quarta-feira, 25 de abril de 2018

Iluminismo ou marxismo?


 - ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA

             ESTADÃO - 25/04

Sem balizar as duas concepções o ‘ativismo judicial à brasileira’ será uma nau sem rumo

Em 2016 conheci in loco o sólido e milenar sistema jurídico da Inglaterra. Dele se orgulham os cidadãos ingleses, porque garante segurança jurídica e confere estabilidade econômica ao País.

Lorde Tom Bingham (1933-2010) foi um grande jurista e presidiu a Suprema Corte do Reino Unido. No seu clássico livro The Rule of Law explica a concepção britânica do Estado de Direito: 1) Nenhum homem será punido, castigado corporalmente ou privado de seus bens, a não ser em caso de violação do Direito vigente; 2) essa violação será apurada pelos tribunais ordinários, jamais por um tribunal composto de juízes escolhidos para julgar segundo o interesse do governo; e 3) os juízes devem ser independentes e imparciais. Por fim citava Thomas Fuller (1654-1734): “Você nunca será tão alto, a lei está acima de você”.

Por muito admirar e respeitar o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, preocupa-me a ponderada crítica do notável professor Ives Gandra da Silva Martins ao protagonismo crescente daquela Corte. É preciso – defende – resgatar a efetiva autonomia e independência dos Poderes. Nenhum deles invadirá seara alheia: “Para mim, o Supremo não é um ‘legislador constituinte’, mas exclusivamente um guardião da Carta da República” (Consultor Jurídico, 12/7/2016).

Eros Roberto Grau, outro portento das letras jurídicas nacionais e ex-ministro do STF, sustenta que o Direito moderno deve assegurar o desenvolvimento da vida social em clima de paz e segurança: “Submetemo-nos ao poder exercido pelo Estado moderno em troca de garantias mínimas de segurança, por ele bem ou mal asseguradas. Sem a calculabilidade e a previsibilidade de comportamentos instaladas pelo Direito moderno, o mercado não poderia existir” (Princípios, a (in)segurança jurídica e o magistrado, revista Amagis Jurídica, n.º 7, 2012).

Após sua rica experiência na suprema magistratura, já aposentado, Eros Grau publicou a excelente obra Por que Tenho Medo dos Juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios), de 2013. Sustenta que a invasão da competência do Poder Legislativo pelo Judiciário é alarmante. Não mais vivemos “Estado de Direito”, porém submissos a um “Estado de juízes”. Destaca o autor que “é necessário afirmar bem alto: os juízes aplicam o direito, os juízes não fazem justiça! Vamos à Faculdade de Direito aprender direito, não justiça. Justiça é com a religião, a filosofia, a história. (…). Assim é o juiz: interpreta o direito cumprindo o papel que a Constituição lhe atribui”.

Lembrei-me dessas reflexões a propósito da manifestação do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, há pouco mais de quatro anos, quando votou pela inconstitucionalidade das doações de empresas para campanhas eleitorais. “Temos um sistema eleitoral que comporta lista aberta e financiamento empresarial que é um foco de antirrepublicanismo e corrupção”, afirmou.

Para ele, o financiamento por empresas viola o princípio democrático, pois desiguala os candidatos em função do poder aquisitivo: “Se o peso do dinheiro é capaz de desequiparar as pessoas, acho que este modelo apresenta um problema”.

Barroso afirmou ainda não viver a fantasia de ignorar a existência da desigualdade. Entretanto, considera papel do Direito minimizar o impacto do dinheiro na criação de desequilíbrios: “O modelo em si precisa ser transformado e cabe ao STF empurrar a história nesse sentido. (...) Às vezes é preciso uma vanguarda iluminista que empurre a história, mas que não se embriague desta possibilidade, pois as vanguardas também são perigosas quando se tornam pretensiosas” (Consultor Jurídico, 12/12/2013).

Sou antigo leitor e sincero admirador do professor Barroso. Contudo preocupa-me conceber a necessidade de uma “vanguarda iluminista”, no Supremo Tribunal Federal ou em qualquer outro órgão judiciário, para “empurrar a história”.

Vislumbro – ainda que possa não ter sido essa a intenção do culto professor e magistrado – uma insolúvel mixórdia de liberalismo com marxismo.

O Iluminismo foi a ideologia marcante do século 18, o “Século das Luzes”. Na política, propugnava o liberalismo, opunha-se ao absolutismo e renegava o direito divino dos reis. Na economia, traduzia as aspirações da burguesia emergente: “Laissez faire, laissez passer, le monde va de lui même” (“deixai fazer, deixai passar, que o mundo caminha por si mesmo”). O Estado não deve intervir no mercado.

“Empurrar a história” é ideia que nos remete ao “materialismo histórico”, de Karl Marx e Friedrich Engels: “A história não é um progresso linear e contínuo, uma sequência de causa e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção e as forças produtivas. A luta de classes exprime tais contradições e é o motor da história. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético” (Marilena Chaui, Filosofia, págs. 238 e 239).

O marxismo contrapõe-se ao liberalismo. Apregoa a luta emancipadora do proletariado contra o domínio burguês (luta de classes). Ora, a dominação da burguesia, repelida pela ideologia de Karl Marx, é sustentada pelo ideário liberal...

Será o financiamento eleitoral “luta de classes”? O Supremo Tribunal Federal, ao eliminar o financiamento de empresas aos partidos e candidatos e “equilibrar” as disputas eleitorais, age em prol das “classes oprimidas”? É esse o “iluminismo” que faz “mover a história”? Iluminismo ou marxismo? É preciso que essas concepções sejam devidamente balizadas. Do contrário, o “ativismo judicial à brasileira” será uma nau sem rumo.

No mais, a extinta União Soviética, os países da “cortina de ferro”, a China maoista, a Coreia do Norte e Cuba mostram-nos claramente no que pode desaguar o “mover da história”...

* ROGÉRIO MEDEIROS GARCIA DE LIMA É DOUTOR PELA UFMG, PROFESSOR UNIVERSITÁRIO, DESEMBARGADOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS

Alta do dólar não deve piorar situação da dívida do governo e das empresas 


- ALEXANDRE SCHWARTSMAN

      FOLHA DE SP - 25/04

Quando real perde valor, governo e o setor privado veem seus ativos em moeda estrangeira protegidos

A acumulação de reservas ajudou o país a se tornar mais estável. O processo que se iniciou em janeiro de 2004 dotou o país de um volume expressivo de divisas que podem ser usadas em caso de alterações bruscas nas condições financeiras globais.

No fim de 2008, por exemplo, o BC ofertou dólares, inclusive para o financiamento das exportações, quando os bancos internacionais se retraíam. Isso limitou o contágio e permitiu a recuperação mais rápida da economia naquele momento em comparação a um cenário em que empresas não tivessem acesso a essa modalidade de crédito.

Há, obviamente, uma discussão ainda em curso sobre os benefícios e os custos das reservas, o que naturalmente desemboca na pergunta do nível ótimo de reservas, mas não é desse assunto que pretendo tratar aqui.

Menos conhecida, mas não menos importante, é a acumulação privada de ativos estrangeiros, principalmente na forma de investimentos diretos. Em parte pela liberação a partir de abril de 2005 (empresas tinham antes de obter permissão para investir mais do que US$ 50 milhões no exterior), em parte por sua maior integração à economia global, houve um aumento apreciável do estoque de investimentos brasileiros no exterior.

Considerando apenas a participação no capital, ao fim de 2017 o investimento brasileiro atingiu US$ 333 bilhões (ante US$ 54 bilhões em 2004). Somado aos empréstimos a subsidiárias e controladoras, isso chegou a US$ 359 bilhões no fim do ano passado, pouco menos que as reservas (US$ 375 bilhões).

Tal desenvolvimento tem consequências importantes. Embora o país ainda apresente um passivo externo (dívidas e investimentos estrangeiros) superior ao seu ativo (US$ 1,6 trilhão, ante US$ 861 bilhões), a composição de passivos e ativos em termos das moedas se tornou bem mais favorável ao Brasil.

Colocado de forma bastante simples, “devemos” a estrangeiros em reais (o equivalente a US$ 1 trilhão) e somos seus “credores” em dólares (US$ 320 bilhões). Assim, quando o real perde valor, tanto o governo quanto o setor privado veem seus ativos em dólares protegidos, enquanto seus passivos encolhem.

Isso não é uma teoria.

Entre junho e dezembro de 2008, quando o dólar saltou de R$ 1,60 para R$ 2,40 (desvalorização de 50%), o passivo externo total caiu de US$ 1 trilhão para US$ 665 bilhões. Da mesma forma, quando o real se depreciou quase 50% ao longo de 2015, o passivo externo encolheu de US$ 1,5 trilhão no fim de 2014 para US$ 1,2 trilhão no fim de 2015. Em ambos os eventos, os ativos externos ficaram praticamente inalterados.

No caso do setor privado, embora empresas brasileiras tenham dívidas no exterior, o balanço do conjunto delas mostra ativos em dólares um pouco maiores do que passivos (algo como US$ 22 bilhões). Para o setor público, a diferença é ainda maior: quase US$ 300 bilhões.

Assim, ao contrário do que ocorreu em outros momentos, a desvalorização da moeda nacional não deve piorar a situação de endividamento do setor privado, nem do setor público. O primeiro, em seu conjunto, registraria ganhos modestos, enquanto o segundo teria ganhos bem mais expressivos.

A liberação do mercado de câmbio em 2005 tornou as empresas menos vulneráveis aos movimentos do dólar, movimento voluntário e que, portanto, reflete o balanço de incentivos e riscos do setor privado.
Mais uma lição a ser estudada, num país que resiste como poucos ao aprendizado.

A face não tão bela do Big Data


 - CRISTINA M. A. PASTORE

        GAZETA DO POVO - PR - 25/04

Microtargeting não nos parece tão malévolo quando a Netflix nos sugere o filme perfeito para o momento, certo?
Quem não exclamou algo parecido com “é um absurdo!” sobre o recente escândalo envolvendo Facebook e Cambridge Analytica? Parece inadmissível considerar que empresas estejam usando nossas informações compartilhadas em uma rede social para nos manipular, principalmente porque não os autorizamos a usar estes dados. Mas talvez esta revolta não nos dê a visão mais completa.

No caso específico da Cambridge Analytica, tudo começou com o psicólogo e cientista de dados Michael Kosinsky, interessado em como a personalidade poderia afetar decisões, comportamentos e preferências. Ele criou um aplicativo de Facebook que prometia mapear a personalidade das pessoas a partir de suas respostas, ao mesmo tempo em que coletava dados pessoais dos usuários. A autorização era solicitada com uma frase parecida com “permitir que o aplicativo acesse seus dados de perfil” – certamente o leitor se lembra de já ter visto isso em alguma ocasião. Munido de uma gigante base de dados, Kosinsky criou um algoritmo preditivo relacionando os elementos de personalidade com o comportamento dos usuários no Facebook e divulgou o estudo. Daí ao uso deste tipo de dados e algoritmos para persuadir eleitores, foi um pulo.

Mas o que a estratégia da Cambridge Analytica tem de tão inovadora? Se entendermos eleitores como consumidores, pouca coisa. Eles usam dados individuais para gerar mensagens convincentes dentro do objetivo que têm, que poderia ser vender sabão em pó da marca A, mas é convencer a votar no candidato B. Na eleição de Trump, por exemplo, se você fosse eleitor nos Estados Unidos, poderia ter recebido mensagens dizendo “não vote em ninguém”, “vote em Trump”, “Hillary não é confiável” ou diversas outras, conforme sua propensão a concordar com isso ou aquilo. A estratégia se chama microtargeting e é a evolução da mídia de massa: em vez de enviar a mesma mensagem a muitos consumidores, o uso de dados como filtros direcionadores permite a comunicação de maneira one-to-one, em que a empresa pode dizer exatamente o que o consumidor espera ouvir.

Nós queremos que empresas armazenem nossos dados e os utilizem para gerar experiências de compra personalizadas

Veja por outro lado: microtargeting não nos parece tão malévolo quando a Netflix nos sugere o filme perfeito para o momento, certo? Ou quando buscamos algo específico no Google e a resposta ideal aparece logo no primeiro link patrocinado. Aliás, isso é justamente o que queremos hoje enquanto consumidores: customização. Esperamos que ao acessar o aplicativo de transporte nossas preferências de destino estejam salvas, que ao chegar a uma nova cidade outro aplicativo nos sugira restaurantes de acordo com nossas preferências, e que ao fazermos compras on-line possamos, na sequência, receber ofertas de produtos que “combinem”. Nós queremos justamente que empresas armazenem nossos dados e os utilizem para gerar experiências de compra personalizadas. Qual, então, o problema ético com a Cambridge Analytica, se ela fez essencialmente o mesmo? Falta de transparência? Tratar eleitores como consumidores? Ambos?

A linha limítrofe é tênue. Transparência na coleta de dados é fundamental para que a conduta seja ética e o consumidor não se sinta desrespeitado, mas não vejo, sinceramente, este fator como o centro da discussão. A busca por prazer e felicidade se tornou algo tão intenso nos últimos anos, com objetivos tão imediatistas e de curto prazo, que o risco do compartilhamento de informações parece pequeno no instante da decisão. Tornar a coleta mais transparente não fará com que deixe de acontecer. Veja a configuração do seu celular: quantos aplicativos monitoram sua localização geográfica em tempo real, oferendo em troca rapidez e customização?

Ao lado da “irresponsabilidade” dos consumidores, a forma como os dados são adquiridos é outro dos elementos centrais. A Cambridge Analytica não coletou dados, não pediu autorização aos eleitores ou ofereceu algo em troca; ela simplesmente comprou a base de dados do Facebook, plataforma que vende diversão, e os usou para criar uma comunicação convincente. Isso não pode acontecer em um mercado pautado por respeito, e é preciso que encontremos meios legais de garantir que não se repita no futuro. Regulamentar o acesso aos dados é vital para que não desvirtuemos a essência do uso de Big Data.

Um último ponto: deveria haver um limite para a persuasão. A medida de quão longe uma empresa pode ir utilizando dados dos consumidores não está definida e não sabemos qual a distância entre oferecer um produto e direcionar um voto. Talvez a Cambridge Analytica tenha feito um favor à sociedade, ao iluminar um problema que precisa ser resolvido. É hora de desmistificar o uso de Big Data, aceitar que nossa realidade hoje está apoiada na coleta e armazenamento de dados e, juntos, construir diretrizes que regulamentem seus pormenores.

Temos de lembrar que o uso de Big Data tem seu lado positivo e ele é enorme. Na área de saúde, por exemplo, o compartilhamento de dados de pacientes gera pesquisas que auxiliam no avanço de tratamentos e na criação de condutas adequadas. No direito, há algumas iniciativas que utilizam Big Data para auxiliar advogados e juízes a tomar melhores decisões. Existem índices de violência sendo criados pelo compartilhamento de dados, aqui mesmo no Brasil, cujo objetivo é aumentar a segurança pública. Todos partem de dados individuais para, de alguma forma, influenciar positivamente a vida de outras pessoas. Usar dados para customizar ações não é um problema em si, mas pode se tornar um – e dos grandes – sem atitudes éticas.

Cristina M. A. Pastore é professora e pesquisadora de marketing e comportamento do consumidor na PUCPR, pesquisadora visitante de Neurociência do Consumo no Tech3Lab/HEC Montreal e consultora de gestão estratégica de marketing na Mefil.

quarta-feira, abril 25, 2018

O inimigo à solta - J.R GUZZO

REVISTA VEJA 

Os donos do Brasil estatal desafiam a democracia

Daqui a cinco meses o Brasil vai ter eleições para escolher o novo presidente da República. O número de candidatos é quase tão grande quanto o de eleitores – fora um ou outro especialista muito atento, ninguém sabe dizer os nomes de todos, e menos ainda qual poderia ser a utilidade que qualquer deles teria para o país. O que se sabe, com certeza, é que nenhum está minimamente disposto a fazer o que seria a sua obrigação mais elementar – combater com clareza e sinceridade o mais infame inimigo que o povo brasileiro tem hoje em dia. Esse inimigo, um fato provado e sabido há muito tempo, é o estatismo. Não é a corrupção. Não é a extrema direita nem a extrema esquerda, nem qualquer outra força que está no meio do caminho entre as duas. Não é a incompetência terminal da administração pública, nem a burocracia que exige o CPF de Brahms para dar andamento a um processo envolvendo questões obscuras de direitos autorais na área da música clássica. Não é nem mesmo o crime sem controle ou os criminosos sem punição – ou a figura individual de Lula e de seus parceiros no Complexo PT-PSOL-etc. O inimigo mais nefasto do Brasil e dos brasileiros, cada vez mais, é o poder do “Estado”. É isso que oprime a população, explora o seu trabalho, talento e energia, mantém o país no subdesenvolvimento e torna a nossa democracia um número de circo de terceira categoria.

O estatismo, para simplificar a discussão, é a soma das regras que submetem o povo brasileiro ao alto funcionalismo público, às empresas do Estado e ao oceano de interesses materiais de tudo aquilo que se chama “corporações”. É essa multidão de procuradores, promotores, ouvidores, desembargadores, auditores, coletores, juízes, ministros – com todos os seus privilégios, os seus “auxílios-moradia”, os seus custos, o seu direito de viver fora do alcance das leis penais. São os sindicatos. São as federações e as confederações. São as “ordens” de advogados e demais ofícios que criam direitos para seus “inscritos”. São as centenas de repartições públicas que não produzem um único parafuso, mas têm o poder de proibir que os cidadãos produzam. São esses círculos do inferno que dão ou negam licenças, certidões, alvarás, atestados, registros, “habite-ses” e autorizações para praticamente todas as atividades conhecidas do ser humano. O Brasil só existe para servir essa gente – os cidadãos pagam em impostos entre 40% e metade do que ganhem, e o grosso do dinheiro arrecadado vai para o bolso destes senhores de engenho do século XXI, na forma de salários, benefícios, aposentadorias e o mais que conseguem arrancar do Erário.

Esse conjunto de inimigos do Brasil não vacila em desrespeitar as regras mais básicas da democracia para proteger os seus interesses. Não poderiam provar isso de forma mais clara do que as dezenas de juízes que têm tomado decisões a favor dos sindicatos e contra os trabalhadores na questão do imposto sindical. Esse imposto, considerado pela esquerda e pelas corporações como um “direito” – um caso único no mundo de tratar uma obrigação como benefício – foi, como se sabe, suprimido pelo Congresso Nacional na recente reforma trabalhista. Os sindicatos, depois disso, têm entrado na justiça pedindo que a lei, aprovada na Câmara e Senado, não seja cumprida – e que todos os trabalhadores brasileiros, sindicalizados ou não, continuem a pagar um dia de salário por ano para o cofre dos sindicatos. Juízes de vários lugares do Brasil acham que os sindicatos estão certos, e mandam as empresas desobedecerem a lei – e continuarem a descontar em folha o imposto sindical dos seus empregados. É um ato de promoção direta da desordem. Tira dinheiro de milhões para doá-lo aos donos dos sindicatos, espalha a incerteza sobre o que é ou não é legal, e desrespeita uma lei aprovada de forma absolutamente legítima pelo Congresso. Quem representa os cidadãos, bem ou mal, é o Congresso – esse aí mesmo, que é o único disponível. Não são os juízes. O fato de terem sido aprovados em concurso público não lhes dá o direito de aplicarem as leis que aprovam e anularem as que desaprovam. Mas é exatamente esse disparate que estão tentando colocar em pé.

Os juízes que agem dessa maneira atendem unicamente ao interesse das corporações. No caso, agem como parceiros dos sindicatos — e, tanto quanto isso, em defesa da “justiça do trabalho”, a máquina de empregos e privilégios que consideram ameaçada pela reforma trabalhista. Desde que a reforma entrou em vigor, no final do ano passado, o número de ações trabalhistas caiu em 50% — um imenso avanço para o progresso do Brasil, mas um horror para os “juízes”, “procuradores”, “vogais”, advogados e toda a imensa árvore de interesses diretamente enraizada nessa situação de absurdo que começa a tornar-se mais racional. Se as causas caíram pela metade, fica demonstrado que a outra metade era desnecessária – e a ideia de que um mandarim do serviço público possa, em consequência disso, tornar-se ainda mais inútil do que já é, parece simplesmente inaceitável para o mundo estatal. E quem defende a população nesta briga, em pleno ano de eleição presidencial? Até agora, ninguém

terça-feira, 24 de abril de 2018

O PT na lata de lixo da história

 - LUIZ FELIPE PONDÉ

  FOLHA DE SP - 23/04

O partido apenas acrescentou à corrupção endêmica certos tons de populismo

O PT é uma praga mesmo.

Ele quer fazer do Brasil um circo, já que perdeu a chance de fazer dele seu quintal para pobres coitados ansiosos por suas migalhas. Nascido das bases como o partido de esquerda que dominou o cenário ideológico pós-ditadura, provando que a inteligência americana estava certa quando suspeitava de um processo de hegemonia soviética ou cubana nos quadros intelectuais do país nos anos 1960 e 1970, comportou-se, uma vez no poder, como todo o resto canalha da política fisiológica brasileira.

Vale lembrar que a ditadura no Brasil foi a Guerra Fria no Brasil. Quando acabou a Guerra Fria, acabou a ditadura aqui. E, de lá pra cá, os EUA não têm nenhum grande interesse geopolítico no Brasil nem na América Latina como um todo (salvo imigração ilegal). Por isso, deixa ditadores como Chávez e Maduro torturarem suas populações, inclusive sob as bênçãos da diplomacia petista de então.

O PT apenas acrescentou à corrupção endêmica certo tons de populismo mesclado com a vergonha de ter um exército de intelectuais orgânicos acobertando a baixaria. Esses fiéis intelectuais, sem qualquer pudor, prestam um enorme desserviço ao país negando a óbvia relação entre as lideranças do partido e processos ilegítimos de tráfico de influência. Esse exército vergonhoso continua controlando as escolas em que seus filhos estudam, contando a história como querem, criando cursos ridículos do tipo “golpe de 2016”.

Qualquer um que conheça minimamente os “movimento revolucionários” do século 19 europeu, e que também conheça o pensamento do próprio Karl Marx (1818-1883), sabe que mentir, inventar fatos que não existem ou contá-los como bem entender fazia parte de qualquer cartilha revolucionária.

Acompanhei de fora do Brasil o “circo do Lula” montado pelo PT e por alguns sacerdotes religiosos orgânicos,na falsa missa. Esses sacerdotes orgânicos do PT envergonharam a população religiosa brasileira, fazendo Deus parecer um idiota. Estando fora do país, pude ver a vergonhosa cobertura que muitos veículos internacionais deram do circo do Lula, fazendo ele parecer um Messias traído por um país cheio de Judas.

Eis um dos piores papéis que jornalistas orgânicos fazem: mentem sobre um fato, difamando um país inteiro. Esculhambam as instituições como se fôssemos uma “república fascista das bananas”. Nossa mídia é muito superior àquela dita do “primeiro mundo”.

A intenção de fazer do Lula um Jesus, um Mandela, um Santo Padim Pade Ciço é evidente. Para isso, a falsa missa, com sacerdotes orgânicos rezando para um deus que pensa que somos todos nós cegos, surdos, estúpidos e incapazes de enxergar a palhaçada armada pelo PT foi instrumento essencial para o circo montado.

A própria afirmação de que Lula não seria mais um mero humano, mas uma ideia, é prova do delírio de uma seita desesperada. Um desinformado pensaria estar diante de um Concílio de Niceia (325) perdido no ABC paulista. Se nesses concílios tentava-se decidir a natureza divina e humana de Jesus, cá no ABC tentava-se criar a natureza divina de Lula. Lula, humano e divino, o redentor. Essa tentativa, sim, é típica de uma república das bananas.

Penso que em 2018 o país tem a chance de mostrar de uma vez por todas que não vai compactuar com políticos que querem fazer do Brasil um circo para suas “igrejas”. A praga em que se constituiu o PT pode ser jogada na lata de lixo da história neste ano.

Ninguém aqui é ingênuo de pensar que apenas o PT praticou formas distintas e caras de tráfico de influência. Todas elas são danosas e devem ser recusadas em bloco nas eleições deste ano. Mas há um detalhe muito importante no que se refere ao PT como um tipo específico de agente único de tráfico de influência sistemático no Brasil. Você não sabe qual é? Vou te dizer.

O PT é o único partido que é objeto de investigação por corrupção a contar com um exército de intelectuais, artistas, professores, diretores de audiovisual, jornalistas, sacerdotes religiosos, instituições internacionais, apoiando-o na sua cruzada de continuar nos fazendo escravos de seus esquemas de corrupção. Esse exército nega frontalmente a corrupção praticada pelo PT e destruirá toda forma de resistência a ele caso venha, de novo, a tomar o poder.

No ano de 2018 o país pode, de uma vez por todas, lançar o PT à lata de lixo da história e amadurecer politicamente, à esquerda e à direita.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Fonte de incerteza

 - EDITORIAL O ESTADÃO

       ESTADÃO - 22/04

É surpreendente o fato de haver juízes no Brasil que afrontam um dispositivo legal redigido em português cristalino

A entrada em vigor da Lei n.º 13.467/2017, em novembro do ano passado, corrigiu um problema de ordem semântica que corrompia a natureza da contribuição sindical. Até então, não era um ato de vontade que marcava o recolhimento anual aos sindicatos do valor equivalente a um dia de salário dos trabalhadores, filiados ou não. A rigor, tratava-se de mais um imposto.

Isso mudou e a palavra voltou a valer por seu sentido original. “O desconto da contribuição sindical está condicionado à autorização prévia e expressa dos que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal, em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profissão”, diz o artigo 579 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), já com a nova redação dada pela Lei n.º 13.467/2017. O que era obrigatório passou a ser facultativo.

A nova lei, denominada de reforma trabalhista, fez nada menos do que respeitar o que está disposto na Constituição. Lê-se no artigo 8.º da Lei Maior que “é livre a associação profissional ou sindical”. No inciso V do mesmo dispositivo está claro que “ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato”.

Vários sindicatos em todo o País, no entanto, vêm tentando obter liminares na Justiça para que as empresas continuem recolhendo a contribuição sindical dos trabalhadores, garantindo-lhes, assim, a sobrevida de uma de suas principais fontes de receita. Livres da antiga cobrança obrigatória, muitos trabalhadores destinam o valor recebido por um dia de trabalho a outros fins mais proveitosos. Mal acostumados a viver em um mundo de fantasia onde muito dinheiro aparecia sem demandar grandes esforços, os sindicatos viram despencar suas receitas após a vigência da reforma trabalhista. Mas ao invés de se ajustarem à nova realidade, buscam guarida no Poder Judiciário.

Segundo um levantamento feito por advogados de associações de trabalhadores, ao qual o Estado teve acesso, já são 123 decisões judiciais favoráveis à cobrança obrigatória da contribuição sindical, sendo 34 em segunda instância. Que os sindicatos fossem às barras da Justiça pleitear a manutenção do pagamento do imposto já era esperado. Surpreendente é o fato de haver juízes no Brasil que afrontam um dispositivo legal redigido em português cristalino.

É importante ressaltar que os números são incompletos. O Poder Judiciário não tem um levantamento oficial sobre o tema. Sabe-se quantas liminares foram concedidas aos sindicatos nos últimos cinco meses, mas não há dados sobre as que foram derrubadas em instâncias superiores. No entanto, uma liminar que fosse concedida em favor de um sindicato já seria grave, posto que redação mais clara do que a do artigo 579 da CLT é impossível.

Os sindicatos têm se valido de um parecer da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) para ingressar na Justiça. Segundo o entendimento da associação, a contribuição sindical tem natureza de imposto e, portanto, só poderia ser modificada por uma lei complementar, e não uma lei ordinária, como foi a reforma trabalhista. A questão é que o entendimento de um clube de juízes não tem qualquer valor legal. É tão somente uma opinião. O que vale nessa questão é a Lei n.º 13.467/2017.

O ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Ives Gandra Martins Filho diz que “a lei (reforma trabalhista) consagra o princípio constitucional de que a associação ao sindicato é livre. Portanto, não pode haver contribuição obrigatória”.

A validade da cobrança da contribuição sindical deverá ser resolvida pelo STF. Há 15 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) em tramitação na Corte Suprema. Até lá, os sindicatos continuarão, por um lado, tentando driblar a lei por meio de decisões de suas assembleias “autorizando” a cobrança e, por outro, as empresas irão se valer das declarações expressas de seus funcionários contra a contribuição. No meio, o Judiciário fica como fonte de incertezas nesses tempos estranhos.

Vacas mortas na sala da economia 

- VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 22/04

Análises da recuperação lerda preferem ignorar o colapso do investimento público


Um elefante na sala é um assunto constrangedor e evidente, que se ignora por alguma conveniência. Na economia brasileira destes tempos bicudos, há umas vacas mortas no sofá. Comenta-se a lerdeza da recuperação, mas pouco se fala dos bichos mortos faz anos, à vista de todo o mundo, empesteando o PIB.

O investimento federal, despesa em obras, em capital, caiu em 2017 a 48% do que era em 2014. No conjunto dos governos estaduais, a baixa foi similar, de acordo com dados compilados pela Instituição Fiscal Independente (deflacionados aproximadamente por esta coluna, pois os números são apenas anuais).

O investimento na construção civil chegou ao fundo do poço, apenas parou de cair, no fim do ano passado, sugerem números do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Entre os setores maiores da economia, é o mais retardado, afora o crédito bancário.

Quanto ao emprego, a construção civil ainda está de certa maneira em recessão. O número de empregos formais no país, com carteira assinada, cresceu 223 mil em um ano, até março, segundo dados do Ministério do Trabalho divulgados na sexta-feira (20). Alta modesta, de 0,6%. A construção civil ainda sangra bastante, porém, perdendo 64 mil postos de trabalho no mesmo período, baixa de 3%.

O colapso não se deve apenas aos cortes feitos a machadadas na despesa de investimento do governo federal e dos estados, é claro. O setor padece do superinvestimento em imóveis nos anos de boom, imóveis que encalhavam até o ano passado.

Mas o talho na despesa de investimentos de 2014 a 2017 foi enorme, ficou perto de 1,2% do PIB, uns R$ 80 bilhões. Equivale a quase dois pacotes de saques de contas inativas do FGTS, aquele dinheirinho que parece ter evitado a estagnação da economia em 2017.

Os estados grandes que mais talharam investimentos não causam surpresa: Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco. Fluminenses e pernambucanos estão entre os brasileiros que mais sofrem com a crise do emprego formal. Não foi apenas a construção que quebrou no Rio, decerto. O estado foi saqueado e destruído por uma das grandes gangues do MDB e sofreu com a ruína do setor de petróleo no Brasil.

Alguém que tenta ignorar esses elefantes e vacas mortas na sala poderá dizer que a baixa do investimento público era dada e inevitável, pois os governos vivem penúria extrema, quando não estão falidos. Gastos privados com novas instalações produtivas também seriam implausíveis, dadas a ociosidade nas empresas e a incerteza sobre o que será o Brasil de 2019.

Além do mais, haveria outros motivos, ainda obscuros, para a lerdeza. A massa de rendimentos do trabalho tem crescido mais do que as vendas do varejo e muito mais que a demanda de serviços, na verdade em queda. Mesmo quem tem emprego e renda estaria, portanto, pouco propenso a gastar.

Qual o motivo? Um chute mais ou menos informado atribui parte da retranca do consumidor a receios políticos. Outra especulação, tão ou mais razoável, explica a reticência nas compras aos fatos de que ainda há medo de perder o emprego e de que os trabalhos que surgem desde o ano passado são majoritariamente precários. Sem carteira, sem outro vínculo formal e estável: bicos, "por conta própria".

Pois bem, esta aí uma das vacas mortas na sala da economia: a recuperação lerda do emprego formal, que não reage também porque um setor grande como a construção civil ainda está no buraco.

A velha ordem abalada 

- CELSO MING

   O ESTADÃO - 22/04

A globalização reduz a capacidade de controle das nações

Tudo se passa como se a ordem global constituída por Estados nacionais autônomos não esteja mais dando conta das funções a que se propôs executar desde o século 17. Não estão claras nem as consequências dessa quebra de paradigma nem o que vem por aí para ocupar seu lugar.

No último dia 15 (no site, o texto foi publicado no sábado, 14), esta Coluna tratou de situação, digamos, aflitiva dos chefes de Estado do G-20, o grupo das 20 maiores potências globais, que já não conseguem controlar a arrecadação de impostos sobre o comércio de serviços, e até mesmo sobre o comércio de produtos. São transações que se transformaram em cada vez mais caudalosos fluxos digitais que ignoram fronteiras e que, assim, fogem à tributação convencional. Este é apenas um dos sintomas que refletem a perda de controle dos Estados nacionais sobre as novidades – e aí não são apenas as novas tecnologias – que vêm-se impondo globalmente.

O diário londrino The Guardian publicou, no último dia 5, amplo estudo do escritor britânico de origem indiana Rana Dasgupta, intitulado A extinção do Estado Nação (The demise of the nation state), dedicado ao mesmo tema, ou seja, dedicado à obsolescência do atual sistema político internacional.

A geometria geopolítica que emergiu da Idade Média era difusa, mas dominada por ampla teia de dinastias hereditárias ou por chefes militares que conquistavam territórios e os controlavam. Nessa ordem política, povos ou nações podiam ser governados ora por um rei, ora por príncipe, ora por um capitão militar, cujas sedes de governo podiam situar-se em terras que não tinham fronteiras entre si. Até hoje, por exemplo, a letra do hino nacional da Holanda lembra esse tipo de arranjo. É a proclamação do Príncipe de Orange (Guilherme de Nassau) que se orgulha de seu sangue germânico e que, na condição de chefe dos Países Baixos, promete honrar sempre o rei da Espanha.

A nova ordem, que consagrou a divisão do Ocidente em Estados nacionais geograficamente determinados, depois estendida ao resto do mundo, surgiu em 1648, dos escombros da Guerra dos Trinta Anos, por meio do Tratado de Westfalia. As pessoas e as comunidades locais já não são mais súditas do príncipe da hora, mas cidadãos de países nacionais delimitados por fronteiras, que têm constituição, bandeira, instituições e governo próprio.

A globalização, o cada vez mais incontrolável fluxo de capitais, a tecnologia digital, o rápido crescimento das criptomoedas que escapam ao controle dos bancos centrais, a disseminação dos chamados big data controlados por grandes empresas de informática, o aparecimento de 65 milhões de refugiados vitimados por violências não provocadas propriamente por guerras entre Estados, os novos impactos destrutivos sobre o meio ambiente, a incapacidade dos Tesouros nacionais de seguir garantindo o pagamento dos benefícios do bem-estar social, a impressionante capacidade do narcotráfico de criar poderes paralelos em muitos países – tudo isso é sintoma e, ao mesmo tempo, causa da desagregação da ordem global prevalecente até aqui.

É compreensível que as reações a esse desmanche sejam as mais disparatadas. O presidente Donald Trump, por exemplo, ameaça deixar a política de supervisão da ordem do Ocidente e proclama o princípio do “put America first”, sabe-se lá com que alcance. O Brexit, a proliferação de partidos populistas em todo o mundo, os movimentos separatistas da Europa, o acirramento dos conflitos tribais na África, a tentativa de criação do califado pelo Estado Islâmico, o aumento do ressentimento das classes médias – todas essas novidades parecem ensaios destinados a procurar escapes às pressões e à sensação de perda de patrimônio e renda que a desarticulação do antigo arranjo vem provocando. E, mais do que isso, parecem à procura de uma nova ordem cuja escala seja capaz de controlar as forças que ganham autonomia a partir do megadesmonte.

Ninguém imagine que os Estados nacionais estejam nas últimas. Como as pessoas, as instituições também gozam de prolongadas expectativas adicionais de vida. E, no momento, não há o menor indício do que possa ser apresentado como opção ao que está aí.

O que parece tendência inexorável é que o modelo em formação aponta para mais globalização, e não para menos. A necessidade imperiosa de unificar a tributação entre os países e os blocos econômicos é sinal disso. E mais globalização implica ainda maior integração financeira, fiscal e política.

Em todo o caso, tudo ainda está à espera de diagnósticos e de prognósticos. Um olhar mais atento sobre essas coisas pode ser o primeiro passo para entender a natureza e o impacto do admirável mundo novo em formação.

Qual é mesmo a divergência? 


- SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 22/04

Moto-perpétuo é a crença de que o gasto público se autofinancia

Eu e Marcos Lisboa temos travado interessante debate com Nelson Barbosa sobre a economia do moto-perpétuo.

Moto-perpétuo é a crença de alguns economistas heterodoxos brasileiros de que o gasto público se autofinancia: o crescimento promovido pelo impulso fiscal mais do que compensa o efeito do gasto sobre o endividamento. No frigir dos ovos, a dívida como proporção da economia se reduz.

Exemplo de crença no moto-perpétuo encontra-se no texto "O papel do BNDES na alocação de recursos: avaliação do custo fiscal do empréstimo de R$ 100 bilhões concedido pela União em 2009", de Thiago Rabelo Pereira e Adriano Nascimento Simões, publicado na revista do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) em junho de 2010.

Os autores sustentam que o impacto dos empréstimos do BNDES sobre o crescimento e a receita de impostos mais do que compensa o custo fiscal das ações do banco. Temos a versão BNDES do moto-perpétuo.

Em sua última resposta na Folha, de 17 de abril, terça-feira passada, Nelson Barbosa alega que nós o acusamos injustamente de defender a economia do moto-perpétuo. Não fomos nós que o acusamos.

Como apontamos no artigo que iniciou nossa conversa, na seção Tendências/Debates de 26 de março, Nelson, em coautoria com José António Pereira de Souza no texto "A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda", apontou que " (...) o eventual financiamento do investimento público por meio da emissão de dívida não seria necessariamente incompatível com a meta global de redução da relação dívida/PIB do setor público brasileiro, visto que tal investimento resultaria na elevação da própria taxa de crescimento do PIB".

A resposta de Nelson Barbosa nesta Folha em 17 de abril não tratou da economia do moto-perpétuo. Barbosa cita trabalhos que calculam que o impulso fiscal sobre o crescimento econômico é positivo, por vezes superior a 1 e, sob algumas circunstâncias, superior a 2. Qualquer estudante de introdução à economia conhece esse fato.

Nossa discussão não se refere ao impacto do impulso fiscal sobre o crescimento. Refere-se ao fato de o impulso fiscal ter impacto muito forte sobre o crescimento da economia e sobre a receita de impostos.

O impacto inicial da elevação do gasto público sobre a dívida seria mais do que compensado pelo crescimento da receita de impostos e da economia, de sorte que a dívida pública, como proporção da economia, reduzir-se-ia no fim do processo. Por isso a denominação de economia do moto-perpétuo. Nenhum dos trabalhos mencionados por Barbosa trata desse tema.

Em tempo: na primeira coluna dessa troca de ideias com Barbosa, citamos artigo de DeLong e Summers publicado no Brookings Paper on Economic Activity em 2012, que descreve uma condição para que ocorra o moto-perpétuo. Mesmo considerado um multiplicador fiscal na casa de 2,5, a economia brasileira nunca atendeu a essa condição.

Resta a Barbosa apresentar algum trabalho acadêmico que mostre que a condição do artigo de DeLong e Summers foi atendida no Brasil entre 2006 e 2010.

Passou despercebido o artigo "Notícias de Maracaibo", de Paula Ramón, publicado na piauí de março. O nível de decomposição do poder público venezuelano assusta.

A Venezuela não caminha em direção à ditadura cubana ou norte-coreana. Caminha em direção à desintegração e total desorganização do poder público; caminha na direção da Somália.

domingo, 22 de abril de 2018

O outubro de nossas preocupações

- BOLÍVAR LAMOUNIER

      ESTADÃO - 22/04

Dependendo das eleições, a situação do País pode melhorar um pouco ou piorar muito

O script é difícil e o elenco deixa a desejar. Essa a proposição dominante a respeito da eleição presidencial e de seus efeitos na recuperação econômica do País. Dela podemos derivar uma conclusão provisória: em 2019 o quadro pode melhorar um pouco ou piorar muito.

Sobre o script não precisamos alongar-nos muito. O governo Temer conseguiu evitar o desastre iminente que se delineou durante o segundo mandato de Dilma Rousseff e chegou a aprovar alguns projetos importantes no Congresso Nacional. Mas ao entrarmos no ano eleitoral as coisas tornaram-se mais difíceis, o tsunami da corrupção pôs toda a classe política em xeque e as relações do Executivo com o Legislativo tornaram-se escorregadias, para dizer o mínimo. Não passamos nem a reforma da Previdência, com o que a questão fiscal continuará a pairar sobre o País como uma espada de Dâmocles, premonição de um possível retrocesso.

Mas a variável-chave, como comecei a dizer, é o elenco. Temos aí uma dúzia e meia de candidatos ou quase candidatos, todos por enquanto muito débeis, nenhum que arrebate os corações e as mentes. O aspecto mais curioso – para não dizer patético – é a óptica pela qual os analistas e observadores tentam decifrar esse caleidoscópio. A maioria se contorce para tentar encaixá-los na dicotomia esquerda x direita. Poucos se dão conta de que esse esquema já deu o que tinha para dar. Os augures (adivinhos) da Antiguidade provavelmente chegariam mais perto da realidade, pois se contentavam em examinar o voo de certas aves ou as entranhas de certos animais, e aí diziam qualquer coisa, o que lhes viesse à mente. Os príncipes ficavam contentes e iam ou não à guerra conforme a “previsão” que lhes era passada.

Os termos esquerda e direita, como se recorda, provêm da Revolução Francesa; surgiram como indicativos das posições ocupadas na Assembleia Nacional pelos jacobinos e girondinos. Assumiram, desde então, pelo mundo inteiro, inúmeros significados, adaptando-se aos interesses políticos das forças em confronto em cada país. Tentar entendê-los por meio de uma análise rigorosa de seus conteúdos é perda de tempo, pois eles variam no tempo e de país para país. Funcionam como totens tribais. Esquerda é o totem dos que se arrogam uma maior sensibilidade social, um conhecimento mais preciso dos meios necessários para aliviar o sofrimento dos pobres e o caminho que leva ao paraíso terrestre – a “sociedade sem classes”. Direita são aqueles que, arrogando-se também os dois primeiros pontos, descartam o terceiro como uma fantasia (ou uma falcatrua intelectual) e conferem importância decisiva à estabilidade social, à segurança, à lei e à ordem. Desde o advento das pesquisas de opinião por amostragem, após a 2.ª Guerra Mundial, inúmeros levantamentos foram feitos sobre essa questão. Em dezenas de países, instados a informar o que entendiam pelos termos esquerda e direita, a maioria dos eleitores nem sequer conseguia oferecer definições genéricas como as que enunciei acima. Tanto nos países mais escolarizados do norte da Europa quanto naqueles, como o Brasil, onde a maioria é quase analfabeta, o porcentual que conseguia tal proeza sempre ficou entre 15% e 20%.

Não creio que algum pesquisador sério conteste essa afirmação. Portanto, na eleição de outubro, é fácil adivinhar que pelo menos uma dúzia dos candidatos tratará simplesmente de encontrar um “nicho” discursivo desocupado onde se possam abrigar: à direita, à esquerda, acima ou abaixo, como disse certa vez o prefeito Kassab ao lançar um novo partido, o PSD.

Considerando, pois, a anemia analítica da dicotomia esquerda x direita, haverá a esta altura algo útil que possamos dizer sobre a eleição e seus efeitos econômicos putativos? Creio que sim. Ao menos por ora, penso que o problema não é o perfil – de esquerda, centro ou direita – dos candidatos mais cotados, mas a dinâmica que vai predominar na campanha: polarização entre um “esquerdista” e um “direitista” exaltados ou uma tendência “centrista”, com a maioria do eleitorado convergindo para um ou mais candidatos de perfil moderado.

A contragosto, dado o raciocínio que venho de expor, tento identificar alguns nomes. O mais fácil é o totem esquerdista, ou seja, o candidato ungido por Lula, admitindo-se que este conseguirá transferir para ele uma grande quantidade de votos. Fala-se em Fernando Haddad, mas aqui surge uma indagação. Haddad não tem perfil incendiário. Nesse cenário, teremos, então, os Stédiles e os Rainhas da vida, que já falam abertamente em “guerra civil”, e talvez o próprio Lula, pressionando um candidato de índole centrista a assumir um papel radical. No polo oposto, com os dados hoje disponíveis, temos Bolsonaro – e outra indagação. Oriundo das Forças Armadas, Bolsonaro presumivelmente atrairá sobretudo eleitores aflitos com a segurança e quiçá adeptos de um modelo econômico nacional-estatizante; mas Paulo Guedes, o economista incumbido de elaborar seu programa de governo, abomina tal modelo.

Dada a manifesta inconsistência dos extremos, é plausível especular que o “centro”, por ora anêmico, venha a se fortalecer. Nesse nicho, o nome óbvio é Geraldo Alckmin, que tem a seu favor uma longa experiência de governo no Estado de São Paulo e um temperamento afável. O problema, além dos modestos índices que ostenta nas pesquisas, é que a recuperação econômica dificilmente atingirá um ritmo suficiente para reverter a sede de sangue que se disseminou em grande parcela da sociedade.

A título de conclusão, devemos, pois, voltar à segunda das duas proposições que enunciei no início. Dependendo da dinâmica eleitoral e do presidente eleito, a situação do País poderá melhorar um pouco, ou piorar muito. Chato é pensar que esse “piorar muito” poderá ser quase uma recaída na era das cavernas.

Dependendo das eleições, a situação do País pode melhorar um pouco ou piorar muito.

* SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS, É AUTOR DO LIVRO ‘LIBERAIS E ANTILIBERAIS – A LUTA IDEOLÓGICA DE NOSSO TEMPO’ (COMPANHIA DAS LETRAS)

A ditadura na academia e o golpe de 2018 


- CARLOS MAURÍCIO ARDISSONE

  O ESTADÃO - 22/04

O aliciamento ideológico é feito diariamente em grande parte das escolas e universidades do Brasil

É bastante duro, para não dizer impossível, ser ao mesmo tempo liberal e professor de Ciências Sociais no Brasil. Vida inglória a do professor que leciona num curso de humanidades e ousa proclamar-se publicamente “de direita”. O professor de Ciência Sociais que ousa questionar a cartilha marxista-gramsciana predominante e se recusa a se comportar como um intelectual orgânico em sala de aula enfrenta duras penas: é tachado de reacionário por muitos colegas, torna-se alvo de risadinhas e fofocas na sala de professores e frequentemente é punido com a perda de disciplinas e prejudicado em bancas de seleção para muitas universidades públicas por não integrar nenhuma das panelinhas ideológico-partidário-sindicais que dominam os corpos docentes nessas instituições.

Digo isso por experiência própria. Em 2004, durante um evento universitário alusivo aos 40 anos do golpe de 64, arrisquei-me a questionar os propósitos democráticos e libertários dos grupos que apoiavam João Goulart e dos que, após a tomada do poder pelo militares, organizaram a insurgência armada. Tinha ao meu lado opiniões de alguns historiadores e cientistas sociais e entrevistas de ex-integrantes das fileiras da resistência. Esclareci então que não propunha esse olhar para justificar nada a respeito da ditadura militar. Mas de nada adiantou. Fui alvo da reação agressiva e verborrágica de um dos integrantes da mesa (um professor mais experiente) que comparou o cenário do pós-64 com o de uma “guerra” para buscar uma justificativa moral para atos guerrilheiros de grupos armados, mesmo os que, sabidamente, atingiram civis inocentes, que nada tinham que ver com a repressão. Na plateia, outros professores apoiaram a reação do colega e vieram me censurar ao final do colóquio e revelar desapontamento comigo. Corria o ano de 2004, era professor universitário havia pouco mais de três anos e desde então me retraí para evitar ser repelido.

Esse singelo episódio é uma boa ilustração do ambiente repressivo que, diariamente, constrange inúmeros professores liberais, aos quais é imposta uma lei de silêncio quase marcial, por causa do temor de possíveis retaliações. São professores que dependem exclusivamente do magistério para sobreviver e, por essa razão, não podem expor abertamente o que pensam em redes sociais, em congressos, em seminários, em entrevistas de emprego ou em processos seletivos, especialmente para instituições públicas.

Não me referi à sala de aula porque esta merece uma atenção especial. Para os professores marxistas-gramscianos, a sala de aula é um espaço de desenvolvimento do pensamento crítico. Até aí, nada demais. Quem poderia discordar disso? O problema começa quando passam a pregar para os alunos que a única forma de aprender a ser crítico é a partir do receituário conceitual e ideológico em que acreditam. Daí para a doutrinação é um pulo, uma mera formalidade. Por mais maduros e esclarecidos que os jovens de hoje sejam, quem consegue resistir criticamente ao sonho de mudar o mundo e de corrigir todas as injustiças existentes, a começar pelas diferenças de classe? Quem resiste a culpar algo (o capital) ou alguém (o imperialismo americano, a burguesia, etc.) pelas mazelas universais? Funciona à perfeição o “canto da sereia”. E professores doutrinadores sabem como tirar proveito.

Para muitos dos professores marxistas-gramscianos, a impossibilidade de neutralidade axiológica representa, parafraseando o slogan de James Bond, uma “licença para doutrinar”. Funciona como uma espécie de álibi ou salvo-conduto para exercer sua militância travestida de atividade pedagógica, sem nenhum peso na consciência. Como estão convictos de que conhecem intimamente a fórmula para a redenção da humanidade e de que detêm o monopólio da virtude, naturalizam o processo de aliciamento ideológico que diariamente é realizado em grande parte das escolas e universidades do Brasil. Convocam alunos para passeatas e panfletagens de partidos, candidatos e sindicatos, sem a menor cerimônia. Pressionam-nos a se envolver e a apoiar agendas de movimentos sociais de esquerda, dentro e fora da sala de aula. Tudo sem jamais oferecer contrapronto digno de nota e confiança, nos conteúdos que supostamente cumprem como profissionais de magistério.

Diante de ambiente tão inóspito, não surpreende que em 2018 muitos cursos sobre o “golpe de 2016” estejam sendo oferecidos em universidades brasileiras. O panfletarismo ganha aparência de ciência normal nas mãos de professores-militantes. Regras das mais básicas da metodologia científica como a de não tratar hipótese como tese são simplesmente ignoradas.

Numa rede social, cometi a ousadia de transmitir a um professor que divulgava um desses cursos minhas restrições a tratar como inconteste que o impeachment de 2016 foi um golpe. Expus que o mínimo a esperar, como ponto de partida, seria garantir espaço para o contraditório a partir de uma pergunta inicial que poderia coincidir com o título do curso – por exemplo, “O impeachment de 2016: normalidade institucional ou golpe?”. Tal atitude permitiria que adeptos das duas versões pudessem dialogar e confrontar suas posições, chegando às suas próprias conclusões, sem maiores direcionamentos. Ainda mencionei as opiniões de um amplo leque de juristas, historiadores, escritores, jornalistas e intelectuais em geral, do Brasil e do exterior, para os quais o impeachment foi um ato perfeitamente legal e constitucional.

Recebi respostas muito “delicadas e receptivas” que prefiro não descrever aqui. Mas, se não foram das mais elegantes, revelaram-me claramente o que acontece quando narrativas com interesses específicos são elevadas ao patamar de História e ganham status acadêmico. O golpe é aqui e agora.

* DOUTOR E MESTRES EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELA PUC-RJ