J. J. Camargo
Dr.cirurgião e chefe do Setor de
Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
Porto Alegre.RS
No fim extemporâneo, nem sempre os gestos são pacíficos ou melancólicos
A relação afetiva sólida e verdadeira é feita para durar, de preferência, indefinidamente. Por isso, os últimos gestos do amor nem sempre são pacíficos ou simplesmente melancólicos. Às vezes, são profundamente amargos de viver, especialmente quando a morte, na sua afoiteza indelicada, interrompe uma vida que nem cumpriu um tempo mínimo para se justificar.
A velhice empresta naturalidade à morte, e, por isso, se chora menos nos velórios dos muito velhos. É como se houvesse um pacto de não se lamentar demasiado o que era inevitável que acontecesse.
O protesto soluçado e a dificuldade de engolir pela dor física da perda, esses, sim, são ingredientes das tragédias extemporâneas, porque, além de termos de enfrentar a inaceitável estupidez da morte, ainda temos de conviver com os que ficaram para trás, consumidos de dor e abandono.
A Samanta tinha 32 anos, um sorriso lindo que quase lhe fechava os olhos azuis, e um jeito inconfundível de abraçar o travesseiro quando
tinha medo das notícias.
Foi internada com uma história recente de falta de ar e um passado próximo de câncer de pâncreas. Tudo o que se podia fazer tinha o desânimo assumido da paliação, limitada e frustrante.Alegria fugaz apenas no final da tarde, quando o George, na inocência desprotegida de seus cinco aninhos, entrava no quarto saltitando e jogava sua mochila colorida nos pés da cama.
Comovente o esforço que ela fez para curtir o convívio, até o limite da frágil percepção dele, do quanto seria trágica, para ambos, a perda que se aproximava. Nos últimos dias, quando ela já não conseguia mais simular felicidade, o filhote foi resgatado pela avó, e a mãe definhou embaixo do cobertor a confirmar o quanto a distância da cria acelera a morte da mãe.
Duas semanas depois, encontrei o Jacques no shopping, comprando mais uma edição do Play Station, e quis eu saber do George:
— Uma noite dessas, ele entrou no meu quarto e me surpreendeu chorando. Pela primeira vez consegui verbalizar o que tinha ocorrido: “Nós
perdemos a mamãe!”.
Choramos um pouco mais, e acabamos dormindo abraçados. Na manhã seguinte, enquanto preparava o café, ele
apareceu na cozinha, super animado: “Pai, já sei o que fazer. Vamos pendurar as fotos da mamãe em todas as árvores da nossa rua! Lembra como deu certo quando perdemos o Chaveco?”
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