quinta-feira, 30 de maio de 2013

" A visão de negócios do banqueiro dos pobres "


Mercado Ético
Na ESPM, Yunus lança primeiro centro de negócios sociais da América Latina. / Foto: João Lebrão
Ontem (27), o auditório da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo ficou pequeno para receber a grande platéia que queria ouvir Muhammad Yunus, economista vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 2006 e uma espécie de guru do empreendedorismo social. Conhecido como o banqueiro dos pobres, o economista bengalês esteve na cidade para o lançamento do Yunus ESPM Social Business Centre, uma iniciativa tocada em parceria com a tradicional faculdade com o objetivo de fomentar negócios sociais no Brasil. Para tanto, o centro atuará sob três pilares: cursos de capacitação, pesquisa e incubação de empresas. “Queremos que essa iniciativa seja um modelo para toda a América Latina. Vejo muitas possibilidades para resolver os problemas que estão a nossa volta”, conta Yunus.

O bengalês é o criador do Grameen Bank, um banco especializado em microcrédito. Fundado em 1976, o objetivo da instituição é acabar com a pobreza do mundo. O projeto teve início quando Yunus emprestou 27 dólares para 42 mulheres comprarem matéria-prima e, assim, confeccionarem seus artesanatos. O empréstimo foi pago e a experiência deu origem ao negócio social. “As vezes nos vemos pequenos demais diante de grandes problemas. Mas não importa o quão grande esses problemas sejam. Tente colocá-los em nível individual. Se você conseguir ajudar a uma pessoa, poderá replicar a solução em maior escala, atingindo dezenas, centenas, milhares e milhões”, explica ele. “Foi assim que fiz. Comecei a emprestar pequenas quantias de dinheiro em uma vila, de modo que as pessoas pudessem escapar dos tubarões do empréstimo. Hoje temos 8 milhões de clientes no Grameen Bank, sendo que 97% deles são vencedores, pois conseguem gerar renda e pagar seus empréstimos”, orgulha-se.

Para Yunus, os problemas sociais são oportunidades. Segundo ele, toda vez que procura resolver o problema de alguém, acaba criando um novo negócio social. “Fizemos um hospital para operar cataratas. Hoje, com capacidade para 10 mil intervenções por ano, cada operação custa apenas 1 dólar. Mesmo assim, o investimento se pagou em quatro anos”, exemplifica.

A importância de se ter uma operação economicamente sustentável foi bastante enfatizada pelo banqueiro. Ao contrário de iniciativas filantrópicas, onde pessoas de posse colocam dinheiro sem que aquilo necessariamente apresente algum retorno, um negócio social é um investimento com retorno. Obviamente a empresa não deve ter como principal foco a geração de dinheiro, mas sim a solução dos problemas das pessoas. “Não queremos fazer dinheiro, mas, sim, fazer as coisas acontecerem. Quero fazer negócios que sejam bons para os outros. Espero que esse centro fomente muitas idéias com esse propósito”, enfatiza Yunus, que completa: “Isso não quer dizer que o idealizador de um negócio social deva passar fome. Não é assim. A iniciativa não deve gerar dividendos financeiros, mas deve sim distribuir salários no mesmo nível dos praticados no mercado.”
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Fonte: Mercado Ético

" A era das máquinas inteligentes "


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É possível que o trabalho intelectual seja automatizado em breve

As máquinas inteligentes estão evoluindo em uma velocidade vertiginosa. A lei de Moore – que afirma que a capacidade computacional disponível para dado preço dobra a cada 18 meses – continua de pé. Essa capacidade está saltando dos computadores de mesa para os bolsos das pessoas. Mais de 1,1 bilhão de pessoas possuem smartphones e tablets e os fabricantes estão colocando sensores inteligentes em todo tipo de produto. Máquinas inteligentes também alcançaram uma nova fronteira social: trabalhadores do conhecimento agora estão no olho do furacão. Bancários e agentes de viagem já foram relegados ao arquivo morto aos milhares; os próximos serão os professores, pesquisadores e escritores. A questão é se a criação compensará a destruição.

Dois acadêmicos da Sloan Business School do MIT, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, adotaram um ponto de vista surpreendente: o que não é surpresa, uma vez que os teóricos da administração gostam de estar do lado dos vencedores e devido ao fato de que o MIT é uma das fortalezas do tecno-utopismo. Em “Race Against the Machine”, lançado em 2011, eles antecipam que muitos trabalhadores intelectuais estão prestes a enfrentar dificuldades. Há muitas chances de que a tecnologia venha a destruir mais empregos do que criá-los. A probabilidade de que a tecnologia venha a acirrar as desigualdades é ainda maior. A tecnologia está criando ainda mais mercados nos quais inovadores, investidores e consumidores – e não os trabalhadores – ficam com as maiores fatias dos ganhos. A tese de Brynjolfsson-McAfee explica um dos aspectos mais intrigantes da economia moderna: porque tanta criatividade tecnológica pode coexistir com salários em estagnação e desemprego em massa.

Um novo estudo do McKinsey Global Institute (MGI), “Tecnologias disruptivas: Avanços que transformarão a vida, os negócios e a economia global”, investiga essa questão e reúne muitos exemplos de como a internet está revolucionando o trabalho intelectual. Escritórios de advocacia estão usando computadores para pesquisar enormes volumes de documentos jurídicos e precedentes. Empresas do ramo financeiro estão usando computadores para monitorar fluxos de notícias e fazer apostas financeiras com base nesse fluxo. Hospitais estão usando robôs para realizar cirurgias de alta precisão.
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* Texto traduzido e adaptado da Economist por Eduardo Sá
Fontes:The Economist - The age of smart machines e http://opiniaoenoticia.com.br/economia/a-era-das-maquinas-inteligentes/

" O resto é silêncio "

Afegão Khaled Hosseini, autor do sucesso “O Caçador de Pipas”, lança novo romance

Best-seller planetário com seu O Caçador de Pipas, gerando inclusive o que na época foi uma grande “onda afegã” nas prateleiras, o médico e escritor Khaled Hosseini está lançando seu terceiro romance.

Menos linear do que os anteriores e composto por uma intrincada estrutura de saltos cronológicos, O Silêncio das Montanhas parece o livro que Hosseini resolveu escrever para provar-se um escritor com mais recursos do que a habilidade de contar histórias.

O Silêncio das Montanhas começa com a narração de uma história folclórica em que um Dev, monstro mitológico afegão, força uma dolorosa separação familiar. Esse será, com variações, o refrão que se repetirá ao longo do livro, orquestrado em nove capítulos que vão e vêm no tempo, de 1952 a 2012, e em que várias e trágicas separações familiares serão ditadas por entidades menos sobrenaturais mas não menos poderosas: o inverno rigoroso, a culpa, a guerra, o Talibã, a fraqueza humana. No início e no fim de uma trama que alterna narradores e pontos de vista, está a tragédia familiar de dois irmãos, o jovem Abdullah e sua irmã Pari (“fada”, em persa), vendida pelo pai na infância a um casal rico e sem filhos.

Já em sua estreia, o sucesso O Caçador de Pipas (2002), Hosseini provava ser um novelista interessante, mas punha o livro a perder por ser um romancista desastrado. O Caçador... era claramente segmentado em três histórias – duas delas boas – cujos pontos de união eram de uma incômoda inverossimilhança melodramática. Em O Silêncio das Montanhas, Hosseini sai-se melhor em boa parte do texto – favorecido pela estrutura fragmentada que transforma o romance em contos passados em diferentes circunstâncias de tempo e espaço mas interligados pelo retorno eventual de personagens mostrados em capítulos anteriores.

A estrutura é similar à que a americana Jennifer Egan utilizou em seu recente (e elogiado) A Visita Cruel do Tempo, mas a comparação desnuda algumas fraquezas técnicas da obra de Hosseini: o uso de golpes baixos melodramáticos, uma prosa pausterizada que abdica da tensão em favor do sentimentalismo e personagens clichês como a artista volúvel e torturada (neste livro há duas) ou descrições recorrentes de imagética batida (mais de um personagem tem o nariz adunco comparado a um bico de pássaro, por exemplo).

Mas Hosseini é um autor com leitores. E, para estes, sua assinatura deve bastar, ainda que na capa de um livro tão apegado ao melodrama que por vezes derrapa no excesso de açúcar.

Trecho:

Seus dias em Shadbag estavam contados, como os de Shuja. Agora ele sabia disso. Não havia mais nada para ele aqui. Não havia mais um lar. Ia esperar até o inverno passar, até o degelo da primavera, levantaria numa manhã antes do amanhecer e sairia pela porta. Escolheria uma direção e começaria a andar. Continuaria andando até estar o mais longe possível de Shadbag, para onde o levassem seus pés. E se um dia, caminhando por um vasto campo aberto, se sentisse tomado pelo desespero, iria parar de andar, fechar os olhos e pensar na pena de falcão que Pari achara no deserto (...). Teria uma sensação de assombro e de esperança também, que tais coisas acontecessem. E mesmo sem se deixar enganar por essa sensação, reuniria suas forças, abriria os olhos e continuaria andando.

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carlos.moreira@zerohora.com.br
Reportagem por CARLOS ANDRÉ MOREIRA
Fonte: ZH on line, 29/05/2013
 

quarta-feira, 29 de maio de 2013

" A arte da lentidão "

José Tolentino Mendonça*

Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados.

À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num open space sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados.

Deveríamos, contudo, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Com razão, num magnífico texto intitulado “A lentidão”, Milan Kundera escreve: «Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.» E explica, em seguida, que o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à do esquecimento. Quer dizer: até a impressão de domínio das várias frentes, até esta empolgante sensação de omnipotência que a pressa nos dá é fictícia. A pressa condena-nos ao esquecimento.

Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno.

Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes de Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.

Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.
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* Teólogo português. Escritor. Poeta.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

" O Terror da Ambivalência " < por Luiz Felipe Pondé * >



A janta e a normalidade do cotidiano sempre valeram mais do que qualquer vida humana

Você esconderia judeus em sua casa durante a França ocupada pelos nazistas? Não, não precisa responder em voz alta.

Melhor assim, para não passarmos a vergonha de ouvirmos nossas mentiras quando na realidade a janta, o bom emprego e a normalidade do cotidiano sempre valeram mais do que qualquer vida humana. Passado o terror, todos viramos corajosos e éticos.

Anos atrás, enquanto eu esperava um trem na estação de Lille, na França, para voltar para Paris, onde morava na época --ainda bem que tinha minha família comigo porque Paris é uma cidade hostil--, li a resenha de um livro inesquecível na revista "Nouvel Observateur".

Nunca li esse livro, nem lembro seu nome, mas a resenha era promissora. Entrevistas com filhos e filhas de pessoas que esconderam judeus em casa durante a Segunda Guerra davam depoimentos de como se sentiram quando crianças diante dos atos de coragem de seus pais e suas mães.

A verdade é que essas crianças detestavam o ato de bravura de seus pais. Sentiam (com razão?) que não eram amados pelos pais, que preferiam pôr em risco a vida deles a protegê-los, recusando-se a obedecer a ordem: quem salvar judeus morre com eles.

Podemos "desculpar" as crianças dizendo que eram crianças. Nem tanto. Adolescentes também sentiam o mesmo abandono por parte dos pais corajosos. Cônjuges idem.

Está justificada a covardia em nome do amor familiar? Nem tanto, mas deve-se escolher um estranho em detrimento de um filho assustado?

Tampouco dizer que os covardes também seriam vítimas vale, porque o que caracteriza a coragem é exatamente não se deixar fazer de vítima --coisa hoje na moda, isto é, se fazer de vítima.

Não foi muito diferente aqui no Brasil durante a ditadura, guardando-se, claro, as diferenças de dimensão do massacre.

No entanto, não me interessa hoje essa questão da falsa ética quando o risco já passou --a moral de bravatas. Mas sim a ambivalência insuportável que uma situação como essa desvela, na sua forma mais aguda.

Ou meu pai me ama ou ama o judeu escondido em minha casa, ou, ele me ama, mas não consegue dormir com a ideia de que não salvou alguém que considerava vítima de uma injustiça, e por isso me põe em risco. Eis a razão mais comum dada por esses pais, quando indagados, da razão de pôr em risco sua vida e família: "Não conseguia fazer diferente". Mas a ambivalência da vida não se resume a casos agudos como esses.

Freud descreveu os sentimentos ambivalentes da criança para com o pai no complexo de Édipo: amo meu pai, mas quero também me livrar dele, e também sinto culpa por sentir vontade de me livrar dele.

Independente de crer ou não em Freud plenamente (sou bastante freudiano no modo de ver o mundo, e Freud foi o primeiro objeto de estudo sistemático em minha vida), a ambivalência aí descrita serve como matriz para o resto da vida.

Os pais amam os filhos (nem sempre), mas ao mesmo tempo ter filhos limita a vida num tanto de coisas (e hoje em dia muita mulher deixa para ser mãe aos 40 por conta deste medo, o que é péssimo porque a mulher biologicamente deve ser mãe antes dos 35). Apesar dos gastos intermináveis, no horizonte jaz o possível abandono na velhice por parte destes mesmos filhos "tão" amados.

Mas, ao mesmo tempo, não ter filhos pode ser uma chance enorme para você envelhecer como um adulto infantil que tem toda sua vida ao redor de suas pequenas misérias narcísicas.

Casamento é a melhor forma de deixar de querer transar com alguém devido ao esmagamento do desejo pela lista infinita de obrigações que assola homens e mulheres, dissolvendo a libido nos cálculos da previdência privada.

Mas, ao mesmo tempo, a liberdade deliciosa de transar com quem quiser (ficar solteiro), com o tempo, facilmente fará de você uma paquita velha ridícula sozinha que confunde pagar por sexo com um homem mais jovem com emancipação feminina. E, no caso do homem, o tiozão babão espreita a porta.

E, também, terá razão quem disser que mesmo casando você poderá vir a ser uma paquita velha ou um tiozão babão.

Quantas ambivalências espera você nessa semana?
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Folha on line, 27/05/2013

" Da Compaixão e da Gentileza " < por Letícia Wierzchowski >


Na palestra inaugural do Fronteiras do Pensamento, a historiadora Karen Armstrong apontou a compaixão como a “regra de ouro” presente em todas as religiões; o princípio básico da espiritualidade humana seria a máxima: “Nunca trate ninguém como você não gostaria de ser tratado”.


Foi uma fala simples e espontânea, carregada de sentimento e de verdade. Como uma chuva num solo árido, que alívio foi ver a Sra. Armstrong desfiando a verdadeira essência da humanidade – essência tão tristemente escanteada da nossa vida cotidiana.

Eu não sou religiosa, não costumo frequentar nenhum culto e nenhum templo me aguarda. Mas acredito em Deus, acredito numa energia maior, e toda vez que posso exercer a compaixão – e a gentileza, um de seus subprodutos mais cotidianos – sinto-me afinada com essa energia.

Deus existe? Quem sou eu para responder. Mas existimos, você e eu, existimos nós, homens e mulheres – cidadãos, vizinhos, colegas de coletivo, transeuntes –, existimos e nos organizamos socialmente, compartilhando espaços, realidades e circunstâncias históricas.

No entanto, basta dar um único passeio por Porto Alegre, por exemplo, e o que salta aos olhos é a maneira como a compaixão e a gentileza são hoje produtos de luxo. Cidadãos que somos de uma mesma cidade, a maioria de nós não hesita em avançar com o carro sobre as faixas de segurança, e o que vemos por aí são pedestres acossados nas esquinas. Bons dias e boas tardes se apagaram do uso cotidiano – se somos todos amigos no Facebook, a regra não vale para as ruas.


Dia desses, uma senhora já bem idosa foi de uma grosseria ímpar no supermercado ao trancar um corredor com seu carrinho, e deu um pequeno espetáculo lastimável quando solicitada a dar a passagem. Voltei para casa com as compras feitas, mas desanimada.

O princípio básico do convívio social se esfalfa por aí a todo instante. Melhor do que rezar um Pai Nosso antes de dormir é dizer um bom dia na parada de ônibus, é dar um sorriso para a caixa do supermercado, é chegar ao trabalho de bom humor. Construindo realidades mais agradáveis, chegaríamos mais perto daquilo que sonhamos.


Espiem este lindo comercial da Coca-Cola a partir de câmeras ocultas: como a vida pode ser, e às vezes é: http://youtu.be/5L8dNW2CiO4

domingo, 26 de maio de 2013

" Sinais do Espírito no mundo " < por Leonardo Boff * >


Desenvolveu-se, já há bastante tempo, toda uma teologia dos “sinais dos tempos” como forma de percepção de um desígnio divino para a história humana. Esse procedimento é arriscado, pois para conhecer os sinais precisa-se primeiramente conhecer os tempos. E estes nos dias atuais são complexos, quando não contraditórios. O que é sinal do Espírito para alguns pode ser um antissinal para outros.

Mas há alguns eventos que se impõem à consideração de todos, pois possuem uma evidência em si mesmos. Vamos nos referir a alguns pela densidade de sentido que contém.

O primeiro é sem dúvida o processo de planetização. Esta, mais que um fato econômico e político inegável, representa um fenômeno histórico-antropológico: a humanidade se descobre como espécie, habitando a mesma e única Casa, o planeta Terra, com um destino comum. Ele antecipa o que já Pierre Teilhard de Chardin dizia em 1933 a partir de seu exílio eclesiástico na China: estamos na antessala de uma nova fase da humanidade: a fase da noosfera, vale dizer, da convergência das mentes e dos corações constituindo uma única história junto com a história da Terra. O Espírito que é sempre de unidade, de reconciliação e de convergência na diversidade.

Outro sinal relevante é constituído pelos Fóruns Sociais Mundiais que a partir do ano 2000 começaram a se realizar a partir de Porto Alegre, RS. Pela primeira vez na história moderna, os pobres do mundo inteiro, fazendo contraponto às reuniões dos ricos na cidade suíça de Davos, conseguiram acumular tanta força e capacidade de articulação que acabaram, aos milhares, se encontrando para apresentar suas experiência de resistência e de libertação e alimentar um sonho coletivo de que um outro mundo é possível e necessário. Aí se notam os brotos do novo paradigma de humanidade, capaz de organizar de forma diferente a produção, o consumo, a preservação da natureza e a inclusão de todos num projeto coletivo que garanta um futuro de vida.

A Primavera Árabe surge também como um sinal do Espírito no mundo. Ela incendiou todo o Norte da Africa e se realizou sob o signo da busca de liberdade, de respeito dos direitos humanos e na integração das mulheres, tidas como iguais, nos processos sociais. Ditaduras foram derrubadas, democracias estão sendo ensaiadas, o fator religioso é mais e mais valorizado na montagem da sociedade mas deixando de lado aspectos fundamentalistas. Tais fatos históricos devem ser interpretados, para além de sua leitura secular e sociopolítica, como emergências do Espírito de liberdade e de criatividade.

Quem poderia negar que numa leitura bíblico-teológica, a crise de 2008 que afetou principalmente o centro do poder econômico-financeiro do mundo, lá onde estão os grandes conglomerados econômicos que vivem da especulação à custa da desestabilização de outros países e do desespero de suas populações, não seja também um sinal do Espírito Santo? Este é um sinal de advertência de que a perversidade tem limites e que sobre eles poderá vir um juízo severo de Deus: a sua completa derrocada.

Em contrapartida ao sinal negativo anterior, está o sinal positivo dos movimentos de vítimas que se organizaram na Europa como os “indignados” na Espanha e na Inglaterra e os “occupies Wall Street” nos EUA. Eles revelam uma energia de protesto e de busca de novas formas de democracia e de organizar a produção, cuja fonte derradeira, na leitura da fé, se encontra no Espírito.

Outro sinal do Espírito no mundo ganhou forma na crescente consciência ecológica de um número cada vez maior de pessoas no mundo inteiro. Os fatos não podem ser negados: tocamos nos limites da Terra, os ecossistemas mais e mais estão se exaurindo, a energia fóssil, o motor secreto de todo nosso processo industrialista, tem os dias contados e o aquecimento global que não para de aumentar e que, dentro de algumas décadas, pode ameaçar toda a biodiversidade.

Somos os principais responsáveis por este caos ecológico. Faz-se urgente um outro paradigma de civilização que vai na linha das visões já testadas na humanidade como o ’bem-viver” e o “bem-conviver” (sumak kawsay) dos povos andinos, o “índice de felicidade bruta” do Butão, o ecossocialismo, a economia solidária e biocentrada, uma bem entendida economia verde ou projetos cuja centralidade é posta na vida, na humanidade e na Terra viva.

Por fim, um grande sinal do Espírito no mundo é o surgimento do movimento feminista e do ecofeminismo. As mulheres não apenas denunciaram a dominação secular do homem sobre a mulher (questão de gênero) mas especialmente toda a cultura patriarcal. A irrupção das mulheres em todos os campos da atividade humana, no mundo do trabalho, nos centros de saber, no campo da política e das artes, mas principalmente com uma vigorosa reflexão a partir da condição feminina sobre toda a realidade, deve ser vista como uma irrupção poderosa do Espírito na história.

A vida está ameaçada no planeta. A mulher é conatural à vida, pois a gera e cuida dela durante todo o tempo. O século 21 será, creio eu, o século das mulheres, daquelas que, junto com os homens, assumirão mais e mais responsabilidades coletivas. Será por elas que os valores que elas mais testemunham como o cuidado, a cooperação, a solidariedade, a compaixão e o amor incondicional estarão na base do novo ensaio civilizatório planetário.
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* Teólogo. Filósofo. Educador. Ecologista. Escritor.

" Proust e o Facebook,< por Cláudia Laitano * >


Como muitos habitantes deste século 21, Proust vivia pendurado no telefone. O aparelho chegou a Paris no final do século 19, e o autor de Em Busca do Tempo Perdido foi provavelmente o primeiro grande escritor a celebrar as qualidades transcendentais da novidade: “A admirável feitiçaria na qual bastam alguns instantes para que surja perto de nós, invisível mas presente, o ser com quem queríamos falar, e que, sentado em sua mesa, na cidade que habita (minha vó estava em Paris), sob um céu diferente do nosso, num tempo que não é exatamente o mesmo, no meio de circunstâncias e de preocupações que ignoramos e que esse ser irá nos contar, esse ser se vê de repente transportado a centenas de léguas dali (ele e todo o ambiente em que está mergulhado), perto da nossa orelha, no momento em que nosso capricho ordenar”.

Proust (1871-1922) escreveu sobre outros assuntos “quentes” , como o Caso Dreyfuss e o impressionismo, sem medo de contaminar sua obra com a tinta fresca dos acontecimentos. Em se tratando de um observador inigualável dos costumes da sua época, somos tentados a imaginar quais seriam suas impressões sobre temas como o existencialismo, os Beatles, a aprovação do casamento gay na França... Mas pouco do que veio depois parece tão talhado para um exame proustiano (minucioso, irônico, profundo, mundano) quanto as redes sociais.

A passagem do tempo, a memória e a complexa engenharia das relações sociais são temas que Proust explora à exaustão nos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido. Diante da gigantesca oferta de madeleines do Facebook, Proust provavelmente teria assunto para pelo menos outros sete livros. Imagine um autor capaz de escrever 10 páginas a respeito de uma única troca de olhares descrevendo um ambiente em que convivem companheiros de infância e amigos recentes, empregados e seus patrões, amantes do passado e futuros pretendentes – todos interagindo em um improvável tempo presente e submetidos a regras de convívio ainda não totalmente estabelecidas.

Esse teatro virtual em que não apenas as celebridades têm uma identidade pública e outra privada, mas todas as pessoas – e não apenas uma única identidade privada, mas várias: o filho, o amigo, o conhecido, o colega de trabalho, o empregado... – teria feito vibrar o escritor que melhor retratou o complexo jogo de aparências que movia a sociedade francesa até a I Guerra decretar que nada mais seria como antes.

Ler as observações de Proust sobre o telefone nos convida a imaginar quem são os escritores que estão conseguindo retratar as redes sociais e seu impacto na vida cotidiana, revelando de que forma essa “admirável feitiçaria” tem modificado nossa percepção do mundo e do nosso lugar no tempo e no espaço.
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* Escritora. Cronista da ZH

" Ética a partir do aquecimento global "

 

Leonardo Boff*
Em alguns lugares da Terra se rompeu, há dias, a barreira dos 400 ppm de CO2, o que pode acarretar desastres sócio-ambientais de grande magnitude. Se nada de consistente e coletivamente fizermos, podemos conhecer dias tenebrosos. Não é que não podemos fazer mais nada. Se não podemos frear a roda, podemos no entanto diminuir-lhe a velocidade. Podemos e devemos nos adaptar às mudanças e nos organizar para minorar os efeitos prejudiciais. Agora se trata de viver radicalmente os quatro erres: reduzir, reutilizar, reciclar e rearborizar.

Precisamos de uma orientação ética que nos ajude alinhar nossas práticas para a superação da crise atual. Nesse quadro dramático, como fundar um discurso ético minimamente consistente que valha para todos?

Até agora as éticas e as morais se baseavam nas culturas regionais. Hoje na fase planetária da espécie humana precisamos refundar a ética a partir de algo que seja comum a todos e que todos a possam entender e realizar.É o que propunha Paulo Freire com sua Etica Universal do Ser humano que nós acrescentaríamos do ser humano e da Mãe Terra.

Olhando para trás, identificamos duas fontes que orientaram e ainda orientam ética e moralmente as sociedades até os dias de hoje: as religiões e a razão.

As religiões continuam sendo os nichos de valor privilegiados para a maioria da humanidade. Elas nascem de um encontro com o Supremo Valor, com a Última Realidade. Desta experiência nascem os valores de veneração, respeito, amor, solidariedade, compaixão e perdão, fundamentais para a preservação da vida. Muitos pensadores reconhecem que a religião mais que a economia e a política é a força central que mobiliza as pessoas e as leva até a entregar a própria vida (Huntington). Outros chegam até a propor as religiões como a base mais realista e eficaz para se construir “uma ética global para a política e a economia mundias”(Küng). Para isso as religiões devem dialogar entre si. No diálogo acentuar mais os pontos em comum do que os pontos de diferenciação. Com isso pode se inaugurar a paz entre as religiões. Esta paz não se basta a si mesma mas deve animar a paz entre todos os povos e a paz com a natueza e uma paz perene com a Mãe Terra.

A razão crítica, desde que irrompeu, quase simultaneamente em todas as culturas mundiais, no século 6ª a. C. no assim chamado tempo do eixo(Jaspers), tentou estatuir códigos éticos universalmente válidos, baseados fundamentalmente nas virtudes, cuja centralidade ocupava a justiça. Mas afirma também a liberdade, a verdade, o amor e o respeito ao outro.

A fundamentação racional da ética e da moral – ética autônoma – representou um esforço admirável do pensamento humano, desde os mestres gregos Sócrates, Platão, Aristóteles, passando por Immanuel Kant até os modernos Jürgen Habermas, Enrique Dussel e entre nós Henrique de Lima Vaz e Manfredo Oliveira entre outros de nossa cultura.

Entretanto o nível de convencimento desta ética racional foi parco e restrito aos ambientes ilustrados. Por isso com limitada incidência no cotidiano das populações. Mesmo assim está se impondo a justiça ecológica: tratar de forma adequada os processos naturais para que possam ser sustentáveis, vale dizer, se manter, se reproduzir e melhorar.

Esses dois paradigmas não ficam invalidados pela crise atual, mas precisam ser enriquecidos se quisermos estar à altura das desafios que nos vêm da realidade hoje profundamente modificada.

Faça-se urgente uma ética do cuidado e da responsabilidade solidária. Para instaurar este tipo de ética precisamos descer descer àquela instância na qual se formam continuamente os valores, conteúdo principal da ética. A ética, para ganhar um mínimo de consenso, deve brotar da base comum e última da existência humana. Esta base não reside na razão, como sempre pretendeu o Ocidente. A razão – e isso é reconhecido pela própria filosofia – não é nem primeiro nem o último momento da existência. Por isso não explica tudo nem abarca tudo. Ela se abre para baixo de onde emerge, de algo mais elementar e ancestral: a afetividade e o sentimento profundo. Irrompe para cima, para o espírito, que é o momento em que a consciência se sente parte de um todo e que culmina na contemplação e na espiritualidade. Portanto, a experiência de base não é “penso, logo existo”, mas “sinto, logo existo”. Na raiz de tudo não está a razão (“logos”), mas a paixão (“pathos”) que se expressa pela sensibilidade e pelo afeto.

Daí o esforço atual de resgatar a razão sensível e cordial (Meffesoli,Cortina,Duarte, Muniz Sodré). Por este tipo de razão captamos o caráter precioso dos seres, aquilo que os torna dignos de serem apetecíveis. É a partir do coração e não tanto da cabeça que vivenciamos os valores. E é por valores que nos movemos e somos. Em último termo, está o amor que é a força maior do universo e o nome próprio de Deus. Essa ética nos pode engajar em práticas para enfrentar o aquecimento global. O cuidado é uma expressão do amor, amor que protege, confere descanso, cura feridas passadas e evita futuras.

Mas temos que ser realistas: a paixão é habitada por um “demônio” que pode ser destruidor. É um caudal fantástico de energia que, como águas de um rio, precisa de margens, de limites e da justa medida. Caso contrário irrompe avassaladora. É aqui que entra a função insubstituível da razão. É próprio da razão ver claro e ordenar, disciplinar e definir a direção da paixão.

Eis que surge uma dialética dramática entre paixão e razão. Se a razão reprimir a paixão, triunfa a rigidez e a tirania da ordem. Se a paixão dispensar a razão, vigora o delírio das pulsões do puro defrute das coisas. Mas, se vigorar a justa medida e a paixão se servir da razão para um auto-desenvolvimento regrado, então pode surgir uma consciência ética que nos torna responsáveis face ao caos ecológico e ao aquecimento global.

Por ai há caminho a ser percorrido. Para um novo tempo, uma nova ética. E esta nova ética de cunho universal e salvador é o cuidado essencial para com tudo o que existe e vive que está atualmente ameaçado pela voracidade ilimitada humana. Como o cuidado é da essência humana e por isso se encontra em cada pessoa e em todo o ser vivo, ele pode ser acordado e ser transformado num atitude consciente e permanente. Desta forma nos fará ativos face ao aquecimento global, impedindo que ameace nossa existência nesta planeta, tão pequeno, tão belo e tão radiate de vida em todas as suas formas.
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* Teólogo. Filósofo. Educador. Escritor.
Ver meu livro Proteger a Terra- cuidar da vida: como evitar o fim do mundo, Record, Rio de Janeiro 2010.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/05/25/etica-a-partir-do-aquecimento-global/

" `A prova de influências "


Martha Medeiros*
O medo nasce da história que contamos a nós mesmos. Descobri isso quando viajei sozinha pela primeira vez, aos 24 anos. Idade semelhante à da protagonista do livro que estou lendo, sendo que no caso dela a aventura foi bem mais radical que a minha: se eu mochilei de trem pela Europa, ela mochilou a pé por uma trilha numa região montanhosa dos Estados Unidos. Andou mais de 1.700km em meio a uma natureza selvagem, sem nenhuma experiência e emocionalmente em frangalhos. É essa a história contada em Livre, de Cheryl Strayed.

Peregrinar é busca. De si mesmo, naturalmente, mas podemos encontrar também novos conceitos para a vida. É onde o medo às vezes entra para atrapalhar. Antes de sair de casa pela primeira vez, eu não havia criado a minha própria história sobre o medo. Vivia protegida pela família, pelo conforto, pela estrada previamente pavimentada e sinalizada por meus pais – o medo que eu porventura sentisse havia sido herdado deles. Fazia parte da história de vida deles. Eu ainda não tinha a minha.

Só quando comecei a dar os primeiros passos sem retaguarda e sem companhia é que fui criando uma história mais autêntica para o meu medo. Decidi que ele não seria um personagem assustador, com capacidade de me paralisar. Meu medo, diferente do medo de outras pessoas, não me inibiria. Seria sutil. Ele apenas evitaria que a soberba tomasse conta: prepotentes potencializam riscos. Mas eu não permitiria que o medo me tornasse covarde. Na história que criei sobre o meu medo, não dei a ele tanto poder.


Sabemos que o medo tem uma boa assessoria de imprensa. Abra o jornal, assista aos noticiários de tevê, ouça o que dizem por aí: um prédio mal construído pode cair sobre sua cabeça, um maluco pode manter sua filha em cativeiro por 10 anos, você pode ser assaltado ao chegar ao trabalho às oito da manhã, o ônibus em que você viaja pode cair de um viaduto, o leite que você toma pode estar contaminado. Sem falar nas aflições emocionais: o medo de ser traído, deixado, de viver sem amor.

No entanto, nem o Jornal Nacional, nem Zero Hora, nem a internet, nada deveria pautar nosso medo, nem mesmo a experiência dos amigos. Informação nos prepara, mas não fecha caminhos. Eles continuam abertos para aqueles que contam para si mesmo outra história, à prova de influências. Para construir essa história, é preciso se escutar, estar conectado com os seus sentimentos reais, e não com os estimulados em escala industrial. Se você disser para si mesmo que está disposto a abraçar o que vida oferece de bom e de ruim, o temor diminui. Em algum momento torna-se necessário sair da estrada pavimentada e se aventurar numa rota vicinal menos segura, só para lembrar do que é mesmo que sentimos medo, e por que. E voltar com a resposta que nos dará a bravura necessária para seguir adiante: teremos descoberto que o medo não passa de uma desculpa esfarrapada para ficar no mesmo lugar.
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* Escritora. Cronista da ZH

" Os amores de Isabel Allende "

 

Escritora de grandes romances, a chilena Isabel Allende, 71 anos, surpreende em seu livro mais recente, lançado no país pela Editora Bertrand Brasil. No lugar dos narradores inventivos, como Eva Luna, a poderosa contadora de histórias, ou as múltiplas vozes que relatam a saga de uma família em A Casa dos Espíritos, Isabel preferiu assumir-se como a própria persona que fala ao longo do livro. A textos selecionados por ela própria, retirados de suas obras anteriores, a escritora une um relato bastante pessoal sobre a sua vida, o relacionamento com o marido, a velhice, a literatura e o tempo.

Assim é Amor, uma antologia que reúne as melhores cenas amorosas produzidas pela escritora em seus romances e contos. Na introdução, Isabel se expõe, fazendo um desabafo honesto e emocionante sobre pontos importantes de sua vida, como a infância, a adolescência e o papel da sexualidade nestes períodos. Um dos momentos marcantes do texto é quando Isabel, aos 33 anos, admite ter descoberto a sexualidade.

No livro, ela reitera um tema recorrente: a importância da escrita como instrumento libertador, capaz de fazê-la viver todas as aventuras que, na vida cotidiana e real, seriam impossíveis. Ainda nesta introdução autobiográfica, a autora aborda temas como a infidelidade, a vida que

                      Leia trechos da obra

“Neste momento das nossas vidas, Willie e eu estamos num desses umbrais, o da maturidade, quando quase tudo se deteriora: o corpo, a capacidade mental, a energia e a sexualidade. Que diabo nos aconteceu? Isso não nos ocorreu paulatinamente, nos veio em cima de repente, como um tsunami. Certa manhã nos vimos despidos no espelho grande do banheiro e ambos nos sobressaltamos. Quem eram aqueles velhinhos intrusos em nosso banheiro?”

“Em minha idade respeitável, na qual me dão desconto no cinema e no ônibus, tenho o mesmo interesse de sempre pelo erotismo. Minha mãe, que completou noventa, diz que isso nunca acaba, mas é melhor não espalhar, porque o resultado é chocante: supõe-se que os velhos são assexuados, como as amebas. Imagino que se estivesse sozinha não pensaria muito nisso, como é o caso de muitas das minhas amigas, mas, já que conto com Willie, pretendo envelhecer saborosamente. Por dentro Willie não mudou, continua sendo o mesmo homem forte e bom por quem me apaixonei, por isso estou empenhada em manter acesa a paixão, embora já não seja o fogo de uma tocha, mas a chama discreta de um fósforo. Outros casais da nossa idade exaltam os méritos da ternura e do companheirismo, que substituem o alvoroço da paixão, mas já avisei a Willie que não pretendo substituir a sensualidade por aquilo que já tenho com a minha cachorrinha. Ainda não...”
 
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Fonte: ZH on line, 26/05/2013

" Três Filósofos "


Paulo Ghiraldelli Jr.*
http://ghiraldelli.pro.br/wp-content/uploads/2013/05/valley-of-temples.jpg
O trágico, o cínico e o ironista são três figuras de filósofos malditos. São filósofos “do contra”. Contra quem?

O trágico é o filósofo que odeia aquele que espera da vida um conjunto de finais felizes. Ele tem pavor de utopias e acha todos os que brigam por uma vida coletiva melhor um rebanho e, como rebanho, um conjunto de ingênuos. Sua militância filosófica é contra os “bonzinhos”, os que acham que a filosofia carrega junto consigo uma utopia. Não há qualquer utopia no horizonte que valha a pena. Elas tiram a masculinidade da vida ao quererem introduzir um jogo de cartas marcadas, em que os fracos deveriam não só ser ajudados pelos fortes, mas até igualados todos num universo fraterno. O trágico louva a luta, o acaso e a contingência. Nada é necessário. No entanto, ele sabe que ao final, por vias transversas, as coisas que poderia temer se pudesse ver seu destino antecipadamente, ocorrerão. Por isso mesmo ele evoca uma vida humilde e corajosa.

O cínico dificilmente odeia. Ele está mais para o desdém que para o ódio. Sua atividade é contra os que estariam trocando o natural pelo convencional para, em seguida, chamá-lo de natural de idolatrá-lo. As práticas sociais são convencionais. Não se deve naturalizá-las e muito menos, após isso, acreditar que por serem então chamadas naturais são necessariamente boas. Sua militância filosófica é contra as convenções, a sociedade, a rotina impensada da vida. O cínico teme o discurso filosófico e, principalmente, a escrita. Também isso são práticas sociais, convenções, que podem assim vir a ganhar a fama de naturais ilegitimamente. Desse modo o cínico, não raro, filosofa com o corpo e com o comportamento corporal. Suas peripécias na cidade afrontam todos e com isso ele pode colocar o dedo no nariz de cada um. Nada que é feito pelos homens não é possível de ser desrespeitado e feito diferente. Nenhum lugar é sagrado. Nenhuma prática é a certa ou errada por conta de um batismo. A vida do cínico é simples e desapegada de ambições.

Como o trágico, o ironista também desconfia dos “bonzinhos”. Vê neles pessoas confiantes demais. Os tais “bonzinhos” acreditam, como o povo da cidade afrontada pelo cínico, que a utopia que possuem não é somente uma crítica, mas um telos, uma terra prometida, e que eles são os merecedores dela. Mais que isso, os “bonzinhos” acreditam que possuem conceitos que os levam a teorias, e estas dizem como eles são verdadeiramente bonzinhos, naturalmente bonzinhos, e como que a história está sob leis que os levarão à terra prometida. Eles realizarão a utopia aqui neste mundo, uma vez que eles são conformados naturalmente ou historicamente ou logicamente a uma tal utopia e esta a eles. O ironista não está contra a utopia, mas ele não vê como que esta utopia precisa ser detalhada e não vê, de modo algum, como a tal teoria que quer legitimá-la pode ser evocada e invocada. O ironista é irônico quanto a fundamentos filosóficos, sejam eles quais forem. A vida do ironista não precisa ser humilde ou simples, a vida simplesmente é a vida – ela tem de ser vivida como reino da contingência.

Filósofos como Schopenhauer ou Pascal inspiram trágicos. Filósofos como Diógenes inspiram cínicos. Filósofos como Sócrates ou Rorty inspiram ironistas. Esses três tipos de filósofos podem estar entre nós, fazendo filosofia, mesmo que um dia também tenham estado nas universidades, estudando filosofia.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/tres-filosofos-o-tragico-o-cinico-e-o-ironista/

sexta-feira, 24 de maio de 2013

" Cultivar a alegria de cada dia "

 

José Tolentino Mendonça*

«Olha, há só um remédio para ti,
só vejo um caminho: em cada dia deixa-te
tocar por alguém ou por alguma coisa.»
Um elemento que caracteriza a alegria é o facto dela não nos pertencer. É pessoalíssima, é completamente nossa, identifica-se conosco, mas não nos pertence. A alegria não nos pertence. A alegria atravessa-nos. A alegria é sempre um dom. A alegria nasce do acolhimento. A alegria nasce quando eu aceito construir a minha vida numa cultura de hospitalidade. Se insonorizo o meu espaço vital, se impermeabilizo a minha atenção, a alegria não me visita. A alegria é um dom da amizade acolhida.

A alegria não é programada. Não posso, por exemplo, dizer: daqui a um minuto vou-me rir. Não sei quando é que me vou rir. A alegria é um dom que me visita na surpresa, no não anunciado. E nesse sentido tenho de viver em hospitalidade. O meu coração é uma soleira, uma porta entreaberta. A minha vida vive do acolhimento amigável. Temos de adquirir uma porosidade, deixarmo-nos tocar, deixarmo-nos ligar pelo fluxo reparador da vida.

Há um filme de Ingmar Bergman em que uma personagem é uma rapariga anoréxica - e sabemos como a anorexia é uma forma de desistir da própria vida, de desinvestir afetivamente. A rapariga vai falar com um médico e ele diz-lhe isto, que também vale para nós todos: «Olha, há só um remédio para ti, só vejo um caminho: em cada dia deixa-te tocar por alguém ou por alguma coisa.» A alegria é esta hospitalidade.

Os dias sem alegria são completamente sem memória. Chegamos ao fim não lembramos um único gesto, uma única fase, um único encontro, uma única ação, não temos nada para contar. Tive de ver e de escutar muitas coisas, e de estar entre muita gente, mas não quis nada daquilo nem daqueles; não permiti que existisse um trânsito, um retorno; não abri o meu coração ... Há que transformar a nossa vida no sentido da hospitalidade. A amizade ensina-nos isso.

Não há alegria sem inocência. Mas inocência naquele sentido que apontava a escritora Cristina Campo: «Nós não nascemos inocentes, mas podemos morrer inocentes.» A inocência da infância espiritual é aquela inocência com a qual e pela qual podemos morrer: a inocência de um coração simples; da gratuidade; da confiança.

Se não tenho um coração de criança não sou herdeiro do Reino de Deus. Isto é, não sou herdeiro do reino da vida, não vejo cintilar, não vislumbro. E aqui, as crianças são exemplares porque elas entretêm-se com os pequenos nadas, que no fundo são as coisas mais sérias, as coisas donde colhem a luz. E nós precisamos disso. Precisamos dessa infância. De descobrir infâncias dentro de nós. Não é por acaso que todos os amigos são amigos da infância, mesmo aqueles que fazemos pela vida fora. A principal infância a testemunhar é essa futura.
 

Em vez de crescermos na severidade, na intransigência, na indiferença, no sarcasmo, na maledicência, no lamento., caminhemos suavemente no sentido contrário. Cresçamos na simplicidade, na gratidão, no despojamento e na confiança. A alegria tem a ver com uma essencialidade que só na pobreza espiritual se pode acolher.
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* Presbítero. Escritor. Poeta.
In Nenhum caminho será longo, ed. Paulinas
Fonte: http://www.snpcultura.org/cultivar_alegria_de_cada_dia.html 23.05.13

" O Consumo que nos faz feliz "

 

Vivian Blaso*
Segundo recente pesquisa divulgada pelo AKATU 2012 a maioria dos entrevistados afirma que a felicidade estaria atrelada à saúde e à boa alimentação. Mas, parece que algumas marcas ainda não perceberam isso, pois vemos que, para eles, a felicidade não tem nada a ver com a saúde e nem com a boa alimentação.

A Kibon, por exemplo, por meio do Facebook, apresenta a sua “Receita para felicidade” ou pede para os internautas compartilhar a Felicidade, acredita os consumidores mais felizes são queles que compartilham mais porque consomem mais de seus produtos. Ao seu lado, numa releitura do valor calórico dos refrigerantes, a felicidade da Coca Cola está embutida numa lata ou garrafa, como mostra a campanha “Abra a Felicidade”, que traz a promessa do consumo da felicidade por meio do consumo do refrigerante.

Nestes dois casos – poderiam ser outras marcas e outros produtos quaisquer, mas escolhi estas por estarem no auge das visibilidade de suas campanhas publicitárias – não estamos falando exatamente de alimentos ligados à saúde e à boa alimentação, como indicaram os consumidores brasileiros na pesquisa Akatu, que trariam felicidade

Pelo contrário, a leitura das campanhas publicitárias nos mostra que o que interessa é consumir tais produtos para sermos felizes. E aqui é que está o grande paradoxo da sociedade contemporânea que deseja a saúde o bem estar, mas que é incentivada a comprar produtos que não são benéficos a saúde e qualidade de vida, principalmente na atual epidemia de obesidade pela qual o mundo passa.

AS ORIGENS DO CONSUMISMO

Foi a partir da década de 90 que o consumismo passou a ser o alvo dos documentos elaborados pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das raízes da crise ambiental em que vivemos.

Zigumum Bauman define o “consumismo” como um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, que impulsiona e coordena a estratificação social, definindo grupos e políticas de vida individuais, e assim, o consumismo é a principal força propulsora e operativa da sociedade, um atributo. Dessa maneira, o autor já apontava a sociedade consumidora como a aquela que desvaloriza a durabilidade, igualando “velho” a “defasado”, impróprio para continuar sendo utilizado e destinado à lata de lixo.

Ao discutir o bem estar, a pesquisa do AKATU, aponta uma questão em jogo na sociedade de consumidores seria: como desacoplar a relação de consumo a felicidade uma vez que a felicidade vem sendo trazida como tema do discurso publicitário?

É este o discurso que vem sendo alvo dos documentos da ONU sob o chapéu “Rumo a Sociedade de Bem Estar”. A aposta estaria sendo colocada na sustentabilidade como promessa da melhoria da qualidade de vida das pessoas no planeta.

Mas quando se introduz a sustentabilidade, surge uma contradição entre o que é necessário e o que se coloca em prática, tanto do ponto de vista das empresas como do ponto de vista do consumo.

No fundo sabemos que tais produtos, como o refrigerante ou sorvete, além de não resolverem a questão da felicidade, são altamente processados e, no geral, não são considerados benéficos à saúde. A própria natureza dos produtos já estaria em completo descompasso com a proposta de felicidade se os consumíssemos na frequência e velocidade que necessitaríamos para mantermo-nos felizes.

CLASSE C

Para complicar ainda mais o debate, um outro ponto relevante a ser colocado em discussão a partir da pesquisa do AKATU3 seria a preferência da Classe C ao optar pelo caminho do consumo – de todos os tipos de pordutos e serviços – em detrimento ao caminho sustentável, pois há uma crescente massificação do consumo no Brasil.

Isso traz consequências imediatas ao comprometimento das melhorias das condições de vida das pessoas nas cidades uma vez que o resultado direto do consumo é o aumento na produção de resíduos; na intensidade do consumo energético e, consequentemente, uma significativa majoração nas emissões dos gases causadores do efeito estufa. Isso tudo, sem contar nos impactos diretos à saúde das pessoas ao consumirem mais alimentos processados como, no caso, sorvetes ou refrigerantes, em excesso.

O filósofo francês Serge Latouche, aponta que será preciso combater o “desenvolvimento sustentável”, ele acredita no “futuro sustentável da vida” e para isso será necessário reavaliar, reconceituar, reestruturar, realocar, redistribuir, reduzir, reutilizar e reciclar.

Para ele, a via mestra para tal feito seria a felicidade e consequentemente o decrescimento, porque, se somos felizes, seremos menos suscetíveis à propaganda e à compulsividade do desejo. Essas opções implicam uma mudança de atitudes com relação à natureza, buscando a condição necessária para evitar um destino de obsolescência programada da humanidade.

Portanto, devemos nos perguntar: Se estamos condicionados em uma sociedade de consumo, como reinventar processos, inovar arriscando os métodos tradicionais de produção, para nos aventurarmos em novos métodos que sugerem produções mais limpas?

É aí que surge a inovação: será que para ser feliz precisamos cultuar a cultura do “ter”, justamente a cultura que nos coloca no centro de tudo?

No fundo, estas indagações trazem reflexões sobre os valores, a ética, a responsabilidade social, ambiental e comportamental. É um resgate da moral. Entretanto, será necessário se permitir sair da fôrma, para inovar e criar novos mecanismos de sobrevivência, sem necessariamente precisar do “ter” para ser feliz.

E, ao falar em Ética, exige-se uma reflexão, ou religação, como diz Edgar Morin, entre o indivíduo, a espécie e a sociedade. E, para que essa religação ocorra, é necessário o autoconhecimento.

A dominação dos objetos materiais, o controle das energias e a manipulação dos seres vivos foram importantes para o avanço da humanidade, mas se tornou míope para captar as realidades humanas, convertendo-se numa ameaça para o futuro humano. Por isso, se faz necessário “Hominescer”, como aponta Michel Serres6, que aposta na inventividade do homem para poder construir uma nova humanidade capaz de religar cultura, ciência e filosofia.

Na perspectiva da complexidade apontada por Serres e Morin, podemos considerar a dificuldade de encontrar mecanismos capazes de unir o que está separado, separar o que está junto, uma vez que esse processo também vem ocorrendo nas escaladas de produção e consumo, que são tratados de maneira separadas, e, para religá-las, será necessário reconectar o individuo, a espécie e a sociedade, não separando a ciência da técnica, e nem a natureza da cultura. Será necessário, sobretudo reestabelecer a Ética. E isto se faz por meio de diálogo entre todos sem fazer caças as bruxas já que o processo e mudança requer a complexidade em si.
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* Profa. Vivian A. Blaso S. S. Cesar é Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais, Especialista em Marketing e Sustentabilidade, Presidente da Organização do #Ciis2013. Ela estará no painel Comunicação, Cultura e Tecnologias que ocorrerá no segundo dia do Congresso (30/8). Veja a programa completa aqui www.ciis.com.br.
(Consumidor Moderno Consciente)
Fonte: http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/o-consumo-que-nos-faz-feliz-uma-reflexao-sobre-etica-e-complexidade/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje

" A filosofia como passeio e como digestão "

 

Paulo Ghiraldelli Jr.*
Parar para pensar

Há dois elementos iconográficos muito populares entre filósofos: o quadro de Rafael, “A escola de Atenas”, especialmente o seu centro que mostra Platão e Aristóteles andando e conversando, e a estátua “O pensador”, criada por Rodin. Já faz algum tempo que essas figuras aparecem aqui e ali quando se trata de ilustrar o nome “filosofia”. Com a internet isso se ampliou mais ainda. É difícil um departamento de filosofia, seja lá em qual universidade, que não se apresente ao público virtualmente acompanhado de uma dessas duas figuras. Isso se tornou tão banal que raramente notamos o quanto essas figuras diferem entre si, ainda que estejam sendo colocadas para representar ou ilustrar algo que seria uma mesma coisa, a filosofia.

Para Rafael, talvez não houvesse como distinguir Platão e Aristóteles senão como dois passeadores. A própria escola de Aristóteles se chamou “peripatética”. Os filósofos filosofavam no peripatos. Andando pelos jardins do Liceu eles conversavam e nesse afã, filosofavam. Filosofar era andar e conversar, de preferência tudo junto. Existia o livro, mas não a imprensa. A cultura oral, então dominante, favorecia a filosofia como prática conversacional. Essa conversação se dava, não raro, no passeio, no andar juntos, no caminhar e falar. Os filósofos antigos experimentaram uma cinestesia particular, que talvez tenha muito a ver com o conteúdo mesmo de sua filosofia. Eles andavam e falavam. Pensavam a partir da linguagem, do falar, e falavam andando. O pensar antigo se fez puxado por dois elementos dinâmicos, característicos de fluxos e não estancamentos: o falar e o caminhar. O pensar antigo se fez como alguma coisa fluida, direcional, que deveria ir de um lugar a outro segundo os trajetos urbanos ou rurais calmos.

Diferentemente de Rafael, Rodin não fez “O pensador” para que ele representasse a atividade do filósofo, mas do poeta. A estátua tinha inicialmente o nome de “O poeta”. Passou depois a ser “O poeta pensador”. Ninguém mais sabe isso, porque ela se encaixou bem como sendo representativa da atividade do pensador, do filósofo, e assim ganhou popularidade. Isso ocorreu porque a própria figura do filósofo forjou-se segundo um novo imaginário. O filósofo deixou de ser o homem do passeio para ser o homem do livro e do escritório. A cinestesia do pensar, falar e andar foi trocada pela cinestesia do sentar. A expressão “parar para pensar”, desconhecida dos antigos, ganhou status na modernidade e se tornou sinônima de reflexão. Para pensar bem, para refletir, para “tomar consciência”, o homem passou a ter de “parar”. Aliás, pensar ganhou esse status particular de “tomar consciência”, alguma coisa antes subjetiva, voltada para si mesmo, que voltada para o mundo.

Não se anda após as refeições, portanto, pensar sempre havia sido, para os antigos, algo distante da atividade de comer, e a alma intelectual de Platão era o oposto da alma apetitiva. Na modernidade, nasceu a ideia de metáforas biológicas novas para o conhecer: a “assimilação” . Metáforas digestivas, de quem tem de ficar parado e inerte, vieram a se fazer presentes no mundo do pensamento e do conhecimento. Assim, em uma época em que tudo ficou veloz, os filósofos ficaram lentos. Eles se transformaram em assimiladores, digestores, homens dedicados ao “parar para pensar”. Viraram homens afeitos ao agarrar, separar o que é bom e assimilar, transformando em dejeto o que não é bom. Transformaram-se em analíticos, não mais conversadores.

Rafael e Rodin deram-nos dois elementos iconográficos da filosofia que, embora utilizados juntos, estão separados por concepções do que é a filosofia. A ideia de Rafael captou a filosofia como o que ela sempre foi no mundo antigo: uma participante da vida do modo que o caminhar é algo inerente à vida. Há vida no que se movimenta. A ideia de Rodin captou a filosofia como o que ela se tornou na modernidade, principalmente se lembrarmos aí de Husserl e sua suspensão do juízo, com a epoché: a retirada da vida, a não tomada de decisão, a atividade de quem agarra as coisas e as segura para si, assimilando-as para retirar delas o que é essencial, puro, para jogar fora o impuro. A filosofia como herança do ascetismo, como notou Nietzsche.

A filosofia antiga está para a cinestesia do andar, do suar, do envolvimento do corpo, assim como a filosofia moderna está para a cinestesia do parar, do digerir, do envolvimento de órgãos internos do corpo. A filosofia antiga está para a cinestesia do fluxo assim como a filosofia moderna está para a cinestesia do estancamento. Sócrates foi um homem do diálogo. E se no diálogo não chegava a um ponto feliz, ao menos se chegava a uma aporia. Husserl foi um homem de pouco diálogo e sua filosofia tinha como objetivo ser exata, certa, e não uma aporia – suspender o juízo nunca foi outra coisa senão o modo mais fácil de não entrar em aporia alguma.

Levando a sério a ideia de Peter Sloterdijk (1), de que podemos entender a filosofia (tanto quanto outras atividades que fazem o homem ser homem) como uma prática que visa uma performance, sendo que seu objetivo é levar o filósofo (ou o homem) a uma nova e melhor performance, então não podemos desprezar o que nos mostra Rafael e Rodin.

Para Sloterdijk o homem não se explica psicologicamente pelo trabalho (Marx) ou pela comunicação (Habermas) ou pela interação (Dewey), mas pela prática, pelo exercício, pelo caráter de performance segundo repetição, o que é, enfim, aquilo que é próprio do exercício. A filosofia nada é que mais uma dessas práticas – como exercício – do homem que faz o homem ser homem. Ora, se consideramos tal hipótese, não há como não se perguntar sobre as relações entre cinestesias como a do andar antigo em relação à filosofia antiga e cinestesias como a do sentar e digerir modernos em relação à filosofia moderna. Elas devem nos dizer mais do até então pudemos notar nelas.

O homem antigo não conhece para pegar. Ele anda, passeia e quem passeia observa – contempla. O homem moderno, Heidegger e outros notaram bem, conhece para pegar, ou melhor, conhece pegando. Dominar e assimilar são metáforas para o conhecimento na modernidade. Contemplar é metáfora para o conhecimento na antiguidade ou relativa aos antigos. Os antigos não falaram em sujeito e objeto, mas em práxis. Os modernos falaram em sujeito e objeto, em alguma coisa que tem mãos de um lado e que deixa algo a ser agarrado e consumido do outro. A modernidade é a época da “metafísica da subjetividade” e do humanismo, disse Heidegger, para então, em seguida, dizer também que essa metafísica tinha a ver com dominação, com o esquema próprio da relação sujeito-objeto. Dominar é, em grande medida, pegar e comer. Rafael não desenhou Platão e Aristóteles comendo. Rodin não fez seu pensador comendo, mas, de certo modo, é difícil não vê-lo digerindo (as caricaturas jocosas de “O Pensador” vão além disso!).

Digerir implica em aguardar e sentir todo o sangue se dirigir para o centro do corpo. Andar implica em sentido não o sangue, mas o vento no rosto. A filosofia do vento no rosto pediu que os filósofos vivessem a filosofia. A filosofia do sangue no centro do corpo pediu que os filósofos fizessem uso visceral da filosofia, mas não necessariamente o tempo todo.

(1) [2010] Sloterdijk, P. The art of Philosophy. New York: Columbia University Press, 2012. [2019] Sloterdijk, P. You must change your life. Malden: Polity, 2013.
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* 2013 Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/a-filosofia-como-passeio-e-como-digestao/23/05/2013