quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

" O Deus de Duas Faces "





Já passei o Réveillon em Paris. Não gostei. Fui para a Champs-Élysées ao bimbalhar da meia-noite, conduzido pelo meu amigo Fernando Eichenberg, o Dinho, para ver a clássica celebração de Ano-Novo dos parisienses. Pelas barbas de Catherine Deneuve, foi horrível! Os franceses levam champanhe nacional para a rua e, depois de beber tudo pelo gargalo, abrem grandes círculos humanos e começam a jogar as garrafas no meio. As garrafas se quebram, naturalmente, e os cacos de vidro afiados ficam espalhados pelo chão. Às vezes, um francês bêbado atravessa o círculo, em desafio aos outros franceses bêbados, que atiram as garrafas enquanto ele passa. É um troço PERIGOSO!

Também já passei o Réveillon em vários pedaços das fímbrias do Atlântico, do Rio de Janeiro ao Uruguai, passando por Xangri-lá. Algumas festas foram gloriosas, outras nem tanto. Mas tem uma coisa que me incomoda no Réveillon do litoral: os foguetes. Não os fogos, que são bonitos; os foguetes. Não gosto de foguete. Não gosto, cara, não gosto. Os gatos ficam nervosos, os cachorros ficam nervosos, eu fico nervoso e todos temos razão. Para que aquela barulheira toda? Não consigo entender isso. Sinto-me tão inseguro com as explosões quanto com as garrafas quebradas nas calçadas de Paris.

Nos anos 80, tive um Réveillon singular. Morava em Criciúma, trabalhava no Diário Catarinense e estava duro, durango. Não tinha nenhum, mas nenhum mesmo, nem para comprar um único cachorro-quente sem molho. Brabeza. Namorava a Janinha, que hoje está casada com um grande cara, o Oderson. Com ele, ela tem uma linda filha e vivem, os três felizes, no Paraná.

Ocorre que, meses antes, eu havia feito uma aposta com o Nenê, dono de um bar que ainda vigora na cidade, o Varandas. Havíamos apostado um engradado de cervejas, e eu ganhei. Sentia vergonha de cobrar a aposta, mas a Janinha sempre foi despachada, sobretudo num momento de necessidade como aquele. Ela foi ao bar, lembrou a aposta, pediu o engradado e o Nenê, bom perdedor que é, deu. Para arrematar, ela disse que queria uma pizza e mandou o Nenê pendurar a conta num cabide ali atrás do balcão. Fomos para o meu apartamento, no 10º andar de um edifício a duas quadras de distância, e passamos a noite inteira comendo pizza, bebendo cerveja e rindo, até o alvorecer na região carbonífera. A cidade estava vazia, ninguém fica em Criciúma no Réveillon, tínhamos só pizza e cerveja e nenhum centavo. E foi muito divertido!

O que a gente precisa, para fazer uma boa festa, é gente de quem se gosta. As mais belas praias do mundo ou a avenida por onde desfilou Napoleão são dispensáveis.

Agora, vou passar o Réveillon com minha pequena e unida família, eu, minha mulher e meu filho, no extremo nordeste dos Estados Unidos, numa temperatura de sete graus abaixo de zero, e me sinto muito feliz. Poderia ter mais amigos por perto, poderia estar mais quente, poderia ter o chope brasileiro para brindar antes e depois do champanhe, mas você tem de se divertir com o que está à disposição, não é?

                      Esse é meio que um lema que me guia.

Uma data como o Réveillon presta-se para exercer esse lema, ou para refletir a respeito. Janeiro, não por acaso, é o mês de Jano, o deus de todos os finais e de todos os começos, o deus de duas faces, uma olhando para frente, outra olhando para trás.


Quando olho para trás, vejo dificuldades que enfrentei, sim, claro que as vejo, mas vejo, também, as pessoas que me ajudaram a enfrentá-las. São tantas e seu amor é tão poderoso... As pessoas. Como já disse, para se fazer da vida uma boa festa, só se precisa de pessoas de quem se gosta. Elas estão ao meu lado aqui, no norte do mundo, e também aí, no sul do Brasil. E eu estou com elas. É certo. Como puder, sempre estarei com elas. Olhando para a frente, vejo-as comigo. Por isso, a outra face de Jano, a que mira 2015, observe, veja bem: ela está sorrindo.  

" Para Iniciar bem o ano "






Selecionei algumas frases de pessoas célebres e outras nem tanto, a fim de montar um mosaico que nos faça relaxar e refletir sobre essa aventura insana que é viver. Levantar de manhã já pode ser considerado um esporte radical, então está aí um kit de sobrevivência para nos socorrer quando estivermos ligeiramente em pânico e levando tudo a sério demais.

– Se quiser fazer Deus rir, faça planos. (aforismo iídiche)

– É preciso ter altos e baixos. De outra forma, você não saberia a diferença. Seria tudo uniforme, linha reta, como olhar para um monitor de batimentos cardíacos. E, quando rola aquela linha reta, baby, você está morto. (Keith Richards)

– Segurança não é ausência de perigo; segurança é o gerenciamento do medo. (Wendy Reid Crisp). – Sossega, porque nada há que esperar, e por isso nada que desesperar também. (Fernando Pessoa)

– Felicidade se acha é em horinhas de descuido. (Guimarães Rosa)  – As coisas boas vêm com o tempo. As melhores, de repente. (Denise Lessa)

– Tudo é saudável, menos interrogar-se constantemente sobre o sentido dos nossos atos. (E.M. Cioran) – Desconfio/dessa coisa/de pessoas do bem/e pessoas do mal/acho que só existem/as sensíveis/e as sem sal. (Josué Orsolin)

– Ninguém vale pela sua ascendência, pelo lugar onde nasceu nem pela tradição a que pertence, mas cada um vale pelo que conseguirá fazer da sua vida. (Contardo Calligaris)

– É melhor buscar a verdade do que a glória. Que humilhação ter a aprovação dos outros como objetivo. (E.M. Cioran)

– Aquele que não dispõe de dois terços do dia para si é um escravo. (Nietzsche)

– Eu gostaria de fazer um grande filme, desde que isso não atrapalhe minha reserva para o jantar. (Woody Allen) – O objetivo da psicanálise não é curar as pessoas, mas mostrar que não há nada de errado com elas. (Adam Philips)

– O custo de uma coisa é a quantidade de vida que se tem que dar em troca. (H.D. Thoreau) – Se você for sempre o guia, só vai chegar aonde já conhece. (Maria Rezende) – Um passo à frente e já não se está no mesmo lugar. (Sandra Flanzer)

– As pessoas se dirigem a Deus para obter o impossível. Para o possível, os homens bastam. (Pedro Maciel)

– Nunca vou entrar no céu. Minha esperança é um telão do lado de fora. (Dirceu Ferreira)


– Hoje é um bom dia para continuar insistindo. (Caio Fernando Abreu) - Desejo a todos um ano que valha o esforço de viver. (Nélida Piñon)

" O momento antropofágico do Brasil "


 Antropofágico
 Há um esbanjamento de despudor e ausência de autocrítica, além da opacidade do governo
Uma grave crise funcional do Estado eleva seus custos de maneira intolerável 
O governo só não cai por falta de colo hospitaleiro. Ainda bem, pois escasseiam robustas lideranças democráticas capazes de desmantelar, por simples presença, arranjos contra a legalidade. O Legislativo distrai-se em conquistas predatórias ao apagar das luzes do atual mandato.

 Os movimentos sociais organizados, outrora valentes escudeiros de valores universais, empalideceram e a multidão de siglas que desfilam em conclamações lembra os “blocos do eu sozinho”. Em São Paulo, estado volta e meia em conflito com o resto do País, a direita brega patrocina intervenções surrealistas sem acordo prévio sobre o propósito da perturbação do trânsito. Augustos integrantes da judicatura disputam o horário televisivo com escaramuças entre bandos de traficantes. 

Há um esbanjamento de despudor, ausência de autocrítica, intermináveis confabulações pré-ministeriais, além da conhecida opacidade do governo. Tudo a deixar a leve impressão de que os verdadeiros espetáculos em um só ato, ou vários, estão em exibição alhures. A rotina pós-eleitoral, que deveria ser pacífica, está em ebulição à revelia das autoridades recém-eleitas.

A insaciável antropofagia brasileira converteu o “impedimento”, mecanismo de destituição de autoridades públicas, em alavanca para a nomeação de ministros. Está aí o surpreendente novo ministro da Fazenda que não me deixa mentir, embora condenado a ser, ele próprio, deglutido: pelos conservadores, por ser Joaquim Levy de menos, pela esquerda, por sê-lo de mais. Em qualquer caso, é improvável que reconquiste a identidade pretérita. Ele e os demais figurantes em processo de escolha governamental estão sujeitos a ampla rejeição ao simples anúncio de que estão cogitados para escalação. A fonte escaladora não transfere segurança, mas doses da mesma controvérsia de que padece no momento. Ninguém pode prenunciar qual a face do governo em, digamos, seis meses.

A antropofagia continua na transformação do saudável pluralismo organizacional democrático em máfias de concorrência coordenada, com regras e procedimentos estabelecidos. É adulto de anos o entrelaçamento entre competidores privados e nichos da burocracia pública e ainda ignorada a extensão do sistema extrativista assentado em extorsão e suborno. Hoje é a Polícia Federal que determina a pauta relevante da política, precisamente pela elevada taxa de imprevisibilidade quanto aos danos políticos e econômicos gerados pelas investigações. A partidarização pretendida pela oposição, na torcida pela declaração oficial de que o Partido dos Trabalhadores está contaminado em estágio terminal pelo vírus da corrupção, não prevalecerá. Já investigações paralelas começam a revelar alguns dos escândalos a macular o longo predomínio tucano no estado de São Paulo, e sabe-se que a era Aécio Neves, em Minas Gerais, não foi um primor de lisura. Governo, oposição, Legislativo, Judiciário, grupos de pressão eficazes (OAB, CNBB, jornalismo crítico sensato) terão de lidar, por bom tempo, com um problema nada miúdo. 

o se trata de advogar uma anistia generalizada pela comprovação da universalidade do delito. A oportunidade é singular demais para exaurir-se na contabilidade de malfeitos partidários. Há uma grave crise funcional do Estado brasileiro que eleva de maneira intolerável os custos do governo e do crescimento econômico. Consequentemente, aqui se joga com a continuidade ou interrupção da distribuição iníqua dos sacrifícios inerentes à trajetória de países emergentes. Os custos excessivos, o sobrefaturamento, as propinas e mimos distribuídos não são, nem apenas nem principalmente, uma agressão a acionistas e fideístas dos bons propósitos de empresas gigantes, grandes ou médias.

Os recursos ilegalmente extraídos do Tesouro Nacional, por empresários ou servidores públicos, apontam para uma das habilidades antropofágicas de transformar o progresso material em miséria social. Sim, os brasileiros poderiam usufruir um nível de bem-estar superior se o Estado não fosse balcanizado entre grupos de burocratas e máfias empresariais de concorrência controlada. 

Se existissem países sem solução, o Brasil pertenceria, talvez, ao grupo. Derrotados eleitorais tentam tornar sem efeito a derrota. Poucos os ouvem, mas outros, com relativo poder causal, ameaçam colocar sob suspeição o mandato dos vencedores. Esses escolhem ignorar a possibilidade de que, segundo a lei vigente e as conclusões da Polícia Federal, venha a ser impossível governar. Isso, óbvio, se as conclusões forem aceitas tal e qual pelo Ministério Público. Bem verdade ser praticamente impossível que o País pare de funcionar e que a fantástica quantidade de obras em andamento, das quais depende o futuro da população brasileira, seja interditada. Mas há que resolver qual o destino dos implicados nos ilícitos. Livres é que não poderão ficar.

Igualmente improvável que as eleições de 2014 sejam anuladas. Seria indigesto mesmo para alguns bons antropófagos. Mas é certo também que o País não será governado segundo o plano original e o Estado não obrará como dantes. Pois governar não se resume a nomear ministros. Tampouco a exigir que prazos sejam cumpridos. Mais do que a misteriosa reforma política, urge uma revisão estrutural no modo de operação do Estado brasileiro, em seus órgãos de controle não só a posteriori, mas de acompanhamento. E se o governo paira, sem liderança política para além da administrativa, seria cautelar ser informado de que ninguém está livre da antropofagia. 
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Texto por Wanderley Guilherme dos Santos 
Fonte: Carta Capital online, 30/12/2014 
Imagem:  Saturno devorando um filho, Francisco de Goya

" A Poética Da Corrupção "


Arnaldo Jabor
 

Com a corrupção a carne apodrece, a fruta definha e o alimento se espedaça em nossas mãos. 

A corrupção enfeia nossos corpos e apaga a luz que brilharia em nossas almas, com a corrupção ninguém faz uma casa de boas pedras, com a corrupção ninguém pinta um paraíso no muro de uma igreja, nenhuma pintura será feita para durar nem para brilhar diante de nossos olhos, com a corrupção seu pão cada vez mais será de farrapos dormidos, seu pão será seco como papel sem trigo da montanha e sem nutritiva farinha, com a corrupção ninguém encontra um bom sítio para fazer sua casa, os tecelões são afastados de seus teares, a corrupção embota a agulha nas mãos das donzelas e desbota a graça dos tecidos, Dante não nasceu da corrupção, nem Piero della Francesca, nem Giotto, a corrupção enferruja o cinzel do escultor e as estatuas não se erguem, o azul vira um câncer na corrupção e não se bordam de ouro as vestes púrpuras, a corrupção apunhala a criança no ventre e a esmeralda não será lapidada e mata o prazer dos jovens amantes deitando entre seus corpos paralisados na cama, cadáveres sentarão na mesa dos banquetes sob as ordens da corrupção, a corrupção é obesa, a corrupção cria esposas desprezadas se consumindo e amantes cobertas de pérolas e juras de amor, a corrupção cria súbita dignidade em tribunais, cria ladrões de olhos em brasa, dedos espetados, uivos de falsas virtudes, negando os contratos de gaveta, os recibos falsos, os laranjas desdentados nas portas de empresas inexistentes. A corrupção provoca brados de honradez, socos nas mesas, babas indignadas nas negações em tribunais, hipócritas lágrimas de esguicho, punhos batidos no peito e clamores a Deus. A corrupção se sente superior à ridícula moralidade de classe media. A corrupção tem uma única vontade: vingar-se de inimigos, cobrar lealdade dos seguidores, exigir pagamentos de propina em dia.

A corrupção cria firmas sem dono, sem obras, vagando num deserto jurídico e contábil que leva ao caos proposital, a corrupção aumenta a amizade entre as famílias de safados, cria os cálidos abraços, os sussurros de segredo nos cantos das varandas, o piscar de olhos matreiros, as cotoveladas cúmplices, os charutos comemorativos, vastos jantares repletos de moquecas e gargalhadas, piadas, dichotes, sacanagens jucundas. 

A corrupção valoriza a norma castiça da língua, palavras que dormem em estado de dicionário. A corrupção traz de volta interjeições e adjetivos raros: "ilibado", "despautério", "infâmias", "aleivosias"... A corrupção é o paraíso dos advogados, com ternos brilhantes, sisudos semblantes, liminares na cinta, serenidade cafajeste, 'chicanas' decoradas, diplomas comprados.

Com a corrupção, malas pretas voam em todas as direções, os dólares flutuam nos céus estrelados, as luas são sempre minguantes, os rostos nunca mostram o que pensam, as gargalhadas soam como latidos, as bocas salivam, os punhais saem das bainhas, os carros atropelam, as finas cordas apertam os pescoços, os assassinos se fartam, os olhos do povo olham impotentes. A corrupção confunde, é um labirinto, uma grande aranha em sua teia, a corrupção cria firmas em sanfona, uma dentro da outra, subsidiárias sem obras, vagando num labirinto jurídico e contábil que leva a um caos indecifrável, pois o emaranhado de roubalheiras dificulta apurações. No imaginário brasileiro, a corrupção tem uma aura heroica. São heranças da colônia, quando era belo roubar a Coroa. A corrupção é a mola mestra do atraso. A corrupção mostra que os lírios que apodrecem fedem mais que as ervas daninhas (Shakespeare). A corrupção desenha as caras deformadas de políticos, as barrigas, a gomalina dos cabelos, a boçalidade dos discursos, tudo compondo um estafermo fabricado com detritos de vergonhas passadas, cérebros encolhidos, olhos baços, irresponsabilidades fiscais, municípios apodrecidos, decapitações, ônibus em fogo. A corrupção escolhe seus peões entre os mais espertos dentre os mais rombudos e boçais. A corrupção transforma a estupidez em uma estranha forma de inteligência, uma rara esperteza para golpes sujos e sacos-puxados. A corrupção é fabricada entre angus e feijoadas do interior, em favores de prefeituras, em pequenos furtos municipais, em conluios perdidos nos grandes sertões. A corrupção é a torta escultura feita de palha e barro, de gorjetas, de sobras de campanha, de canjica de aniversários e água benta de batismos. A corrupção explica o País, pois tem raízes e tradição: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. A corrupção durante quatro séculos criou capitanias, igrejas, congressos, golpes e tomadas de poder. A corrupção tem um vago sentimento de poesia brasileira. A corrupção para muitos se julga revolucionária, roubando para um futuro imaginário e mentiroso, para enganar otários cheios de esperança. A corrupção é um rabo de lagarto que sempre se recompõe, renasce quando cortado.

A corrupção cria, esculpe, organiza as imposturas, as perfídias, os sepulcros caiados, os beijos de Judas, os abraços de tamanduá, as lágrimas de crocodilo.

" Viver não significa apenas existir "


Silvano Agosti

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Viver não significa apenas existir
Por: Silvano Agosti
Transcrição traduzida: Mario S. Mieli

As três gaiolas do ser humano 

( …)
O ser humano vem ao mundo e a primeira coisa que faz ao chegar é lançar um olhar maravilhado sobre essa realidade, e daí passa a amá-la imediatamente. Depois, o que acontece, vai sabê-lo, infelizmente, desde a infância. O que acontecerá é que ele será negado, como essa grande obra prima da natureza, esse imbatível mistério que é o ser humano… será inexoravelmente, ferozmente, desmantelado e reduzido a um papel, tornando-se um contador, um aluno, um marido, um funcionário, um Papa, um Presidente, etc., na procissão dos papéis que mantém prisioneiros todos os seres humanos. É preciso dizer logo que, por isso, o ser humano ainda não conseguiu realmente habitar neste planeta.

É fundamental que todos saibamos quais são as gaiolas mortais que cada forma de poder pôs em ato para conseguir demolir esse colosso de mistério que é o ser humano.
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A primeira gaiola consiste em criá-lo em um espaço pequeno, um pequeno cárcere que é o apartamento, a casa. 

A segunda gaiola é constringi-lo, quando ele só precisa correr, brincar, ser ele mesmo, e forçá-lo a ficar sentado para aprender, nada menos, que a escrever; por que? Por que se é obrigado a aprender a escrever aos 5/6 anos? Normalmente, o ser humano aprenderia de modo verdadeiramente perfeito a escrever se o fizesse chegando sozinho a sentir essa necessidade, com o desejo, por volta dos 11/12 anos, mas o que conta é bloqueá-lo, não permitir que ele brinque, corra, porque se ele brincasse, corresse até os 18 anos, depois seria impossível fazê-lo parar, pelo resto da vida… de brincar, de criar, de demonstrar sua própria unicidade, porque cada ser que vem ao mundo é único e irrepetível, como se sabe, não só quanto ao DNA, não só quanto às impressões digitais, mas em uma criatividade que, se pudesse exercitá-la, daria cada vez uma versão nova, fascinante, imortal da realidade… 

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A terceira gaiola, talvez a mais letal, é o trabalho. A obsessão do trabalho já começa por volta dos 13 anos, quando o rapazinho diz “Mas eu não gosto da escola, não quero ir…”, então lhe dizemos: “Olha que se você não conseguir o diploma, depois você não achará trabalho… olha que se depois não frequentar a universidade, será difícil achar trabalho”, mas o que significa “achar trabalho”? O ser humano não precisa trabalhar, precisa é de boa comida, de um lugar seco para dormir. É possível dar uma casa de presente a 7 bilhões de pessoas com 1/5 daquilo que se gasta a cada ano com os exércitos, as despesas militares, para não falar das coisas magníficas que poderiam ser feitas com todos os investimentos feitos com droga, com prostitutas, com hospitais –aqueles inúteis-, com penitenciárias. Essa gaiola do trabalho, aos poucos, convence, infelizmente, a todos, que se não trabalharem 8/9 horas por dia, não poderão ficar neste planeta, e quem trabalha 8/9 horas por dia sabe muito bem que pode existir, mas certamente não viver! A coisa interessante é que os aparatos de poder que forçam os seres humanos a essa convicção absolutamente demencial – que seja inevitável trabalhar 8/9 horas por dia – até hoje em dia, com as máquinas substituindo em todo canto a fadiga e que permitiriam que o ser humano pudesse expressar-se, finalmente, no trabalho, sobretudo porque, desde sempre, quem trabalha 3 horas por dia e tem 21 horas para viver, é muito mais produtivo de quem é forçado a trabalhar 8/9 horas por dia todos os dias; portanto em 3 horas é possível produzir de modo fantástico aquilo que lhe compete. 

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Dizemos produziria porque, atualmente, somos 5 ou 6 em toda a Europa a trabalhar só 3 horas por dia, mas o indivíduo trabalharia de boa vontade 3 horas por dia, descobrindo que nas outras 21 poderiam ser inventadas tantas coisas que renderiam ainda mais produtivas aquelas 3 horas de trabalho, além de se tornar possível conhecer, enfim, os próprios filhos, e depois, finalmente, não se estaria preso à terceira gaiola letal, que é a 3 Bis, ou seja, a convivência: o fato de que um ser humano que encontra uma pessoa que ama seja forçado a conviver na mesma pequena casa ou grande casa –dá no mesmo – não tendo nunca a possibilidade de se alegrar, de ficar um pouco consigo mesmo/a, e descobrir, sobretudo para as mulheres, que ficar com o próprio parceiro não nasce de uma necessidade de afetividade, mas de uma necessidade da construção civil; não têm outra escolha, de modo que ficam ali e isso explica porque se diz que 70% dos homicídios e das violências ocorrem nesta gaiola 3 Bis, que é a da convivência dentro da própria casa. 

Não confundam a existência com a vida. 

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Vimos há pouco que bastaria reduzir de 1/5 as despesas militares para dar uma casa a 7 bilhões de pessoas, assim como duas refeições quentes por dia; todavia há uma gaiola ainda mais feroz que é aquela de vender barato, sem percebermos, nossa própria criatividade, ou seja, a nossa própria visão do mundo. Alguém dizia: “Mas pra que serve uma visão do mundo?” Como “para que serve”? A humanidade teria 7 bilhões de visões diversas da realidade e, portanto, teria uma imagem poderosíssima, extraordinária, alguém poderia até ousar dizer “divina” da realidade humana. Dito isso eu poderia até não dizer mais nada, mas me interessa fazer compreender que quem trabalha duas ou três horas é realmente tão produtivo que merece um salário maior daquele que recebe trabalhando 9 horas, porque, na grande grande maioria dos casos, o trabalhador recebe 1/30 daquilo que produz, mesmo quando produz mal, um trabalhador que ganha 1.000 euros por mês, na realidade produz, como mínimo, 30.000, então se trataria simplesmente de entender que o destino de 7 bilhões de pessoas está nas mãos de um grupo muito pequeno de pessoas, um grupo, talvez, não sei, mas ouso dizer, que está certamente abaixo de 100, os quais investem os 80% de todos os bens da Terra só para defender os próprios privilégios. E quais são seus privilégios? Brincar com o mundo, decidir as guerras, defender o comércio de armas, de drogas, de prostitutas, sobretudo de informações falsas, preguiçosas, nocivas. Pensem que um rapaz de 21 anos nascido em Nova York terá assistido a 130 mil homicídios na televisão. A pedagogia da morte, porque vocês terão notado que desde o texto nos pacotes de cigarro “este produto mata” até essa obsessiva narração de homicídios na televisão, o interesse central do pequeno núcleo de monstros que gerenciam o mundo é regular a mortalidade, não produzir a vitalidade, mas regular a mortalidade; então, por exemplo, construíram essa válvula pela qual morrem 35 mil crianças de fome, naturalmente poderíamos dizer também, virando a cabeça para não ouvir o fedor dessa nojeira, que só na Itália são destruídas 400 mil toneladas de alimentos por ano, por causa de prazos de validade que vão vencer! 

De qualquer maneira, de 1960 até hoje, morreram cerca de 1 bilhão de crianças de fome. Carregamos esse peso em todas as nossas consciências, também sobre a consciência de quem não sabe disso, e se exprime no desconforto profundo, visceral, que quase todo o mundo hoje sente. Foi globalizado sobretudo o desconforto e esse desconforto depende da obrigação de viver em um planeta que é um dos mais extraordinários planetas que existem no universo inteiro. O único que tem aparência azul a partir do cosmos, porque deveria hospedar a vida, e eu desejo a esse planeta e também aos amigos do Beppe Grillo de se recusarem, a partir desse momento e para sempre, seja pela razão que for, de confundir a existência com a vida, viver quer dizer saborear a eternidade dia após dia, nascendo a cada manhã e morrendo no sono de noite, e ressurgindo dia após dia! 

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Esse são meus votos, e meus votos têm um veículo fundamental, sem o qual desaparecem. Estão na palavra talvez mais afetada da história da linguagem humana, na palavra “amor”. Construam um território de amor a qualquer custo, mas não uma gaiolinha pequenina com uma arvorezinha parcamente frondosa, mas um território que hospede uma floresta de sentimentos, e então será muito difícil contrabandear o termo vida, enterrando-o na tumba da existência.

( … )
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FONTE:  http://imediata.org - acessso 31/12/2014

" 2015 " < Unidos para Resgatar o TEMPO >

Artigo Zero Hora


GUERSHON KWASNIEWSKI
Responsável pelo rabinato da Sibra
DOM JAIME SPENGLER
Arcebispo de Porto Alegre


“Ser homens de fé significa ser homens de esperança.”
Rabino Skorka

“Tempus fugit!” Iniciando o ano novo, recordamo-nos jamais poder parar o tempo; podemos, sim, usá-lo bem! Significa oportunidade privilegiada para resgate do sempre necessário engajamento em prol da vida, pois “para tudo há um tempo debaixo do sol” (Ecl 3,1).


Desejando no início do novo ano paz, felicidade e prosperidade, manifestamos nossa esperança por um mundo melhor, orientado por valores e virtudes que precisam ser lembrados para não cair na tentação, desvio ou esquecimento. No mundo marcado pelo materialismo, reencontrar a espiritualidade favorece redescobrir a nossa essência.
“Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18). Esse preceito não pode ser visto como mera citação de um texto antigo, mas deve ser prática a nos tornar melhores, mais humanos. A fé é fonte de inspiração e sustentação diante de desafios que por vezes se transformam em barreiras que impedem felicidade e paz.
O Nobel da Paz à paquistanesa Malala Yousafzai e ao indiano Kailash Satyarthi, e o reatamento das relações diplomáticas entre Estados Unidos e Cuba marcaram 2014.

Em 2015, através do diálogo e da oração haveremos de encontrar caminhos para superação de sinais preocupantes de corrupção, intolerância, racismo, conflitos e radicalismos, colaborando assim para a paz social. Seja o convívio humano sustentado pela audácia e alegria de novas possibilidades, orientado pelos princípios da fraternidade, respeito, tolerância e amor ao próximo.


Almejamos vida em plenitude! Queremos viver em paz, superando preconceitos e intolerância. No exercício do amor, capacitamo-nos a olhar o outro no rosto, reconhecendo e promovendo a diferença, favorecendo democracia.
Radicalismos destroem sonhos e ameaçam a vida! Possamos juntos favorecer oportunidades em vista de uma sociedade integrada e integradora, marcada pelo princípio do respeito recíproco e promoção da vida em todas as suas expressões.


“Uma fé autêntica _ que nunca é cômoda nem individualista _ comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela” (papa Francisco).

" Só Depende de Nós "

Artigo Zero Hora


LUIZ CARLOS CORRÊA DA SILVA
Médico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre

O clima assustador que nos atormenta deve-se não apenas aos indicadores econômicos e às más notícias do setor político, mas particularmente ao crime organizado e à impunidade.

 Corrupção sempre existiu, mas agora as proporções são gigantescas e seus protagonistas são mais graduados e audaciosos, por terem fortes ligações com o poder e a certeza da impunidade. Assistimos estarrecidos a essa agudização da vergonha nacional e ao desgaste progressivo das instituições. Valores, princípios morais, seriedade e confiança são enxovalhados por pessoas que jamais poderiam ocupar os importantes cargos que lhes foram oferecidos. Não dá para continuar o loteamento político de cargos técnicos!
Atingiu-se o clímax com esse pacto corporativo interdisciplinar de corrupção, vindo finalmente à tona o que se passava nos bastidores. Como é que se deixou acontecer toda essa sujeira sem fiscalização e sem medidas de controle? Será que tem de ser assim? Será que não temos capacidade de agir e reagir?
Sim, nós podemos mudar. E a primeira mudança é recuperar a confiança, acreditar que o Brasil pode melhorar, e muito, desde que cada um faça muito mais e melhor.
Nossos representantes não podem mais pactuar com o crime em troca de apoio parlamentar, esse grande nó da governabilidade que contamina o ambiente político. Não podem entregar as chaves dos cofres públicos para os bandidos e depois dizer que nada sabiam. Isto precisa mudar, e já!
A construção dessa mudança inclui, necessariamente, ações como enxugar a máquina, não desperdiçar e ter transparência. Impor foco máximo na educação. Privilegiar a saúde. Proteger mais os jovens. Investir pesado num estilo de vida populacional mais saudável. Responsabilizar empresas por danos que estejam causando. Hierarquizar o Estado como soberano e sempre acima do governo. Exigir seriedade e limpidez na relação entre governo, partidos políticos e interesses pessoais e setoriais. Consagrar cumprimento de direitos e deveres.
Se 2015 tiver pelo menos um pouco de tudo isso, haverá um grande avanço. É preciso acreditar na nossa capacidade, trabalhar e exigir mais de todos. Cidadania é compromisso, exigência e participação. Omissão favorece corrupção. Só depende de nós.
Vamos fazer?

" Nossas Posições Em 2014 "

Editorial Zero Hora


editorial conjunto

" a posição do Grupo RBS sobre este que foi um dos grandes temas do ano ficou registrada com clareza :< respeito ao direito de manifestação,repúdio às depredações e cumprimento dos acordos assumidos pelo PAÍS.

Teve COPA EM 2014 - E MUITOS OUTROS FATOS polêmicos que receberam cobertura objetiva e plural dos nossos veículos.Sempre que julgou oportuno,porém,a RBS se posicionou em seus espaços editoriais ,com opiniões transparentes, sem a pretensão de transformá-las em única verdade.Alguns exemplos :


Vai ter Copa, sim! – afirmou incisivamente o editorial publicado em 27 de janeiro, no auge dos protestos contra as obras do Mundial.
E argumentou: “Suspendê-la seria uma rendição à atitude fascista de grupos que tentam impor suas visões com gritos e ameaças.”
A posição do Grupo RBS sobre esse que foi um dos grandes temas do ano ficou registrada com clareza: respeito ao direito de manifestação, repúdio às depredações e cumprimento dos acordos assumidos pelo país.
Teve Copa em 2014 e muitos outros fatos polêmicos que receberam cobertura objetiva e plural dos nossos veículos. Sempre que julgou oportuno, porém, a RBS se posicionou em seus espaços editoriais, com opiniões transparentes, sem a pretensão de transformá-las em única verdade. Alguns exemplos:

Eleições - Defendemos o voto responsável, o acompanhamento dos eleitos pelos cidadãos, a união do país pela presidente reconduzida e o enfrentamento da dívida pelo novo governador gaúcho.
Democracia – Passada a eleição presidencial, fomos enfáticos em condenar manifestações golpistas e em afirmar que a democracia tem mecanismos para corrigir suas próprias deformações, sem rupturas institucionais.
Corrupção - Desde que estourou o escândalo da Petrobras, os editoriais da RBS vêm pedindo punição exemplar para corruptos e corruptores, além de providências do Planalto para conter os desmandos na estatal.
Racismo – Episódio envolvendo o goleiro Aranha, do Santos, num jogo contra o Grêmio, suscitou uma série de posições da RBS condenando inflexivelmente as manifestações racistas, mas considerando injusto rotular o Estado e o clube como símbolos do preconceito.
Casamento gay – Sob o título “O fogo da intolerância”, editorial de 12 de setembro repudiou com veemência o atentado contra o CTG de Livramento que sediaria um casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Comissão da Verdade – Editorial renovou a visão de que a tortura é um crime contra a humanidade e reconheceu o trabalho da Comissão como contribuição valiosa para o país, embora sem legitimidade para anular os efeitos da Lei da Anistia que também foi uma conquista nacional.
Infanticídio – O assassinato do menino Bernardo, em Três Passos, gerou indignação coletiva no Estado. Os editoriais da RBS não apenas contemplaram este sentimento, como também denunciaram as falhas da rede de proteção à infância.
Feminicídio – Editorial de 10 de agosto apoiou proposta do Ministério Público de São Paulo para incluir no Código Penal a figura do feminicídio, que caracteriza o assassinato de mulheres e fortalece a Lei Maria da Penha.
Crise econômica – O mau momento da economia brasileiro tem sido abordado com frequência pelos editoriais da RBS, que pedem a manutenção da estabilidade, o controle da inflação e planos factíveis de crescimento.
Governo Dilma – Criticamos fortemente a leniência com a corrupção, o aparelhamento político da máquina pública, os equívocos na condução da economia e a visão radical de setores governistas favoráveis à censura da imprensa, felizmente desautorizados pela própria presidente.
Governo Tarso - Editoriais registraram que o Estado chegou ao caos nas finanças públicas sob o comando de um governador que optou pela manutenção de uma máquina pública demasiada,  concedeu reajustes generosos aos servidores e esgotou o recurso dos depósitos judiciais.
Terrorismo - “A estupidez não tem ideologia”, afirma no título o editorial de 19 de julho, que aborda a derrubada do Boeing da Malaysia Airlines por separatistas ucraniano.
Contrapontos – Pelo quinto ano consecutivo, Zero Hora publicou na edição impressa dominical editoriais interativos, que são postados no site do jornal às quintas-feiras para que os leitores manifestem concordância ou discordância.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

" A Teologia da Selfie "

A teologia da selfie

 
Um desejo de eternidade
Por Jorge Henrique Mújica

A NASA criou, em 2014, um mosaico temático feito com 36.422 fotos de pessoas de mais de cem países, tiradas por elas próprias e enviadas através das redes sociais com a hashtag #GlobalSelfie. A participação massiva é mais um reflexo do fenômeno da autofotografia, ou “selfie”, que se tornou “a palavra do ano” em 2013 na opinião do prestigioso dicionário Oxford da língua inglesa. E a “selfie” é um fenômeno que, pelo visto, parece destinado a continuar indo bem além de 2013.

O que leva as pessoas a compartilhar tantas fotos delas mesmas tiradas por elas mesmas? Só em 2013, houve 1 milhão de publicações desse tipo de imagem por dia! O fenômeno não é apenas resultado da atual facilidade técnica para tirar fotos em qualquer lugar e a qualquer momento; também existe algo de psicológico nessa manifestação cultural: as pessoas se sentem, embora pareça uma redundância, protagonistas das próprias fotos, não apenas por serem fotografadas, mas por se fotografarem.

Essa dimensão do protagonismo quer testemunhar com imagens que “eu estive lá”, que “eu sou assim”, que “eu estive com Fulano”; e, com um pouco de sorte, conseguir, quem sabe, alguma fama efêmera, caso a imagem se torne viral.

O fenômeno selfie pode envolver também certos matizes patológicos. Em maio de 2014, no “Giro d’Italia”, o ciclista alemão Marcel Kittel caiu e um jovem se aproximou dele rapidamente; mas não era para ajudá-lo, e sim para tirar uma selfie com o atleta. Atitudes semelhantes se repetem com muitas pessoas no mundo todo e fazem parte do pano de fundo do curta-metragem “Aspirational”, da atriz Kirsten Dunst.

No filme, Kirsten critica a cultura da selfie e a desumanização das pessoas em tempos de Instagram. Vemos a atriz, no curta-metragem, esperando alguém diante de sua casa quando passam duas garotas que a reconhecem, se aproximam com seus smartphones na mão e, sem mais nem menos, começam a tirar selfies com ela. Terminada a “sessão fotográfica”, as jovens vão embora praticamente sem abrir a boca. “Não querem me perguntar nada?”, indaga Kirsten, enquanto uma das jovens se limita a perguntar à outra: “Quantos seguidores você acha que eu vou conseguir com esta foto?”.

“Aspirational” é uma caricatura, mas tem fundamento bastante real. Como não recordar o menino espanhol que se emocionou até chegar às lágrimas por ter tirado uma foto com o jogador argentino Lionel Messi? “O que foi que o Messi disse para você?”, perguntou um jornalista ao menino. “Nada”, foi a resposta. Ele queria a foto, não as palavras do craque.

As selfies não são algo novo. O mito grego de Narciso nos apresenta o rapaz que se apaixonou pela própria imagem refletida na água e, enquanto contemplava a sua beleza, caiu no rio e morreu afogado. Aquela “selfie mitológica”, aplicada às circunstâncias atuais, pode servir como convite para prestarmos mais atenção não somente a essa superexposição vaidosa, mas também à falta de autenticidade das imagens manipuladas para aparentar o que não somos.

Historicamente falando, a primeira selfie data de 1914 e a protagonista foi uma adolescente de 13 anos: a grã-duquesa Anastácia, da Rússia. No âmbito religioso, podemos citar o Santo Sudário e o manto da Virgem de Guadalupe, duas “selfies” de peculiaridade sobrenatural. E, indo ainda mais longe, a primeira de todas as selfies remonta ao próprio Deus e tem como fundamento teológico a Bíblia.

O capítulo primeiro do livro do Gênesis, em seus versículos 26 e 27, diz claramente que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Será que não podemos considerar a nós próprios como “selfies” de Deus? Neste sentido, cada selfie humana de hoje em dia é uma imagem que reflete algo de divino e que remete a Deus. Mas Deus é ainda mais original e tirou a mais perfeita de todas as selfies: Jesus Cristo, que, muito além de mera “imagem” de Deus, é Deus em pessoa feito carne.

As selfies, de certa forma, são expressões da capacidade criadora semeada por Deus no coração humano e materializada em imagens. Não são uma simples popularização da fotografia, mas expressões muitas vezes instintivas que nos revelam um pouco do anseio de eternidade que temos na alma. Cada foto é uma forma de dizer “eu existo”, “eu faço parte da história humana” e, ainda mais profundamente, “eu sou imagem e semelhança de Deus”.
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Fonte:  http://www.zenit.org/pt