terça-feira, 29 de maio de 2018

Ser amado por ela perdidamente

 Luiz Felipe Pondé*
 Ilustração para a coluna de Luiz Felipe Pondé
 Ilustração para a coluna de Luiz Felipe Pondé - Ricardo Cammarota
 
O cuidado de uma mulher é mais erótico 
do que uma lingerie

Talvez uma das experiências mais avassaladoras na vida seja a de ser amado perdidamente por alguém. O amor romântico é uma das coisas que mais me encantam na vida, principalmente na nossa época, em que a recusa do amadurecimento lança o amor romântico no quarto escuro do mito.

O cinema sempre lidou com esse tema como um sucesso seguro, apesar de o tratamento quase sempre ter sido infantil. O amor romântico é uma das experiências mais avassaladoras que alguém pode viver, e não necessariamente te faz bem.

Sabemos que a definição medieval comum era “maladie de la pensée” (doença do pensamento). Uma forma de obsessão descrita como sempre infeliz, apesar de bela. A pessoa sábia fugiria do pathos amoroso como o Diabo foge da cruz. O conselho vale ainda hoje: olhe pra baixo, fuja, evite, o pathos amoroso é devastador.

O mais comum é pensá-lo na chave “eu a amo perdidamente e o que isso me causa”: penso nela o tempo todo, fico triste quando ela não responde minhas mensagens ou fico nas alturas quando percebo que ela também me ama.

Mas como fica quando “ela me ama perdidamente e o que isso me causa”? O mais fácil, no caso do cinema, é cairmos nas tramas obsessivas de homens e mulheres “stalkers” querendo matar seus objetos de amor negados. O filme de Paul Thomas Anderson “Trama Fantasma”, com Daniel Day-Lewis e Vicky Krieps, foge dessa armadilha. Tampouco se trata de uma ode sofisticada ao sadomasoquismo à la ”50 Tons”, como pensaram algumas almas pobres de espírito.

Não. Ser amado perdidamente por ela pode ser uma das experiências mais restauradoras da vida. O risco de sofrimento é inevitável, como toda vez que a vida se mostra nua diante de alguém.
 
Posso me descobrir capaz de coisas que nunca soube ser graças ao olhar e ao cuidado que ela me revela a cada dia. 

O cuidado de uma mulher é mais erótico do que uma lingerie. E, numa idade já madura, quando tendemos a saber com alguma certeza o que somos, o que gostamos e o que detestamos, o “desencaixe” que a beleza causa quando se manifesta nesse cotidiano instituído pode ter um efeito mesmo devastador. Mas, no caso, a tempestade é de beleza, e não de horror.

O grande Dostoiévski (1821-1881) acreditava que a “beleza salvará o mundo”. Mesmo assim, devemos manter junto ao nosso coração a possibilidade de que a beleza também pode causar medo. Principalmente quando não estamos acostumados a tê-la ao nosso lado.

As cenas em que a personagem Alma, representada por Vicky Krieps, olha profundamente apaixonada para Reynolds (estilista inglês famoso e milionário nos anos 50 representado por Daniel Day-Lewis) materializam justamente essa invasão da beleza na vida de alguém. 

Reynolds é um homem de enorme sucesso profissional, beirando os 60 anos de idade. Nesse caso, a instituição da vida “no seu devido lugar” tende a ser maior ainda. A rotina do sucesso tem uma gravidade arrasadora sobre os afetos. Alma é uma mulher por volta de 30 anos, corajosa e apaixonada. Duas qualidades que, quando se encontram numa mulher, fazem dela um vulcão.

Ser amado perdidamente por uma mulher é um ato concreto na vida. Tem a consistência de uma pedra. Não é uma abstração. Alma invade a vida de Reynolds, às vezes de modo delicado, às vezes de modo tímido, às vezes de modo (mortalmente) violento e perigoso (esse é o dado que confundiu as almas pobres de espírito que compararam o filme a tramas sadomasoquistas).

Alma, ainda que sofrendo muitas vezes por conta da reatividade de Reynolds à sua presença decidida a cuidar dele, enxerga aquilo que só a dedicação de um amor maduro vê. 

Ela vê o que está por trás da escravidão do sucesso, da competência, da irritação com a mediocridade e a banalidade das pessoas à sua volta, da obsessão pelo silêncio, enfim, da solidão que é sua única e verdadeira companheira até ela aparecer em sua vida.

São muito poucos os arroubos românticos no filme. Sua síntese plena está na fala inicial de Alma, quando ela conversa com o médico que aparecerá ao longo da história: segundo ela, Reynolds deu a chance de ela chegar a ser o que sempre quis e fazer da vida como sempre quis e, em troca, ela deu a ele cada pedaço de si mesma, do corpo e da alma. 

Reconhece-se o amor aqui como a beleza que transfigura o cotidiano. O que muitos duvidam ser possível.

Alma não é uma louca. O amor verdadeiro de uma mulher é que se tornou incompreensível para nós. E a natureza feminina, quase opaca.
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* Pernambucano, é escritor, filósofo e ensaísta. Doutor em filosofia pela USP, é professor da PUC e da Faap. 

A fonte da juventude

A consciência da finitude nos amedronta mas, paradoxalmente, é ela que 
nos faz querer viver, aproveitando o máximo possível cada momento. Fotos: Divulgação.

Eram 21h30min quando, ao término da conferência proferida em São Paulo, Mario Vargas Llosa foi perguntado sobre seus próximos projetos. Com a elegância e o humor de sempre, respondeu: "Se eu começar agora a falar sobre meus próximos projetos, não sairemos daqui antes que o dia amanheça." Era 2016, e Vargas Llosa tinha 80 anos.

Tomie Ohtake, durante uma entrevista à revista 'A Terceira Idade', em 2004, ouviu a seguinte pergunta: "O fato de ter iniciado sua carreira aos 39 anos de idade seria responsável por sua longevidade como pessoa e como artista?" E Tomie: "Acho que trabalhar e ter novas metas são o segredo. Trabalhar sistematicamente é muito bom. Eu nem penso nessas coisas de idade, pra mim isso não é importante. Eu sempre estou mudando. Não penso 'quero mudar!', mas estou sempre mudando." Naquele momento, ela estava prestes a completar 91 anos, e seguiria trabalhando ainda por mais 10, até sua morte.

Em junho de 2011, pouco antes de celebrar seus 80 anos, Fernando Henrique Cardoso concedeu uma longa entrevista ao portal iG, durante a qual um dos jornalistas perguntou: "E em sua vida pessoal, hoje, aos 80 anos, como o sr. está se sentindo?" "Bem. Me sinto muito bem. Claro, tem coisas que você perde... perdi Ruth, perdi irmão, mãe, pai, amigos... nesse sentido é pior. Mas no sentido de você mesmo, o seu sentido de liberdade, de que você sabe o que pode e o que não pode, seus limites, nesse sentido a maturidade ajuda. Claro que eu preferiria ser jovem – mas jovem com experiência de hoje, o que não é possível. Então, você tem que viver o momento. Eu não vivo saudade, choro, passado, nem me preocupo muito com isso. (...) Eu faço o que eu gosto. (...) Eu gosto de viver intensamente os momentos. O que me move são valores, ideias, pessoas... eu estou de bem com a vida. Levanto de bom humor, trabalho incessantemente – incessantemente. E com prazer. Eu faço as coisas com prazer."
Parte do poema épico 'Epopeia de Gilgamesh' recém-descoberta no Iraque. Foto: Osama Shukir Muhammed Amin FRCP :: Fonte: Daily Mail.Parte do poema épico 'Epopeia de Gilgamesh' recém-descoberta no Iraque. Foto: Osama Shukir Muhammed Amin FRCP :: Fonte: Daily Mail.
A ideia de uma juventude eterna permeia desde sempre o imaginário humano. Da epopeia de 'Gilgamesh', a obra literária mais antiga já produzida (3º milênio A.C.), ao 'Drácula' de Bram Stoker, são inúmeras as sagas de personagens em busca da fonte da juventude – traduções metafóricas de um anseio universal. Hoje em dia, pesquisas científicas que buscam ampliar tempo e qualidade de vida, assim como novas fórmulas "milagrosas", que surgem diariamente com promessas de rejuvenescimento (dieta, cremes ou procedimentos estéticos), demonstram claramente que essa busca continua.
Gary Oldman e Winona Ryder em cena de Drácula (1992) de Francis Ford Coppola. Imagem: Columbia Pictures.Gary Oldman e Winona Ryder em cena de Drácula (1992) de Francis Ford Coppola. Imagem: Columbia Pictures.
Mas por que almejamos essa eterna juventude? O que, da juventude, sentimos perder-se ao longo da vida e que desejamos tão insistentemente recuperar? Do que não queremos abrir mão?

Em um primeiro momento, podemos pensar na forma física – a pele lisa e viçosa, os cabelos brilhantes, o corpo tonificado e cheio de energia. Mas seria apenas isso? A aparência jovem seria um fim em si? 

Uma reflexão mais profunda pode nos trazer respostas mais consistentes. Sem dúvida todos perseguimos uma aparência bela e saudável, mas não exatamente porque almejamos ser modelos estéticos.  Por meio de nossa aparência, na verdade, buscamos afirmar que ainda estamos no jogo da vida. É da vida que não queremos abrir mão, e de tudo de bom que ela nos oferece: descobertas, aprendizados, diversões, amores, prazeres. 
Hieronymus Bosch, "O jardim das delícias terrenas", 1490-1510  ©Museu Nacional del Prado.Hieronymus Bosch, "O jardim das delícias terrenas", 1490-1510  ©Museu Nacional del Prado.
Por séculos fomos forçados a acreditar que o desfrute da vida seria privilégio da juventude – e talvez até tenha sido mesmo, na época em que a medicina era incipiente, a igreja opressora e a expectativa de vida não passava de 30 anos. Felizmente vivemos hoje uma nova realidade. A expectativa média de vida no Brasil já está por volta dos 78 anos (na França, 81, no Japão, 84), e com o avanço da medicina deve seguir aumentando. Para além da questão da longevidade, estamos agora refletindo sobre nossa trajetória nesse envelhecimento.

Ser jovem é ter tesão pela vida. E nesse sentido, a fonte da juventude está dentro de nós mesmos. A consciência da finitude nos amedronta mas, paradoxalmente, é ela que nos faz querer viver, aproveitando o máximo possível cada momento. E viver plenamente, movido por projetos, ideias, valores, pessoas. É disso que falam Vargas Llosa, Tomie e Fernando Henrique. E também Manoel de Oliveira, Saramago e Cora Coralina que, a um repórter que lhe perguntou "o que é viver bem?", assim respondeu:

 “Eu não tenho medo dos anos e não penso em velhice. E digo prá você, não pense.

Nunca diga estou envelhecendo, estou ficando velha. Eu não digo. Eu não digo estou velha, e não digo que estou ouvindo pouco. É claro que quando preciso de ajuda, eu digo que preciso.

Procuro sempre ler e estar atualizada com os fatos e isso me ajuda a vencer as dificuldades da vida. O melhor roteiro é ler e praticar o que lê.

O bom é produzir sempre e não dormir de dia.

Também não diga prá você que está ficando esquecida, porque assim você fica mais.

Nunca digo que estou doente, digo sempre: estou ótima. Eu não digo nunca que estou cansada. Nada de palavra negativa. Quanto mais você diz estar ficando cansada e esquecida, mais esquecida fica. 

Você vai se convencendo daquilo e convence os outros. Então silêncio!

Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado, e que trago comigo todas as idades, mas não sei se sou velha não. Você acha que eu sou?

Posso dizer que eu sou a terra e nada mais quero ser. Filha dessa abençoada terra de Goiás.

Convoco os velhos como eu, ou mais velhos que eu, para exercerem seus direitos. Sei que alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo.

Tenho consciência de ser autêntica e procuro superar todos os dias minha própria personalidade, despedaçando dentro de mim tudo que é velho e morto, pois lutar é a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes. O importante é semear, produzir milhões de sorrisos de solidariedade e amizade.

Procuro semear otimismo e plantar sementes de paz e justiça. Digo o que penso, com esperança. Penso no que faço, com fé. Faço o que devo fazer, com amor. Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende.

Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir.”

***
Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas, produtora de conteúdo e redatora colaboradora do MaturityNow.

Fonte:  http://www.saopaulosao.com.br/conteudos/colunista

domingo, 27 de maio de 2018

OS MISERÁVEIS

José de Souza Martins*
 Carvall

 "Discutir segurança, educação, identificação com o destino comum, respeito aos direitos humanos e até mesmo o reconhecimento da humanidade de todos, sem levar em conta a exclusão social de tão extensa parcela de brasileiros, é ingênua concepção dos problemas sociais e dos riscos políticos 
a que o Brasil está sujeito."

Quem são os miseráveis das estatísticas oficiais que nos dizem o que é o Brasil que não gostaríamos que o Brasil fosse? Como é possível que a herança de um regime político que proclamou ter acabado com a pobreza no país seja justamente a de mais de 13 milhões de miseráveis, com aumento de 1,5 milhão em pouco tempo? A de 12,3 milhões desempregados? A de uma política social cuja grande marca é a de um auxílio à sobrevivência a mais de um terço da população de 11 Estados do Norte e Nordeste por meio do Bolsa Família e 21%, um quinto, da população brasileira dele dependente? Sem contar mais de 5 milhões de brasileiros à procura de emprego há mais de um ano? A daqueles com maior incidência de desalentados, os que desistem de procurar emprego, nas regiões Nordeste, Sudeste, Norte? A de um país com mais de 27 milhões de trabalhadores subutilizados?

Esses dados aparentemente desencontrados convergem na indicação de que se trata não só de problemas não resolvidos, mas também de problemas de solução pela metade e em boa parte sem perspectiva de solução. Esses números não nos falam apenas da herança numérica líquida de um desastre social e político, de que não tomamos consciência no devido tempo porque acobertada por induções mágicas de leitura de tabelas.

Neles está aquela parte de solução lenta e não integrativa, a dos milhões que há mais de ano procuram trabalho. Ou aqueles subutilizados que refletem a substituição de trabalho humano por tecnologia. Um cenário de descarte de seres humanos e de falta de criatividade política para estabelecer um nível de emprego capaz de assegurar à sociedade inteira a segurança de que cada brasileiro está social e economicamente integrado. A não integração não é normal nem é decente.

O que resta desse cenário é que pelo menos um quinto dos brasileiros vive hoje à margem do sistema econômico e que estar à procura de emprego já não é temporário, é uma ameaça a muitos e um traço da identidade de milhões de brasileiros. São os situados no limiar da integração estável, os sem motivos para subscrever o pacto social e político que garanta a ordem no país.

Discutir segurança, educação, identificação com o destino comum, respeito aos direitos humanos e até mesmo o reconhecimento da humanidade de todos, sem levar em conta a exclusão social de tão extensa parcela de brasileiros, é ingênua concepção dos problemas sociais e dos riscos políticos a que o Brasil está sujeito.

O Brasil criou um sistema capitalista peculiar em que a reprodução do capital se tornou dependente de técnicas de acumulação que vão da corrupção, à especulação, às formas rentistas de extração de excedentes econômicos dos mais frágeis e desvalidos. Favela não é produto de pobreza, é produto do enorme e descabido custo da renda fundiária urbana, nos preços especulativos dos terrenos, causa da invasão de terras desocupadas. Nas grandes cidades brasileiras é possível ganhar fortunas sem o investimento produtivo de um único centavo, apenas comprando terras por pouco para vendê-las por muito.

A superação capitalista das insuficiências econômicas e das injustiças sociais depende de um retorno ao capitalismo. O que depende de democracia, de equilibrado senso de justiça e da gestão da riqueza em nome do bem comum, e não em nome de concepções egoístas de ganho e propriedade.
O sociólogo alemão Max Weber mostrou que o capitalista verdadeiro é o empresário que atende a vocação impessoal de fazer o sistema funcionar. O próprio Karl Marx, autor da primeira teoria cientificamente fundamentada do que é a sociedade capitalista, já havia apontado que o capitalista é um funcionário do capital, e não um senhor feudal da riqueza injustamente acumulada com base em privilégios de mando e dominação. Lucro é outra coisa.

A abundância do noticiário sobre a corrupção no Brasil é um indicador poderoso de que o capitalismo entre nós sucumbiu à incompetência para prever os ganhos extraordinários da inovação, que é um bem comum, e para gerir os desdobramentos sociais desses ganhos. Sobretudo para compreender em tempo os problemas sociais decorrentes do mau funcionamento do sistema econômico.

Na maioria dos países latino-americanos, e disso o Brasil é "modelo", o sistema econômico vem se tornando o do descarte social de seres humanos, caso da Venezuela. Nessa brutal criação da humanidade mínima, direita e esquerda são reciprocamente cúmplices. O pseudocapitalismo residual latino-americano e o pseudossocialismo regional, resto de concepções dos fracassos do comunismo antimarxiano, são face e contraface das mesmas insuficiências de compreensão do processo histórico e das limitadas possibilidades da região.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras e autor de Moleque de Fábrica (Ateliê Editorial), dentre outros. Escreve neste espaço semanalmente
* Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5547733/os-miseraveis 25/05/2018

Roberto Romano. A solução somos nós



 

 

 

 

Filósofo Roberto Romano acredita que atuação da Justiça sobre corruptos tem alcance limitado e que o Brasil só progredirá se a população fiscalizar o poder

Roberto Romano, de 72 anos, dedica-se ao estudo da filosofia política e da ética há quatro décadas, experiência que lhe permitiu visão privilegiada para analisar o Brasil. Formado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em filosofia política pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, Romano não crê que os resultados trazidos pela Operação Lava-Jato provoquem mudanças no padrão ético da sociedade brasileira. “A Lava-Jato trabalha com as consequências, não com as causas dos nossos problemas”, diz. Para solucioná-los, explica Romano, será preciso empreender discussões árduas, que abranjam desde a responsabilidade do próprio cidadão em monitorar seu município até a criação de uma nova Constituição. Hoje professor titular da Universidade Estadual de Campinas, Romano falou a VEJA em sua casa, em São Paulo.

A Lava-Jato pode mudar a forma de fazer política no Brasil? Não há procurador nem juiz capazes de fazer essa transformação. Ela só seria possível com mudanças profundas na estrutura do Estado. A Lava-Jato não muda essa estrutura, que é altamente centralizada no governo federal, burocratizada e cara. Também não muda o modus operandi do sistema partidário e do sistema eleitoral. Esse não é o papel da Lava-Jato.

A estrutura estatal é a principal via para a corrupção? Em grande parte, sim. Por isso temos de redesenhar o Estado. Enquanto não federalizarmos o país, ou seja, enquanto não descentralizarmos o poder e os recursos dos impostos, não teremos mudanças positivas. O Brasil cresceu, urbanizou-se e, apesar de a maior parte da população viver nas cidades, quase 70% dos impostos vão para o cofre do Executivo federal. Os municípios são saqueados pelo poder central. Hoje, a única maneira que eles têm de conseguir o retorno da arrecadação retida pela União é por meio da intermediação política. O prefeito tem de ter bom relacionamento com o governador, que tem de ter bom relacionamento com o deputado federal, que, por sua vez, tem de estar na base aliada que está sendo comprada naquele momento pelo presidente da República. O papel dos parlamentares brasileiros atualmente se resume a praticamente intermediar o repasse de verbas entre Brasília e os municípios e estados.

Mas há o outro lado, o dos parlamentares que usam seu poder de voto para pressionar o governo federal. Sim. Por isso a disfunção é total. O Exe­cutivo libera dinheiro aos intermediários que aceitam votar com ele. E ele paga caro para exercer essa ditadura financeira: loteia cargos em estatais, postos no governo, faz mensalão, faz petrolão. Por esse motivo digo que punir o corrupto é enxugar gelo com toalha quente. Não tenho ilusões.

“O papel dos parlamentares brasileiros hoje resume-se praticamente a intermediar o repasse de dinheiro 
entre Brasília, municípios e estados”

Por que é tão importante aumentar a autonomia dos municípios? Primeiro, porque é no município que o cidadão tem, ou deveria ter, a maior parte dos serviços prestados pelo Estado. Depois, porque é preciso acabar com essa intermediação do imposto arrecadado do contribuinte. O dinheiro arrecadado no município deveria ficar no município, em vez de percorrer um enorme caminho burocrático até Brasília e, depois, fazer o caminho de volta na forma de postos de saúde, escolas, ruas asfaltadas, iluminação etc. Mas o mais importante talvez seja o aumento da cultura da cidadania que essa autonomia é capaz de gerar. Se o cidadão tem controle sobre as verbas da sua cidade, ele amplia a vigilância. Mas, se ele entende que não tem controle sobre o dinheiro, deixa de monitorar. Acontece que o Brasil nunca teve municípios de fato.

Como assim? Os municípios são uma invenção do Império Romano. As cidades que não tinham força para resistir a ele eram destruídas. Já aquelas que tinham força econômica e militar eram convidadas a se federar a Roma, e conservavam a autonomia, a religião, a moeda e os costumes. Quando os romanos foram vencidos, as cidades se mantiveram, mesmo diante dos bárbaros. Mais tarde, na construção do Estado absolutista, os reis dedicaram-se a tirar a autonomia dos municípios. O rei da França, por exemplo, confiscou essa autonomia porque eles apresentavam oposição ao desejo de arrecadação absoluta. Esse tipo de confisco estava no auge em 1500, quando o Brasil foi descoberto. Por aqui, os recursos iam todos para o rei de Portugal. Nossa cultura é de centralização desde a colônia.

O que garante que deixar mais dinheiro nos municípios resultaria em menos corrupção e melhor uso dos recursos? É claro que não adianta mudar o fluxo do dinheiro se não tivermos mecanismos de controle. O cidadão tem de ter noção de quanto paga de imposto, de quanto a cidade arrecada e gasta, de como funciona o orçamento. É assim que se cria a consciência de cidadania e o operador do Estado passa a ter a sensação de que está sendo monitorado. Na verdade, a ideia do orçamento participativo, uma das bandeiras do PT no passado e que foi abandonada quando o Lula chegou ao poder, veio da observação do que acontece em Nova York, em Paris e em outras cidades desenvolvidas. Não se trata de uma ideia de esquerda ou de direita, mas da participação do cidadão na elaboração das leis. Para fazer uma ciclovia em uma rua de Nova York, é preciso ouvir todos os habitantes de onde ela vai passar. Isso tem a ver com o princípio mais essencial da democracia moderna, que é a accountability, que significa prestar contas, responsabilizar-se. O operador do Estado precisa prestar contas, e o cidadão precisa também assumir seu papel de fiscalizador.

Essa visão de cidadania não é utópica para a realidade brasileira? As uto­pias todas, como a República, de Platão, são formadas por duas ideias: um diagnóstico dos defeitos de um Estado e de uma sociedade; e a proposta de modificação desse Estado e dessa sociedade. O que fizeram Thomas Jefferson e Benjamin Franklin nos Estados Unidos? Com base na filosofia das luzes, do século XVIII, eles montaram uma utopia, que é a federação americana. A tradução da utopia criada por eles é a Constituição americana. Você não encontra nada da vida empírica na Constituição. Você encontra normas, direções, aconselhamentos, propostas. Se pegar, por exemplo, o texto da Constituição americana, que é maravilhosa, e comparar com a vida real do americano, você encontrará um abismo. Por isso mesmo, a própria Constituição prevê uma instância de interpretação dos casos concretos, que é a Suprema Corte. No Brasil, conseguimos aprovar leis como a da ficha limpa, a lei de transparência e aquela que prevê a delação premiada. Sem elas, a própria Lava-Jato seria impensável anos atrás.

“A corrupção continuará em curso enquanto não houver autonomia de poderes, incluindo o Judiciário, 
que depende dos demais poderes 
para manter seus privilégios”

O senhor fala de aumentar a autonomia de municípios, mas há muitos que não têm receita nem para sustentar sua prefeitura e a Câmara de Vereadores. O que fazer com eles? Eles não podem existir. Por isso digo que é preciso redesenhar o mapa político do Brasil. Essas cidades foram criadas com fins eleitorais, para ter prefeito, vereadores e toda a estrutura burocrática municipal. Na melhor das hipóteses, foram criadas com base no diagnóstico errado de que seus bairros eram preteridos pela prefeitura do município do qual se emanciparam. O problema é que, uma vez emancipada, uma cidade que não arrecada nada ainda cria uma máquina com os privilégios dos operadores do Estado. No Brasil, até o município mais pobre paga o carro, o combustível, as multas e o seguro do prefeito e dos vereadores. Quando o dinheiro chega a esse lugar por meio do Fundo de Participação dos Municípios, ou por meio de uma emenda parlamentar, vai para cobrir os gastos da burocracia, em vez de ir para os munícipes. Como o cofre é o mesmo, o resultado é menos dinheiro empregado no que interessa.

A única saída para o Estado ineficiente é mudar a Constituição? Não falo nem em mudança constitucional, mas em criar uma nova Constituição. Não vamos avançar com a irracionalidade da atual configuração do Estado brasileiro. Temos uma distribuição absolutamente incontrolável de poderes, de recursos e de políticas públicas, que resultam em um gasto delirante. Um rearranjo eficaz só pode se dar com uma nova Constituinte. Hoje, na verdade, já vivemos sob uma nova Constituição, tantas foram as emendas feitas no texto de 1988. Todas, aliás, com um pé no Palácio do Planalto, sendo a emenda da reeleição a mais escancarada de todas.

O senhor diz que o alcance da Lava-Jato é limitado porque ela não muda o sistema partidário e eleitoral brasileiro. O que pode, então, ser feito quanto a isso? Os partidos brasileiros deixaram de ter programas para o país e se reduziram a agrupamentos eleitorais, maiores ou menores. Todos eles, hoje, são oligarquias com o domínio de alguns dirigentes. Os novos candidatos seguem ordens desses donos do partido, que controlam tudo na agremiação: os cofres, as eleições internas, e, delas, as campanhas eleitorais. Esses “oligarcas” mandam nas legendas há trinta anos. Enquanto não tivermos regras que proíbam a reeleição na direção das siglas, que impeçam que membros da mesma família se revezem no comando partidário, não teremos renovação de quadros. É o que vemos no atual quadro de candidatos. Nenhum deles, fora o ex-­presidente Lula, que está preso, e Jair Bolsonaro, apresenta robustez de intenções de voto. Se não temos disputas internas nos partidos, pela liderança, desaparecem as condições para firmar estadistas.

Os presidentes sempre foram reféns de arranjos partidários? Todos, inclusive os militares, foram levados, ou levaram a si mesmos, a determinados pactos políticos para se garantir no poder. O caso de Lula surpreendeu mais porque seu partido dizia defender a ética, lutar contra a corrupção. Mas, se a compra de apoio e o aproveitamento pessoal foram maiores ou não no caso dele, não muda o cerne da questão: o sistema de poder estatal brasileiro segue igual. Todos os que se sentam na cadeira presidencial continuarão comprando apoio e a corrupção continuará em curso enquanto não houver autonomia dos poderes, incluindo o Judiciário, que depende dos demais poderes para manter seus privilégios, como auxílio-moradia e ganhos acima do teto constitucional.

O que o senhor espera das eleições deste ano? As eleições não resolverão o problema. Deverá ser possível, a duras penas, eleger por margem mínima um candidato de centro. Mas tal resultado fará do eleito um refém do Congresso, das maiores bancadas, do toma lá dá cá e de todas as mazelas do nosso presidencialismo “imperial”. Ou seja, a crise do Estado brasileiro continuará, sempre mais grave. Eleições representam ou mudanças efetivas ou arranjos precários. Creio que a de 2018 será do segundo grupo.
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Reportagem  Por Roberta Paduan
Publicado em VEJA de 30 de maio de 2018, edição nº 2584
Fonte:  https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-solucao-somos-nos/ 25/05/2018

domingo, 20 de maio de 2018

Populismo de Pochmann


 - SAMUEL PESSÔA

       FOLHA DE SP - 20/05

Não adianta negar as restrições do mundo, pois a conta sempre chega

O professor do Instituto de Economia da Unicamp Marcio Pochmann, responsável pelo programa do candidato do PT, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 29 de abril, afirmou: "O fundamental no início do governo é um programa de emergência, que permita ao país sair da crise e voltar a crescer. Nós entendemos que a questão fiscal se resolve com volta do crescimento".

Certa feita, o presidente da Argentina Juan Perón escreveu em carta ao então presidente do Chile, Carlos Ibáñez: "Meu caro amigo: dê ao povo tudo o que for possível. Quando lhe parecer que você está dando muito, dê mais. Você verá os resultados. Todos irão lhe apavorar com o espectro de um colapso econômico. Mas tudo isso é uma mentira. Não há nada mais elástico do que a economia, que todos temem tanto porque ninguém a entende".

Para os populistas, a economia é elástica e a crise fiscal se resolve apertando o pé no acelerador e colocando a economia para crescer. Na América Latina o populismo produziu décadas de inflação e estagnação. A Argentina regride há sete décadas.

É compreensível que políticos escolham a estratégia populista. Dá resultados eleitorais. É péssimo para o país e para a sociedade e, principalmente, para os pobres --populismo sempre leva à crise e ao desemprego--, mas traz bônus eleitorais no curto prazo.

Quando técnicos ou intelectuais prometem o Paraíso, eles escondem dos cidadãos as reais limitações da economia e os verdadeiros problemas a serem enfrentados.

Pior ainda, dão munição à pior forma de política: a que procura manipular a opinião pública em busca de votos, evitando uma discussão civilizada e adulta de nossos problemas.

O desequilíbrio fiscal representa um genuíno conflito distributivo. Se no século 19 esse embate se dava prioritariamente no âmbito do confronto entre o capital e o trabalho, hoje seus principais campos de batalha são o Tesouro Nacional e o Congresso, que é a instância que arbitra o conflito.

Sempre haverá temas técnicos. Por exemplo, qual será o efeito desta ou daquela forma de tributação sobre o crescimento? E sobre a desigualdade e pobreza? Estes e outros temas demandam o debate sério informado com o melhor aporte da academia. Mas a decisão final é política.

A teoria demonstra, e nossa história já provou,que a política preconizada por Pochmann sempre nos levou à inflação e ao desemprego. Não há nenhum indício ou estudo acadêmico sério que indique que seria diferente desta vez. E, como já disse, das formas de tentar gerir o conflito distributivo, a única pior que a inflação é a guerra civil.

Pochmann, em artigo na Folha na quinta feira (17), chamou-me de paladino do governo para ricos. Mostrou os números dos lucros dos bancos no governo Temer. Se tivesse se dado ao trabalho de averiguar a lucratividade dos bancos nos anos Lula e Dilma, notaria que foi ainda maior do que no último biênio.

No início do governo Lula, Pochmann também foi contrário à focalização das políticas públicas nos mais pobres, princípio que está na base do programa Bolsa Família.

Uma das raízes da atual crise política foi uma campanha eleitoral em que se esconderam da sociedade seus limites, escolhas e conflitos. Repetir a estratégia, fugir a um debate civilizado e adulto, levará ao aprofundamento da crise.

Não adianta negar as restrições do mundo, pois a conta sempre chega. Na Argentina de Perón, na Argentina hoje e no futuro que Pochmann propõe.

Samuel Pessôa

Físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV

quinta-feira, 17 de maio de 2018

 



BAIXAR IMPOSTOS PARA O BRASIL CRESCER!




Só quem pode tirar os 13,7 milhões de desempregados dessa situação degradante é o setor privado. Porém, hoje, a iniciativa privada e os próprios cidadãos estão sufocados por uma das maiores cargas tributárias do mundo. Empresas que pagam impostos em excesso não têm lucro. Com isso, não crescem e não contratam novos colaboradores. Já os impostos cobrados pelo "bem dos trabalhadores" em nada os beneficiam.

Se um funcionário tem um salário de R$ 2 mil, a empresa acaba pagando R$ 4 mil com os encargos sociais. Qualquer trabalhador preferiria receber diretamente R$ 4 mil e fazer o que quisesse com esse valor, incluindo pagar um plano de saúde decente e um plano de aposentadoria privado, do que ficar com apenas R$ 2 mil no bolso e cedendo outros R$ 2 mil para o governo oferecer os vergonhosos serviços de saúde do SUS e uma aposentadoria cujo valor ofende a dignidade humana.

Os percentuais de impostos precisam, urgentemente, diminuir. Só com menos impostos as empresas poderão progredir, crescer e gerar mais empregos. Só empresas privadas lucrativas podem pagar melhor seus funcionários e ainda pagar mais impostos para o governo, mesmo se o percentual cobrado for mais baixo. Esse fato é realidade nos Estados Unidos, que crescem aceleradamente e gerando mais empregos, graças ao presidente Trump, que baixou, significativamente, os impostos de empresas e cidadãos.

Com isso, as empresas privadas americanas estão voltando a crescer, pois, pagando menor percentual de impostos, sobra mais dinheiro para investimentos, para inovações e para contratar novos funcionários. E, de sobra, a receita do governo está aumentando, apesar de os percentuais cobrados serem menores do que antes! O governo apenas apostou que empresas que crescem retornam aos cofres do governo valores maiores do que quando estão estagnadas. E que, cobrando menos impostos do cidadão comum, ele terá sobras no seu orçamento e vai consumir mais. É o ciclo positivo da economia, o contrário do que temos hoje no Brasil.

Por isso, prego que os governos baixem os impostos imediatamente. Mas essa mudança só vai acontecer no exato instante em que tivermos no poder não mais governantes, mas sim estadistas, que pensem no bem do povo muito mais do que pensam no caixa dos seus governos falidos.

Empresário daniel@tevah.com.br- DANIEL TEVAH

quarta-feira, 16 de maio de 2018

" Em um País Atrasado, por conta dos roubos e falcatruas,O ATRASO é o que ficou...

Até quando? 

- ANA CARLA ABRÃO

 ESTADÃO - 15/05

Em tempos de revolução digital, é de surpreender que ainda dependamos de cartórios

Outro dia recebi uma ligação dizendo que o registro do meu imóvel estava vencido e que precisava de uma nova certidão emitida pelo cartório para evitar que meu pedido de remoção de uma árvore condenada fosse arquivado. Mais do que depressa, fui ao cartório e paguei as custas para a emissão da certidão – cujo prazo de validade é de 30 dias –, garantindo assim a autorização para retirar a árvore que ameaçava cair sobre a minha casa.

Fornecer essa informação à prefeitura me custou R$ 51, individualmente uma quantia irrisória. Mas significou também tempo, esforço e perda de produtividade, pois exigiu deslocamento e esperar numa fila para ter acesso a um pedaço de papel que ainda teve de ser entregue do outro lado da cidade. Além disso, meus R$ 51 ajudaram a engrossar uma receita que atingiu R$ 14,6 bilhões no ano de 2017 e que, além da parcela que entra como receita do cartório, alimenta um fundo do Tribunal de Justiça, outro do Ministério Público e em alguns Estados também ajuda os Tesouros estaduais a reforçar os caixas para custear despesas vinculadas ao sistema penitenciário.

Em tempos de revolução digital, não é difícil antever um futuro muito próximo em que a blockchain se torne a grande e única forma de conferir credibilidade às informações. É, portanto, de se surpreender que ainda dependamos tanto de instituições como os cartórios e que tenhamos de lançar mão de documentos físicos para garantir que as informações prestadas sejam verídicas. Ainda mais quando se trata de registros que deveriam estar unificados e acessíveis por órgãos públicos mediante uma simples autorização do cidadão. É como se manter na idade da pedra quando o mundo contemporâneo já se estabeleceu há muito e uma nova realidade digital já se impôs.

O Projeto de Lei 9.327/17, que cria a duplicata eletrônica, tenta trazer o avanço. Além do ganho generalizado de redução do custo do registro de garantias e do aumento da agilidade, o projeto traz um grande benefício às micro, pequenas e médias empresas que só têm no desconto de duplicatas o caminho para ampliar o seu pouco acesso a crédito. Ao tornar essas garantias mais seguras, o registro eletrônico reduz o custo de crédito não tanto para as grandes corporações, mas principalmente para um segmento que representa hoje 16 milhões de empresas, responde por 63% dos empregos com carteira assinada e 48% dos salários pagos no Brasil.

Conceitualmente, não diferimos muito do resto do mundo. Esse é um segmento que sofre os efeitos de balanços não confiáveis, da alta volatilidade e da pouca governança. A falta de acesso a dados sobre essas empresas gera incerteza quanto à qualidade do crédito e aumenta o prêmio de risco. Além disso, a falta de uma base de dados centralizada enfraquece a garantia. Com isso, a insegurança jurídica para cobrança e recuperação dos empréstimos é muito alta, o que se reflete em taxas de juros também mais altas.

Se essas garantias forem percebidas como de boa qualidade e críveis, ou seja, pouco sujeitas a fraudes, as evidências mostram que o mercado cresce e ajuda a alavancar empresas que, de outra forma, morrem sem acesso a financiamento para seus projetos. Isso reduz o diferencial de juros entre grandes e pequenas empresas. No Brasil, esse diferencial é hoje duas vezes maior do que na maioria dos países e é isso que o registro eletrônico das duplicatas quer combater. 

Ao baratear o custo de registro e fortalecer as garantias, o registro eletrônico dá maior poder de barganha ao pequeno e médio empresário, ampliando a competição e diminuindo os juros do crédito. Todos ganham com isso, a não ser aqueles cujas receitas vêm do monopólio de atestar o que pode ser atestado de forma mais rápida, barata e transparente.

Ao tolerarmos que o atraso continue se sobrepondo ao avanço, estaremos também aceitando que empregos deixem de ser gerados, que boas empresas percam a chance de crescer e que pequenos empreendedores continuem presos aos juros altos. Até quando continuaremos presos ao passado, evitando que um futuro melhor nos garanta um país mais rico e próspero?

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN

Ser credor em dólar faz país ganhar tempo para solucionar problema fiscal 


- ALEXANDRE SCHWARTSMAN

        FOLHA DE SP - 16/05

Quadro político, no entanto, não colabora para a solução do desequilíbrio nas contas públicas

Por que o dólar subiu tanto? Fácil: porque passei dez dias no exterior (Portugal, participei de prova de ciclismo no Douro, incrível, obrigado por perguntar) e sempre que viajo para fora o dólar dá um jeito de subir, pelo menos até que pague a fatura do cartão do crédito...

Entendo, porém, que nem todo o mundo compartilhe minha opinião. Nesse caso, o melhor é olhar o que está acontecendo globalmente com o dólar, que tem se valorizado diante das demais moedas mundiais, embora, é claro, não na mesma proporção. Um euro, por exemplo, comprava cerca de US$ 1,24 há cerca de um mês; hoje, compra menos do que US$ 1,20.

Parte do fortalecimento da moeda americana se deve às tensões geopolíticas. O dólar costuma ser visto como um porto seguro para aplicações, mesmo quando os Estados Unidos estão no centro da turbulência, seja ela política, como hoje, seja econômica, como, por exemplo, durante a crise financeira no final de 2008.

Outra parte da história se deve à percepção de que a inflação americana, ainda que permaneça em patamares relativamente baixos, finalmente começou a se mover.

Assim, o IPC, deduzidos alimentos e combustíveis, ultrapassou a marca de 2% nos últimos 12 meses pela primeira vez desde fevereiro do ano passado. A medida favorita do Federal Reserve, o deflator do consumo (também livre de alimentos e combustíveis), segue um pouco abaixo disso (1,9% nos 12 meses até março), mas a tendência de elevação é também visível.

Obviamente não se trata de aceleração descontrolada, longe disso, mas tais números se traduzem em probabilidades mais elevadas de aumentos da taxa de juros americana além do que era esperado no começo do ano. Assim, a taxa de juros de dez anos do Tesouro americano, que embute as perspectivas de alterações das taxas de juros mais curtas, veio de 2,5% anuais para 3,0% ao ano do começo de 2018 para cá.

Aos poucos, portanto, as condições financeiras vão finalmente se normalizando, dez anos depois da crise de 2008. Isso significa que a enorme liquidez mundial que caracterizou esse período deve declinar gradualmente, processo liderado pela economia cuja recuperação foi mais longe, os Estados Unidos, o que, naturalmente, implica dólar mais forte.

A reação de cada moeda, contudo, não deve ser, a princípio, a mesma, muito embora o impulso original o seja. Características específicas de cada país, como a extensão do seu desequilíbrio externo (portanto, a necessidade de recorrer a capitais internacionais) ou problemas fiscais, modulam a resposta das moedas à mudança internacional.

Assim, moedas de países com elevados desequilíbrios externos, como a lira turca, sofreram forte desvalorização.

Já no caso do Brasil o problema é, como de praxe, fiscal. A dívida governamental já ultrapassou 75% do PIB (Produto Interno Bruto), e o déficit operacional recorrente do setor público permanece na casa de 5% do PIB.

Mais relevante, porém, do que os números é a noção de que o quadro político não colabora para a solução dos desequilíbrios nas contas públicas. Pelo contrário, o que se vê é o predomínio da hostilidade ao processo reformista e, portanto, a desvalorização da moeda.

Prevalece, apesar disso, o fato de o país ser credor em moeda estrangeira, fenômeno que limita a realimentação da fraqueza do real para os balanços dos setores público e privado. Isso não soluciona a questão fiscal, mas ganha tempo para o país decidir se irá (ou não) tomar o rumo correto.


Alexandre Schwartsman

Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia.

terça-feira, 15 de maio de 2018

E o atraso vai vencendo 


- EDITORIAL O ESTADÃO

   ESTADÃO - 15/05

É surpreendente a dificuldade encontrada pelo governo para pôr em andamento o plano de privatizar a Eletrobrás

A situação da Eletrobrás é insustentável. Em vez de induzir o crescimento, ela está parada na contramão, acumulando resultados deficitários. Seu controlador, o Estado, não tem condições de realizar os investimentos necessários. A solução para o problema é, todos sabem, a sua privatização. Além de dar remédio às deficiências da estatal, a medida tem potencial de produzir efeitos muito benéficos para a economia do País, em tempos de difícil retomada.

Não deixa de ser surpreendente, portanto, a dificuldade encontrada para pôr em andamento o plano do governo federal de privatizar a Eletrobrás. Todos os passos encontram grandes resistências, em boa medida oriundas da própria base aliada do governo.

Em agosto de 2017, o governo de Michel Temer anunciou sua intenção de privatizar a Eletrobrás. Como a Lei 10.848/2004 havia excluído a estatal do Programa Nacional de Desestatização, o Palácio do Planalto expediu, no mês de dezembro, a Medida Provisória (MP) 814/2017, que retirou essa proibição. Tal medida encontra-se ainda em tramitação no Congresso, que parece não ter entendido a urgência do assunto.

Além disso, em janeiro de 2018, o Executivo apresentou ao Legislativo um projeto de lei definindo o modelo a ser adotado na privatização da Eletrobrás. Segundo a proposta do Palácio do Planalto, a desestatização deverá ser feita por aumento do capital social mediante subscrição pública de ações ordinárias. Assim, a participação da União seria diluída, deixando de ser majoritária. Também seria criada uma ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva da União (golden share), de modo a assegurar poder de veto sobre algumas decisões de especial interesse público. No momento, o Projeto de Lei (PL) 9.463/2018 aguarda o parecer de uma comissão especial, sem previsão de data para ir a votação pela Câmara.

Como forma de destravar este complicado processo, o governo federal anunciou que incluiria, por decreto, a estatal no Programa Nacional de Desestatização. De fato, na quinta-feira passada, foi expedido o Decreto 9.351/2018 com o teor anunciado. No entanto, surgiu uma pequena novidade. Segundo o ato, o início dos “procedimentos necessários à contratação dos estudos pertinentes” à privatização da estatal ficará suspenso até que o Congresso aprove o PL 9.463/2018. Assim, mais do que agilizar a desestatização, o decreto presidencial oficializou a incerteza. Fez depender do Congresso o início dos trabalhos para a privatização.

Essa previsão parece ter sido resultado de uma exigência da Câmara dos Deputados, que almeja precedência no assunto. Tivesse o Congresso uma maioria minimamente sintonizada com o interesse nacional, o texto do decreto não causaria maiores transtornos, já que, diante das evidentes razões para privatizar a Eletrobrás, certamente o PL 9.463/2018 seria rapidamente aprovado.

Como se sabe, a atual composição do Congresso não manifesta especial interesse na privatização da Eletrobrás. A cada dia, constata-se uma nova resistência por parte de alguns políticos, desejosos de continuarem contando com a estatal a serviço de seus interesses. Não querem perder o butim – e por isso é tão preocupante que o Decreto 9.351/2018 determine esperar a aprovação do Congresso. É sinal de que o pessoal contrário à privatização está conseguindo incluir todos os obstáculos necessários para que a Eletrobrás continue exatamente como está.

Nessa demora, quem perde, uma vez mais, é a população. O contribuinte vê-se obrigado a bancar uma estatal deficitária. A infraestrutura do País fica cada vez mais defasada. O mercado de energia torna-se menos competitivo e, portanto, a conta de luz para as famílias e as empresas fica mais cara. Tem-se, assim, a vitória do atraso. O resultado podia ser diferente, mas para isso o interesse nacional tem de ser defendido com mais empenho.