Há quem costume esperar que o médico encerre sua angústia, mas esquece a gratidão com o tempo
Existe uma ambivalência curiosa na relação entre os leigos e seus médicos. Quando o paciente agenda a primeira consulta, tudo o que ele espera é que este pequeno gênio que atravessou seu caminho seja um legítimo representante de Deus na Terra, e que dessa fusão divina resulte o fim da angústia e a saúde de volta.
Quanto maior o susto, maior a gratidão inicial, que tende a se diluir na medida em que o tempo passa, e começa a crescer a convicção interior que, forte como ele sempre foi, a cura era inevitável. Portanto, o médico não tem de ficar se achando muito, porque, na cabeça do ex-paciente, a contribuição médica para o sucesso do seu caso mirrará numa proporção estimada em 20% ao ano. De onde esta cifra? Simples, depois do quinto ano, é normal que o Natal passe em branco, substituído pelo afeto dos agradecidos mais recentes.
Outra rotina: o reconhecimento do mérito profissional cai um tanto se o trabalho tiver sido pago. E não há cristão que não se divirta repetindo a piada antiga do “cura cobra, mata cobra”, e a que diz que “metade dos cirurgiões acha que é Deus, e a outra tem certeza”.
Como regra, os leigos adoram denunciar erro médico e tripudiar qualquer gesto ou declaração que sugira soberba, e os corneteiros mais animados são, naturalmente, os saudáveis.
Quando conheci o maestro, ele tinha 49 anos. Grande fumante, atravessara o país para operar um tumor do pulmão esquerdo, e vivendo um momento intenso de sua vida artística, com inúmeros projetos em andamento, estava apavorado com a ideia de morrer tão extemporaneamente. Houve lágrimas de desespero no abraço da noite anterior.
Foi operado numa tarde de fevereiro do insuportável verão de Porto Alegre
Quando a parte de cima do pulmão foi descolada da coluna onde estava aderida, o inesperado: restara uma placa de tumor na quarta vértebra torácica.
Uma das regras indefectíveis da cirurgia oncológica: não há chance de sobrevivência com uma ressecção incompleta. Diante do terrível achado, havia que ser agressivo.
Com o auxílio de um delicado formão (e acreditem é possível ser delicado com um formão!), a metade esquerda da vértebra foi removida, a medula ficou ali, pulsátil, numa operação de risco, incluindo a possibilidade de paralisia.
Um enxerto ósseo, em que se utilizou parte de uma das costelas, restabeleceu a estabilidade da coluna vertebral e a evolução foi excelente.
Nos anos que se seguiram, foram escasseando as visitas, então, esporadicamente, uma mensagem no aniversário da cirurgia e, por fim, anos de silêncio.
Um dia desses, recebi um vídeo com uma entrevista autobiográfica dele a uma subsidiária da Rede Globo, onde relatava a experiência sofrida com um câncer que o assustara muito, 15 anos atrás.
Acreditava que a cura, que atribuía a Deus, devia-se a dois fatores decisivos: o amor de sua mulher, que sempre o apoiou, e a sua vontade de viver, que fez com que ele buscasse todos os recursos da terapia alternativa, incluindo a babosa e o cogumelo do sol.
Quem trabalha com métodos científicos não tem paciência nem pretensão de competir com estes poderes superiores e milagrosos, mas custava ao menos citar que tinha sido operado, pelo amor de Deus?
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