e de Lula à presidência em 2002 depois de uma caminhada exaustiva de mais de 10 anos. Conseguiu igualmente eleger vários militantes de esquerda a cargos no legislativo, alguns deles com história de atuação na Educação Popular.

“Naqueles momentos, o entusiasmo e o trabalho da militância supriram a falta de recursos materiais para as campanhas.

Nesse esforço de contribuir para a construção do processo democrático em nosso País, garantindo a participação nele dos trabalhadores da cidade e do campo, não foi pequeno o desafio que os educadores populares enfrentaram quando da Queda do Muro de Berlim seguida da crise e desmanche do socialismo nos países da Europa Oriental e na URSS.

“Após a perplexidade inicial, abriu-se um abismo de incertezas e de questionamentos. Mas a década de 90 acrescentou novos desafios com a implantação da política neoliberal principalmente nos dois governos de FHC com toda a mudança que imprimiu no mundo do trabalho e as políticas de privatização. Houve muita mobilização popular, muitos esforços dos educadores para entender o que era globalização, o Consenso de Washington, o neoliberalismo e fazer chegar esse entendimento a todos.

“Desenvolveram-se campanhas pelo questionamento da enorme dívida externa do País, campanhas contra as privatizações, principalmente da Vale do Rio Doce e da Petrobrás, contra o ingresso do Brasil na ALCA, etc. Foram anos de refundamentação da Educação Popular e de questionamentos sobre sua relação com o Estado uma vez que nossas organizações passaram a ser convidadas para participar das políticas públicas e foram muitas as discussões sobre se isso era ou não correto.

“O surgimento do Fórum Social Mundial foi muito importante ao se colocar como um espaço para a discussão do futuro de nossas utopias. Se o socialismo real não se mostrara capaz de construir um mundo novo, o Neoliberalismo experimentou um fracasso total para responder aos males produzidos pelo capitalismo nas sociedades contemporâneas. Pelo contrário, ele só conseguiu agravar esses males, multiplicando a pobreza, o desemprego, a desigualdade e a violência social no planeta. Do Fórum surgem novas abordagens das questões ecológicas e a proposta de construção de uma economia sustentável.

“Esses temas passaram a ser objeto do trabalho de muitas entidades a partir dos anos 2000, juntamente com o surgimento de movimentos sociais de gênero, etnia, orientação sexual, etc. Também se destacam muitas experiências de economia solidária não só para fazer frente ao desemprego, mas principalmente para permitir a vivência de uma atividade econômica baseada no esforço coletivo e solidário dos trabalhadores.

“O trabalho educativo desenvolvido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tornou-se um paradigma para aqueles que pensam a educação popular como instrumento de transformação social e como forma de empoderamento dos trabalhadores.

“Hoje, a complexidade social e política de nosso País chama a desenvolver ações em defesa dos direitos humanos, ações de formação da juventude ameaçada pelo desemprego e as drogas, ações de combate à violência social, à violência contra as mulheres, à violência doméstica, e, o mais grave, à violência policial, herança que trazemos intacta da ditadura. Com o agravamento da violência social, surgem também trabalhos que buscam uma justiça restaurativa que devolva a paz a famílias destroçadas pela perda de entes queridos. O movimento de alfabetização, que foi uma proposta anterior ao golpe, se reforçou nas últimas décadas e continua atuante agora como esforço complementar das políticas públicas de educação para atingir os alfabetizandos jovens e adultos.

“Ao longo dos quase 12 anos dos governos Lula e Dilma, os lutadores sociais foram compreendendo que ter o governo não significa ter o poder, e tomaram consciência da necessidade de pressionar por mudanças. Os movimentos por terra, os movimentos por moradia, os movimentos indígenas e outros grupos tem se manifestado sistematicamente em defesa de seus direitos, e outros novos surgem, com palavras de ordem e formas de organização diferentes, como o Movimento Passe Livre, o Levante Social da Juventude.

“Hoje, mais que nunca, os trabalhos de educação popular são necessários para fazer o contraponto aos setores que desejam aniquilar as conquistas alcançadas na última década e que contam com os meios de comunicação para alardear suas críticas e sua desinformação. São ainda poucos e um tanto tímidos os que defendem abertamente um golpe contra o governo, mas essas coisas podem crescer se a população não tem os instrumentos que lhes permitam conhecer como funcionam as engrenagens de uma sociedade injusta e desigual. Mais ainda quando os governantes do PT não criaram uma política de comunicação que lhes permita responder as sucessivas mentiras e campanhas levadas a cabo pela mídia”.
Frei Betto é teólogo e escritor, enfrentou a ditadura e segue uma linha de pensamento libertária
Frei Betto é teólogo e escritor, enfrentou a ditadura e segue uma linha de pensamento libertária

Frei Betto: “É preciso comemorar”

Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como o Frei Betto , (Belo Horizonte, 25 de agosto de 1944) é um escritor e religioso dominicano brasileiro.

Adepto da Teologia da Libertação, foi militante engajado em movimentos pastorais e sociais, tendo ocupado a função de assessor especial do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2004. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.

Frei Betto esteve preso por duas vezes sob a ditadura militar: em 1964, por 15 dias; e entre 1969-1973.2 Após cumprir quatro anos de prisão, teve sua sentença reduzida pelo STF para dois anos. Sua experiência na prisão está relatada nos livros “Cartas da Prisão” (Agir), “Dário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco) e Batismo de Sangue (Rocco). Premiado com o Jabuti de 1983, traduzido na França e na Itália, Batismo de Sangue descreve os bastidores do regime militar, a participação dos frades dominicanos na resistência à ditadura, a morte de Carlos Marighella e as torturas sofridas por Frei Tito. Baseado no livro, o diretor mineiro Helvécio Ratton produziu o filme Batismo de Sangue, lançado em 2007.3

Frei Betto recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares.

– Frei Betto, você que foi preso, torturado durante a ditadura, como analisa esta data de 50 anos de golpe militar?
– É preciso comemorar, no sentido etimológico de fazer memória, os 50 anos da implantação da ditadura no Brasil. Como diria Marx, para que a história, uma tragédia, não se repita como farsa. As novas gerações precisam saber como foi, o que foi e o que fez a ditadura ao longo de 21 anos governando o Brasil. Ainda temos, em nosso país, “viúvas” da ditadura e quem apregoa que a volta dos militares haverá de melhorar o país…

– Como você analisa hoje o processo de redemocratização do Brasil? Quais os maiores avanços desta conquista?
– A ditadura foi derrubada pelo acúmulo político provocado pelas mobilizações dos movimentos sociais: CEBs, associações de bairros, luta pela terra, sindicatos, grupos de arte e cultura etc. Conseguimos eleger um metalúrgico – Lula – presidente da República, consolidando processo democrático. Grandes avanços ocorreram ao longo dos 11 anos de governo do PT: controle da inflação, elevação do salário mínimo, inclusão econômica de 55 milhões de pessoas etc. Porém, os arquivos da ditadura de posse das Forças Armadas não foram abertos até hoje e a Comissão da verdade, que apura os crimes do regime militar, não tem poder de punir. Além disso, nenhuma reforma de estrutura foi implementada nesses 11 anos de governo, nem a agrária, nem a política, nem a tributária etc

– O processo de democratização no Brasil forjou ao longo desses anos um Estado de direito?
– Sim, mas falta muito para aperfeiçoá-lo. Precisamos de uma nova carta constitucional, e esperamos que o povo brasileiro vote a favor disso no plebiscito que ocorrerá a 7 de setembro. Precisamos, após a inclusão econômica de inclusão política, pela qual os jovens se mobilizam nas ruas. Nossa democracia ainda é meramente “delegativa” e não participativa. Há muito a fazer e lutar!
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* Marilza de Melo Foucher é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil em Paris.
Fonte: http://correiodobrasil.com.br/30/03/2014

domingo, 30 de março de 2014

" Para professores e escolas, é mudar ou morrer, diz estudioso "


Entrevista: Ronaldo Mota

Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade Federal de Santa Maria e autor do livro “Educando para a Inovação”

Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade Federal de Santa Maria e autor do livro “Educando para a Inovação” (Berenice Roth)

O professor emérito da UFSM, especialista em ensino e inovação tecnológica, diz que o atual sistema educacional é obsoleto e que o novo modelo só se erguerá se docentes e instituições ouvirem as lições de um ator: o aluno

Bianca Bibiano
Séculos depois do início da universalização do ensino e décadas após a introdução da formação profissional, a educação enfrenta uma terceira revolução. O motor é a tecnologia. Nem todos, porém, reagem bem ao terremoto, avalia Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade Federal de Santa Maria, ex-secretário de desenvolvimento tecnológico e inovação no Ministério da Ciência e ex-secretário de ensino superior do Ministério da Educação. "Os alunos já podem estudar em casa e até obter diploma pela internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes", diz Mota, que acaba de lançar, em coautoria com David Scott, professor da universidade de Londres, o livro Educando para Inovação (Elsevier, 49,90 reais). A obra aborda o desafio das escolas de formar pessoas em um mundo de mudanças aceleradas em que a grande demanda é o aprendizado permanente. A despeito do atraso geral de instituições e mestres para lidar com a nova realidade — "O modelo de escola que conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do professor, também" —, ele diz que o Brasil pode aproveitar a crise do modelo de ensino para promover uma grande transformação. "Temos uma população jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade diante de experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se fizéssemos disso um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos uma grande transformação." Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

"Seria um erro concluir que a escola não é mais importante. Ela é, mas desde que reconheça a existência do novo processo e que saiba se inserir nessa realidade."


Em Educando para Inovação, o senhor afirma que as mudanças a que assistimos hoje não são apenas tecnológicas e que esse movimento impulsiona também uma revolução de conceitos. Quais ideias estão em transformação? Inovação é muito associada a equipamentos e maquinário, mas as grandes mudanças deste século não têm necessariamente essa característica. Tomemos como exemplo uma inovação em outra área: o Cirque du Soleil. A partir do conceito tradicional do circo, o grupo canadense promoveu uma reestruturação radical e formatou um novo produto, criando um novo público. O conceito tradicional de inovação parte da ideia de que existe, antes de tudo, uma demanda para um produto ou processo. O que estamos vivendo neste século, porém, é o aparecimento de mudanças que não provêm da necessidade. Elas são tão revolucionárias que induzem a demanda após serem criadas. O tablet não foi feito após uma consultoria descobrir que havia demanda por computadores não portáteis. Ele surgiu como um produto inovador e criou a demanda a partir dele. Talvez você não necessite de uma impressora 3D agora, mas daqui a três anos vai querer uma em casa. O produto convence você de que é impossível viver sem ele.

Como a escola se insere nesse contexto de mudanças aceleradas? O que significa educar para a inovação? Significa que a escola precisa formar pessoas aptas a viver nesse cenário de constante inovação. No modelo fordista (sistema predominante no séxulo XX marcado pela linha industrial de produção), o papel da educação era formar técnicos competentes, aptos a atuar na produção tradicional para desenvolver tarefas com eficiência. Definitivamente, educação não é mais isso. O mundo não é mais fordista. Hoje, o sucesso ou não das empresas está associado diretamente à capacidade de inovar. O problema é que a escola segue se preparando para o antigo modelo. É como formar profissionais competentes que podem trabalhar em uma gráfica em vez de formar designers capazes de atuar em várias plataformas de comunicação. As instituições de ensino ainda não são, em geral, capazes de fazer esse raciocínio, pois carregam um atraso intrínseco. A título de comparação, tomemos o que aconteceu na área financeira nos últimos 30 anos: os bancos de hoje em nada lembram as instituições do passado devido à ascensão tecnológica. Enquanto isso, a escola permaneceu absolutamente a mesma. Ainda mantemos a figura clássica do professor que entra na sala de aula e apresenta o conteúdo para os alunos como se eles não soubessem nada. Isso, porém, não deve nos dar a ilusão de que a escola não será transformada: ela será.

Que tipo de transformação será essa? O modelo de escola que conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do professor, também. Ele poderá até receber outra denominação, como "designer educacional", um profissional dedicado à organização de conteúdos. Mas ele não poderá fazer essa tarefa sozinho: o processo de ensino e aprendizado será cada vez mais coletivo. O designer educacional de física que se propuser a colocar o conteúdo de aula em uma plataforma on-line contará com ajuda de gente que saiba usar a plataforma, alguém que entenda de design, usabilidade e ferramentas no ambiente virtual. Não será uma pessoa só, vai ser um time. No começo do processo de mudança, provavelmente ainda contaremos com um professor clássico, que domina o conteúdo de uma disciplina. Mas ao lado dele, veremos um menino de 14 anos, responsável por fazer a interface gráfica da plataforma. É um fenômeno que já está acontecendo: as grandes funcionalidades dos portais educacionais são desenvolvidas hoje por jovens que dominam os sistemas digitais graças à afinidade que possuem com o universo dos games. Se resolver ficar sozinho, o professor perderá essa corrida.

Nesse cenário, como será o ensino? Grande parte dos jovens já aprende parte do conteúdo escolar em canais que não dependem da escola. Os alunos já podem estudar em casa e até obter diploma pela internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes. Não é o fim da escola, mas uma chance que se apresenta para aqueles alunos que não aguentam permanecer em sala de aula e que procuram mecanismos alternativos para adquirir o próprio conhecimento. Há muitos adolescentes criativos, que serão profissionais muito competentes e que simplesmente vivem em conflito com a escola. É um processo que vai acontecer cada vez mais. Até pouco tempo, existia um conflito do professor, que era alguém não digital, com o aluno, um nativo digital. Já estamos na fase seguinte, do não diálogo. As crianças já chegaram a uma etapa em que abstraem o conflito e simplesmente aprendem por conta própria, independente da escola. Seria um erro concluir que a escola não é mais importante. Ela é, mas desde que reconheça a existência do novo processo e que saiba se inserir nessa realidade. Se a escola entender isso como um confronto, vai perder.

Se a escola não mudar, a evasão de alunos vai crescer? Sim. A escola já enfrenta esse fenômeno, ainda que se trate de uma evasão não contabilizada. O aluno é deixado pelos pais na escola, senta lá por algumas horas e finge prestar atenção às aulas. O professor, por sua vez, altamente desestimulado, deixa o aluno ali, muitas vezes evitando o conflito. Quando olhamos os resultados numéricos desse modelo educacional, concluímos que o ensino vai mal. Sim, está ruim, mas é mais grave que isso. Temos dois conflitos acontecendo ao mesmo tempo: o ensino tradicional vai mal no Brasil e vai mal em si. Para superar essa crise, precisamos melhorar a qualidade de ensino e, simultaneamente, transformá-lo. O Brasil tem uma real oportunidade de dar um salto significativo e mais rápido do que outros países se entender a importância da inovação.

Por quê? Tomemos como base os resultados do exame do Pisa (mais importante avaliação educacional do mundo, realizada em alunos com 15 anos de idade), da OCDE. A Finlândia está sempre nos primeiros lugares da prova, que avalia o ensino tradicional. Qual a consequência? Os professores finlandeses morrem de medo de mudar seu método de ensino: afinal, quem quer mexer em time que está ganhando? A Finlândia pode não conseguir enfrentar os desafios da inovação com tanta facilidade. O Brasil, por sua vez, não tem motivo para temer a mudança. Afinal, se olharmos para o ensino médio brasileiro, podemos afirmar que não há como piorar. Por isso, temos um campo vasto para aplicar metodologias revolucionárias. O Brasil tem 200 milhões de habitantes e 104 milhões de usuários da internet, que em média navegam mais do que pessoas de outros países. Temos uma população jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade diante de experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se fizéssemos disso um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos uma grande transformação.

Quais os caminhos para a inovação? Precisamos usar metodologias que valorizem a aprendizagem independente. Em caminho contrário, o Brasil deve ser o campeão mundial da aprendizagem dependente. Desde a pré-escola até o pós-doutorado, o que fazemos é estimular o estudante a ser dependente do professor. Por que o professor que termina o pós-doutorado na universidade tem medo de sair do laboratório? Porque ele é dependente. Nos países mais desenvolvidos, o estudante é estimulado a encontrar seus próprios caminhos. Aqui, criamos uma estrutura de dependência tão grande que as pessoas são estimuladas a não abdicar da zona de conforto. O que mais precisamos é do oposto disso. Quando isso ocorre, temos a rebelião à que estamos assistindo, sem interferência do Estado, dos pais e muito menos da escola: essa rebelião é movida pela juventude à procura de mecanismos alternativos. Isso explica o sucesso de serviços de aprendizagem on-line como o Veduca, que já tem 3,5 milhões de inscritos.

Como o senhor avalia projetos que tentam colocar o tablet na sala de aula? Na maioria, são frustrantes, porque são feitos por gestores escolares que não são do campo da tecnologia digital aplicada à educação. Daí, cena comum, os pais pagam pelos tablets e, como as estatísticas comprovam, eles ficam jogados em casa. Em geral, os alunos recebem o aparelho com um material antiquado, com reproduções de apostilas idênticas ao material impresso. Mas a questão vai muito além do produto. O hábito de estimular o aluno a estudar em casa depois de ver o conteúdo em sala aula é falido, não há a menor chance de dar certo. A única forma de preparar alguém para a inovação e para a aprendizagem independente é oferecer o conteúdo antes da aula e fazer com que os momentos presenciais e coletivos passem por um filtro: só participam desses momentos aqueles que demonstrarem o mínimo interesse. Se a criança sequer tocar no conteúdo antes, ela simplesmente não deveria participar do convívio. Sabemos, por vários experimentos, que se metade da turma estiver prestando atenção e a outra metade não estiver, a parte desinteressada contamina o restante do grupo e o resultado é um desastre. Se o professor usar um filtro inicial baseado em interesse e realizar os momentos coletivos somente com aqueles que demonstraram o mínimo de interesse, os resultados vão lá para cima.

E o que o professor faria com o estudante que não se interessa? Ele pode mandá-lo para a biblioteca, para uma sala de informática, para qualquer outra atividade. Em uma metodologia tradicional, mesmo que o professor tenha toda a rotina sob seu controle, ele precisa reprovar aquele que não acompanhou o grupo. Isso não é negativo da mesma maneira? Uma nova metodologia implica mudança de cultura. Vai ser normal que o aluno assuma que não pode assistir à aula porque não se preparou para ela, e terá que ser aceitável tanto para o gestor escolar quanto para os pais. Na próxima aula, ele vai se preparar para participar.

Que mudanças de conceitos são necessárias para a transformação de que o senhor fala? Todo o processo educativo tradicional é baseado na cognição, ou seja, como se aprende e como se ensina. O mais importante no futuro será a metacognição: o aluno terá que entender o processo ao que está submetido e conhecer seus avanços, obstáculos e deficiências. Ele precisa se enxergar no processo educacional. Isso abre a porta para um novo ponto: a classe não se dividirá mais entre aqueles que sabem e os que não sabem, mas dará espaço para um terceiro, que não sabe o conteúdo, mas sabe onde encontrá-lo. No mundo atual e futuro, é mais relevante a atitude de uma pessoa diante de uma pergunta para a qual ela não tem resposta, porque o acesso à informação não é mais crítico. O professor tem que esquecer essa ideia de que vai disputar espaço com a tecnologia. Não há chance de ele dominar mais esse tema que um jovem. Ele tem que achar mecanismos para dizer ao aluno: "Eu não sei essa linguagem como você sabe, mas eu estou disposto a compartilhar o que eu sei e aprender com você." Mas fazer isso exige um alto nível de maturidade e metacognição para entender o papel de cada um. Ele não pode mais chegar na aula e dizer que sabe mais, pois não sabe mais sobre certas áreas, como as tecnologias digitais.

Não é, de fato, o que acontece hoje nas escolas, certo? Não, ainda temos a maior parte dos professores pedindo que seus alunos desliguem o celular durante as aulas. Mas eles não conseguem, cada vez que ele vira para frente, o estudante está lá teclando. O problema real não é esse, os jovens conseguem perfeitamente acompanhar os dois e não haverá como mudar isso. As crianças não vão mais aprender equação de segundo grau na escola. Elas vão procurar um vídeo, com um bom professor, e vão aprender na hora que querem, como querem, com algum nível de interatividade. O espaço tradicional de ensino hoje mais se assemelha à tortura do que ao ensino.Tenho a esperança de que a escola vá reconhecer esse movimento e se reconceitualizar.

Quais os avanços vistos em outros países? A Inglaterra é um país que está avançando muito. Eles fizeram uma ação interessante no ensino médio. Mudaram a obrigatoriedade de certas disciplinas, como química, física e biologia: não é mais necessário fazer as três ao mesmo tempo, e o aluno pode ter sua motivação voltada apenas para biologia, por exemplo. Mas a maior inovação está em garantir uma preparação dentro dessa disciplina para que o professor introduza elementos de química e física. O aluno pode estudar pressão, conteúdo da física, a partir do estudo da capilaridade das plantas, um capítulo da biologia. Isso introduz, de forma agradável, conceitos que são relevantes. O professor tradicional pode dizer que desse modo o estudante não aprende toda a física e a química. Mas eu pergunto: por acaso, ele aprende tudo com o atual sistema de aulas? Provavelmente não, e ainda deixa a escola com raiva das ciências. Se você apresenta um modelo em que o aluno desenvolve apreço pelo método científico e se sente parte do processo, não importa se ele escolheu cursar uma, duas ou três disciplinas, mas, sim, o fato de que, ao escolher, ele possa dizer: "Eu sou corresponsável pelo processo."
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Fonte: http://veja.abril.com.br 30/03/2014

" Do Kaos à redemocratização "


Jorge Mautner*

Disseram que o governo militar pedia a nossa volta porque só com os intérpretes da música popular brasileira o povo iria acreditar na democratização
Quando comecei a escrever o livro "Deus da Chuva e da Morte", em 1956, logo criei o Partido do Kaos. Era um partido pacifista e já refletia a inclusão de minorias e o total repúdio ao racismo (lembre-se, sou filho do Holocausto). O nosso PK recrutava todas as camadas da sociedade, as mais diferentes ideias.

Em 1962, o PK tinha 3.000 militantes. Nossa sede era em uma garagem perto da praça Buenos Aires. Foi quando recebi a visita do professor Mário Schenberg. Em vez de continuar suas pesquisas enaltecidas por Einstein, ele preferiu voltar ao país e se candidatar a deputado pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro). Entrou em nossa sede dizendo que nem realismo socialista, nem cubismo, nem futurismo ou surrealismo poderiam descrever o novo ser humano. Era necessário uma nova mitologia --no caso, a do Kaos.

Dissolvemos o partido e entramos no Comitê Central, na célula de Schenberg. Falávamos de astrofísica e líamos Brecht. Um dia, chegando no apartamento do gênio Mário Schenberg, eu o encontrei abatido, com um charuto apagado na boca. Ele disse: "Está tudo acabado! Vou dar o último telefonema para o Darcy Ribeiro. Alô! São ordens de Moscou (fiquei boquiaberto). Vocês têm que prender os cabos e sargentos revoltosos, incluindo o cabo Anselmo. Mas mais importante: libertem os oficiais pedindo perdão de joelhos!'".

Schenberg não disse mais palavra. Duas semanas depois, chegou um general ao apartamento do professor dizendo: "O que é que vocês fizeram!? Não sabem que a única coisa que não poderia ser feita é quebrar a hierarquia do Exército!? 95% das Forças Armadas são legalistas, a favor de Juscelino para as eleições".

Mário Schenberg respondeu: "Somos os únicos que não estamos apoiando essa aventura do cabo Anselmo. Até a democracia cristã, Franco Montoro, todos estão a favor, entusiasmados com a Revolução Cubana". Não podíamos comunicar a ninguém a terrível inevitabilidade. Havia um avião para quem do Comitê Central quisesse ir à União Soviética. Pelo que eu saiba, o único que aceitou foi o psiquiatra Bursa.

Três meses depois, um jipe do Exército parou em frente de casa. O capitão se apresentou, e minha mãe perguntou: "Vocês vão prender meu filho!?". E o oficial respondeu: "Não, senhora, viemos protegê-lo. É um escritor, grande patriota, e está sendo procurado pelo Comando de Caça aos Comunistas, organização civil da qual não temos controle".

Fui para Barretos (SP) e fiquei três meses hóspede do Segundo Exército. Lá me disseram que meu comunismo era passageiro, porque eu enaltecia a amálgama do Brasil mais do que ninguém. Não tinham dúvida de que eu iria me comportar. Ao voltar, gravei um disco em 1965 com duas músicas de protesto: "Radioatividade" e "Não, Não, Não". O meu terceiro livro, "Narciso em Tarde Cinza", e o quarto, "Vigarista Jorge" foram apreendidos, assim como o meu compacto de protesto.

E aí fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Fui para os Estados Unidos, de onde só voltaria em 1972. Lá, trabalhei na Unesco, fui lavador de pratos, ajudante de garçom, massagista e, finalmente, em 1968, me tornei secretário literário de Robert Lowell, que foi secretário literário de Ezra Pound, e Ezra Pound o foi de Thomas Stearns Eliot. Também trabalhei e fui muito amigo de Paul Goodman.

Até que, em 1969, encontrei Gil e Caetano em Londres e nossa célula democrática cresceu para sempre. Em Paris, Violeta Arraes recebia todos os torturados de todas as organizações libertadoras. Em 1971, hóspedes do Partido Comunista de Barcelona, eu, Ruth, Gil, Sandra, Caetano, Dedé e Violeta Arraes estávamos em La Escala, no litoral. Eram os últimos anos de Franco, e Violeta Arraes me puxou para uma conversa.

Anunciava que o governo militar brasileiro pedia a nossa volta porque só através dos intérpretes da música popular brasileira é que o povo iria acreditar na democratização. Segundo o recado, o povo brasileiro havia caído em profunda melancolia não acreditando na democratização. Nossa volta era essencial para impedir que a linha dura permanecesse no poder. O resto contarei em detalhes nos 20 volumes sobre as andanças minhas com Gil, Caetano e Nelson Jacobina.
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* JORGE MAUTNER, 73, é compositor, músico e escritor
Fonte: Folha online, 30/03/2014