CLÁUDIA LAITANO
No início deste ano, visitei pela primeira vez um país de maioria muçulmana – com a vantagem, não desprezível, de não ter precisado me preocupar em cobrir os cabelos.
No início deste ano, visitei pela primeira vez um país de maioria muçulmana – com a vantagem, não desprezível, de não ter precisado me preocupar em cobrir os cabelos.
Com um histórico de boas relações com o Ocidente e uma classe média globalizada, o Egito convive bem com cabeças femininas descobertas. Nas caóticas ruas do Cairo ou nos seus luxuosos shoppings centers, é possível encontrar meninas de cabelos longos e unhas vermelhas conferindo mensagens no celular bem ao lado de uma moça (senhora?) coberta de preto dos pés à cabeça. É essa convivência entre extremos culturais que imediatamente chama a atenção do turista de primeira viagem.
Em um primeiro momento, o hijab (conjunto de vestimentas preconizado pela doutrina islâmica) parece destoar dos anúncios de McDonald’s, Armani e Coca-Cola, mas com o tempo o visitante acaba assimilando essa pororoca cultural como parte do fascínio de um país que, acreditem-me, todos deveriam visitar pelo menos uma vez na vida – e não apenas pelas pirâmides.
Voltando aos véus e a outras coberturas compulsórias das mulheres. A primeira coisa que preciso dizer a respeito é que sou contra: no Cairo, em Jerusalém, no interior do Nordeste, nas escolas públicas da França ou em Veneza (onde fui obrigada a pedir um casaco emprestado para cobrir os ombros para poder entrar na Basílica de San Marco). Credos religiosos, é verdade, legislam sobre uma série de itens da vida cotidiana, mas figurino definitivamente não é um deles (ou não deveria ser), donde fica claro que esses acessórios foram sendo assimilados aos poucos, em diferentes religiões, não como dogma, mas como recurso de dominação cultural travestido de índice de pureza, modéstia ou contrição religiosa.
Mais do que um artifício para tolher a liberdade feminina, o véu que cobre a mulher sempre me pareceu uma confissão de fracasso civilizatório. Fracasso para controlar os instintos, ou seja, para pagar o preço que a civilização cobra de todos que vivem em sociedade. Sim, você pode olhar para mulheres, desejá-las, ser atraído por elas. Mas não pode tocá-las sem o consentimento delas – nem pode impedir que elas despertem o desejo de outros homens ou que desejem também. No limite, o véu que cobre a mulher dos pés à cabeça poupa o homem do esforço de tornar-se civilizado e de aprender a conter o próprio desejo.
Aqui, neste lado do mundo, temos assistido nos últimos dias a um outro tipo de confissão pública de fracasso civilizatório – não velado, como nos países fundamentalistas, mas explícito. Os casos de assédio sexual em ônibus e metrôs costumavam ser apenas uma nota de pé de página no desastroso conjunto da obra do transporte público brasileiro. Com a descoberta de um grupo no Facebook autointitulado de “Encoxadores”, começou a vir à tona uma rotina de infrações cotidianas que na grande maioria das vezes não resultam em queixas ou punição. O anonimato do ônibus lotado parece autorizar o pai de família a fazer com as outras mulheres o que ele não gostaria que fizessem com a sua. A noção de coletividade não existe, o direito do outro é apenas uma abstração: só existe o aqui e agora, entre esta e a próxima estação.
Muitos homens devem confundir esse tipo de agressão com alguma sutil técnica de sedução ou apenas se convencem de que seu desejo é uma espécie de lei magna que se sobrepõe a todas as outras. Em todos os casos, onde a lei é rígida demais ou onde a liberdade não tem limites, perdemos todos – e não apenas as mulheres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário