sábado, 22 de setembro de 2018

Era uma vez... 

- ALEXANDRE SCHWARTSMAN



FOLHA DE SP - 19/09

É preciso agir contra grupos de interesse que não aceitam perder 'meias-entradas'

Em entrevista recente ao Pravda, perdão Valor Econômico, Armínio Fraga argumenta que a situação econômica atual é ainda pior do que a enfrentada há 16 anos, durante a eleição de 2002.

Concordo plenamente, porém, noto que, se isto for mesmo verdade, há o que explicar do ponto de vista dos preços no mercado financeiro.

É fato que o dólar anda na casa de R$ 4,15-4,20, pouco acima do observado lá atrás, mas, ajustando o valor à diferença entre a inflação brasileira e a americana, o dólar na média de outubro de 2002 seria equivalente a algo perto de R$ 6,50, bem mais caro do que agora.

Da mesma forma, o risco país (o tanto a mais de juros que o Brasil precisa pagar comparado aos EUA) anda alto, na casa de 3,0-3,5% ao ano; em 2002, todavia, chegava a impensáveis 24% ao ano.

Por fim, também ajustada à inflação, a Bolsa hoje vale praticamente três vezes mais do que no pior momento daquela crise.

Em suma, pela ótica fria dos preços de mercado a coisa não parece tão feia quanto Armínio e eu (entre tantos) acreditamos.

Houve, é bom dizer, melhora em algumas fragilidades importantes.

Quase metade de tudo o que governo devia à época (algo como R$ 1,3 trilhão de R$ 3 trilhões a preços de hoje) era denominada em moeda estrangeira, principalmente dólares.

Assim, qualquer balançada no dólar, não muito diferente da que observamos recentemente, tinha efeitos negativos que realimentavam o problema: com o dólar mais caro a dívida crescia, o que aumentava a percepção acerca da nossa incapacidade para manter os pagamentos em dia, levando à fuga adicional de capitais e nova pressão sobre o dólar.

Hoje, em contraste, o governo tem mais dólares do que deve, ou seja, ganha quando o dólar sobe, quebrando o círculo vicioso anterior.

Algo parecido se passa com o setor privado: graças aos investimentos externos, o encarecimento do dólar não gera receio de que a dívida externa das empresas brasileiras em seu conjunto se torne impagável (ao contrário do que ocorre com, por exemplo, a Turquia).

Como os mecanismos de realimentação da crise via dólar e dívida não mais estão presentes, o dólar não explode, nem o risco país, e o balanço mais saudável das empresas transparece em um mercado acionário mais forte do que o daquela época.

Apesar disso, as contas públicas pioraram muito.

Em 2002 o setor público apresentava superávit primário ao redor de R$ 130 bilhões (a preços de hoje); prevê-se agora déficit de R$ 159 bilhões neste ano e R$ 139 bilhões no próximo.

O gasto federal, corrigido pela inflação, era então pouco superior a R$ 600 bilhões; hoje supera R$ 1,3 trilhão, dos quais o governo controla efetivamente menos do que 10%.

Já a dívida pública (usando a definição existente em 2002) equivalia a 65% do PIB (Produto Interno Bruto) e vinha em trajetória decrescente; hoje ultrapassa 85% do PIB e cresce desde o fim de 2013.

Naquele momento, portanto, bastou que o novo governo mantivesse a política econômica do anterior para que as coisas se acalmassem.

Hoje, porém, a tarefa é bem mais difícil: não se trata de manter o que existe, mas reformá-lo profundamente contra a ação de grupos de interesse que não aceitam serem privados de suas meias-entradas.

O mundo político, contudo, não se mostrou à altura da tarefa. Se persistirmos no erro, é até possível que os preços no mercado financeiro não voltem aos patamares de 2002, mas não tenham dúvidas de que teremos muita saudade dos preços de 2018.

Alexandre Schwartsman

Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universidade da Califórnia em Berkeley.

Governar é tão ou mais difícil que se eleger 


- MAÍLSON DA NÓBREGA



FOLHA DE SP - 19/09

Desafio é negociar sem sucumbir ao baixo clero

No Brasil, não basta ganhar as eleições presidenciais. O vencedor precisa formar e coordenar uma coalizão. Seu partido elegerá no máximo 70/75 deputados, mas necessitará de no mínimo 308 votos para aprovar emendas constitucionais. A proporção é semelhante no Senado.

A renovação do Congresso será muito pequena. O padrão mental e os costumes de sempre continuarão a ditar a forma como serão feitas as negociações. Grande parte manterá a dependência do voto de corporações e de interesses paroquiais.

Construir a maioria não será suficiente, pois ela se forma em cada votação relevante. O presidente precisa ter, além de liderança e legitimidade, habilidades para articular o apoio a seus projetos essenciais, caso a caso.

No presidencialismo de coalizão, que implica o compartilhamento do poder, o chefe do governo assume o papel de coordenador do jogo político. Compartilhar é distribuir postos ministeriais.

O presidente tem uma cota pessoal, que compreende pelo menos a Fazenda, o Planejamento e a Casa Civil. Os demais ministros são indicados pelos partidos da coalizão. É assim em países onde o vencedor não tem a maioria no Parlamento.

Formar o ministério é obra de engenharia política. É preciso demonstrar perícia e arte para contemplar aliados, regiões do país, mulheres e representantes de segmentos econômicos e sociais.

A promessa de um presidenciável de anunciar o ministério antes de se eleger revela sério desconhecimento do processo. Tampouco faz sentido recusar escolhas por indicações políticas. Ou governar com os melhores. Nem sempre é possível escolher.

Nomear um superministro da Economia pela fusão de ministérios, sem extinguir suas funções, não faz sentido. A ideia de que esse ministro terá carta branca desconhece que é o presidente quem governa e que as decisões básicas são do Congresso. Enfeixar tanto poder nas mãos de uma única pessoa vai criar conflitos e ineficiências.

Há três recursos de poder para exercer a coordenação. Primeiro, nomeações para os cargos de ministro e para posições do segundo escalão. Segundo, liberação de emendas parlamentares. Terceiro, habilidade pessoal. Impossível fugir dessa realidade.

O terceiro é o mais relevante. Pressupõe alta inteligência emocional, equilíbrio, paciência, capacidade de articulação, entender a relação com o Congresso, um bom auxiliar da coordenação política e a arte de lidar com os parlamentares.

É preciso identificar formadores de opinião, quem é mais confiável e os que merecem atenção e prestígio. Há que saber quem convidar para viagens e para recepções palacianas. Um quê de encanto é crucial. Tudo isso requer experiência. Não se faz um líder político eficaz da noite para o dia.

Negociar com base em princípios só será possível (e olhe lá) quando tivermos partidos programáticos, não hoje.

A forma atual de negociar constitui uma das regras do jogo, mas pode ser fatal o uso da corrupção para aliciar apoios.

É necessário saber transmitir mensagens e obter apoio da opinião pública para o programa de reformas, pois isso reforça a capacidade de articulação política. Presidentes impopulares perdem o poder de agenda.

Por último, o baixo clero sabe que a democracia funciona no plenário, isto é, a vontade da maioria prevalece. O baixo clero é maioria e pode vetar reformas. O desafio é negociar sem sucumbir à vontade desse grupo, que costuma andar de braços com o corporativismo e a irresponsabilidade fiscal.

Em resumo, como disse Tom Jobim (1927-1994), "o Brasil não é para principiantes".

Maílson da Nóbrega

Ex-ministro da Fazenda (1988-1990, governo Sarney) e sócio da Tendências Consultoria

Um país na margem de erro


 - GUILHERME FIUZA



    GAZETA DO POVO - PR - 21/10


"Brasileiro confia tanto em pesquisa que nem dá para entender por que ainda tem eleição. Votar pra quê? Chega de intermediários.

Há mais de ano o Brasil sabe que Lula está no segundo turno. Como ele sabe? As pesquisas disseram. E não disseram uma vez, nem duas. Gritaram, reiteraram, vaticinaram sempre que o noticiário policial dava uma trégua ao ex-presidente.

O segundo turno de Lula hoje é o do carcereiro que toma conta dele à noite, mas não tem problema. Ele envia um representante, com procuração e tudo, para tomar conta do que é dele. O triplex do Guarujá, o sítio de Atibaia, a cobertura de São Bernardo e a fortuna incomensurável para pagar advogados milionários por anos a fio não são de Lula. O que é dele, e ninguém tasca, é o lugar cativo no pódio dos institutos de pesquisa.

A estratégia de trazer o comandante do maior assalto da história para o centro da eleição que deveria ser o seu funeral político não é um incidente. Como já escrito – mas não custa repetir ao eleitorado distraído – é uma estratégia. E uma estratégia tosca.

O Brasil viu – mas para variar não enxergou – a construção dessa lenda surrealista: Lula, o PT e sua quadrilha representam, na sucessão de 2018, “a salvação progressista contra o autoritarismo”. Contando ninguém acredita.

Uma imensa maioria de formadores de opinião e personagens influentes da elite branca (aquela mesma do refrão petista) vive de lamber esse herói bandido, fingindo defender o povo – esse mesmo povo roubado até as calças pelo meliante idolatrado por eles. Ou melhor: idolatrado de mentira, porque a única idolatria dessa elite afetada e gulosa é por grana, poder e aquele verniz revolucionário que rende até umas almas carentes em mesa de bar.

Então, aí está: a estratégia funcionou e os cafetões da ética imaginária conseguiram – milagre – chegar às portas da eleição defendendo sem um pingo de inibição o PT, exatamente o maior estuprador da ética que a história já conheceu.

Pode ser doloroso, mas é preciso constatar: a possível presença do PT no segundo turno será a canalhice brasileira saindo do armário. Sem meios tons.

Se o Brasil estivesse levando uma vida saudável, estaria agora dando continuidade à exumação da Era PT – e tomando as devidas providências para jamais errar de novo tão gravemente. Mas a margem de erro por aqui é um latifúndio – o país mora no erro, e eventualmente passa férias fora dele, como um marginal.

Tradução: o insistente culto ao fantasma petista fermentou as assombrações antipetistas – e o Brasil deixou de se olhar no espelho para ficar perseguindo morto-vivo com crucifixo na mão.

Fora desse fetiche mórbido, dessa tara masturbatória pelo falso dilema esquerda x direita, a reconstrução do Brasil parou. A saída quase heroica da recessão, com redução dos juros e da inflação, reforma trabalhista e recuperação da Petrobras – nada disso existe no planeta eleitoral de 2018.

Quem vai tocar isso adiante? Quem vai segurar o leme da economia com a perícia de Ilan Goldfajn, o presidente do Banco Central que nos salvou do populismo monetário de Dilma e seus aloprados?

A resposta contém o disparate: um desses aloprados (que tinha o leme nas mãos na hora do naufrágio), o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa foi expulso da campanha de Haddad, o gato (ligação clandestina no poste) – banido por outro náufrago ainda mais aloprado que ele, o economista Marcio Pochmann. Ou seja: a possível reencarnação petista no Planalto está nas mãos dessa militância pré-histórica que se fantasia de autoridade acadêmica para perpetrar panfletos que fariam Nicolás Maduro dizer “menos, companheiro”.

Adivinhe se esse tema aparece na campanha presidencial?

Adivinhou, seu danado. O Brasil está lá, boiando na margem de erro, lendo pesquisa e brincando de jogar pôquer com o 7 de outubro. Nem sabe quem é o economista do Haddad. Ou melhor: nem sabe quem é o Haddad – porque aquele ministro da Educação tricampeão de fraudes no Enem, que não sabia nem aplicar uma prova e mandava escrever “nós pega o peixe”, sumiu de cena. Não existe mais também o prefeito escorraçado ainda no primeiro turno por inépcia.

Esse Haddad aí é outro: é o super-homem das pesquisas, que voa por cima de todo mundo com a criptonita do Lula e faz a imprensa companheira lutar por uma foto dele com a camisa aberta e a grife do presidiário explodindo no peitoral.

Vai nessa, Brasil. As pesquisas colecionam erros clamorosos em todas as eleições, mas dessa vez talvez até acertem, porque num país exilado na margem de erro qualquer chute é gol – mesmo no campeonato dos detentos.

sábado, 1 de setembro de 2018

Nós e a intolerância


 José de Souza Martins*  

 Somos, historicamente, mais propensos à intolerância do que à tolerância, à recusa de ouvir e eventualmente concordar do que à paciência civilizada de ouvir, analisar e compreender. Mais propensos a concordar com os que já pensam como nós mesmos do que a aceitar a legitimidade e a necessidade social, política e humana da diferença, seja a de opinião, seja a de identidade. Somos uma sociedade fechada ao outro sem perceber que nisso nos tornamos redutivos e reduzidos, frágeis e atrasados.  Numa listagem de nossas fragilidades sociais e políticas, vemos que na mediação de suas causas problemáticas está a intolerância. É o nosso tropeço. Os que se identificam com os partidos políticos corporativos perfilham determinada orientação ideológica menos por convicção racional do que por sujeição e obediência, vontade de ser mandado. No fundo, elementos residuais e carneiris do escravismo brasileiro estão presentes até na política e a presidem. Não é diferente o cenário em relação às religiões. No geral, os adeptos das novas confissões que se multiplicam no Brasil reduzem a crença mais aos sentimentos do que à doutrina, a fé limitada aos interesses de um grupo de identificação, e não aos horizontes de um grupo de convicção. Um bom lugar para observar a fragilidade doutrinária das opções religiosas, combinada com sua intensa e poderosa natureza corporativa comunitária, é o das salas de espera de hospitais públicos. Ali, é quase sempre o posto avançado das aflições humanas. E é também o lugar de expressão da "medicina" paralela das crenças dos que se julgam delegados do mandato de converter os ímpios, os que são diferentes, os que tem outras convicções. Não é incomum que a própria escola se torne o lugar da pedagogia da intolerância, em que a verdade objetiva fica reduzida ao que apenas passa pelo filtro restritivo de ideologias e crenças, o ensino limitado aos ditames da subjetividade de quem ensina. O que pode transformar o professor no protótipo do ditador. Não é estranho, portanto, que à falsa liberalidade dos temas abordados sem a legitimação do primado da família na educação das novas gerações se oponha o autoritarismo igualmente nocivo da tese da escola sem partido, uma tese partidária. Dos dois lados, uma educação que fui mutilada pelo esvaziamento daquilo que da educação é próprio e do que é propriamente a vocação do educador. Educar é para formar, não para deformar nem para mandar na consciência alheia, sobretudo a das novas gerações. O educador é a pessoa chamada à tarefa dificílima de dialogar com os valores da continuidade, de que a principal depositária é a família, em nome dos valores e da necessidade e até da urgência social da inovação. O requisito básico de sua profissão é o da impessoalidade. Só assim poderá cumprir a tarefa gigantesca de formar os novos filhos da nação, cada vez mais difícil em face do salário insuficiente, da desconsideração e até da violência que dificultam a missão de educar. Na política, na religião e na educação essas distorções, em nome do comunitarismo transfigurado em autoritário facciosismo, empobrecem-nos como nação e povo. Uma variação local do que Henri Lefebvre, sociólogo e filósofo francês, definiu como "rapto ideológico da concepção de comunidade". Refúgio uterino e primitivo do que, em nosso caso, se expressa na intolerância em relação ao outro e a tudo que desconstrói as pequenas tiranias cotidianas que nos fazem muito menos do que somos. Estamos alarmados com a violência e social, politicamente abertos ao fascismo e até clamando por ele, como se a questão política fosse uma questão de polícia. Queremos mais violência para combater a violência, até o dia em que descobrirmos que somos elo e agentes da violência que tememos e em algum momento nos vitimará. Somos intolerantes com o outro, mas exigimos que ele seja tolerante conosco, como era no tempo da escravidão. Queremos a mansidão do outro, mas não a nossa. Queremos um poder sem reciprocidade de direitos. Fala-se muito, e até com razão, na desigualdade no Brasil, a desigualdade limitada ao econômico, a que distingue e separa ricos e pobres. Mas nos esquecemos de que a mais problemática das nossas desigualdades é a social. Se a desigualdade econômica não depende de cada de um de nós, pois ela se impõe a nós a partir de fatores objetivos, a desigualdade social depende de fatores históricos e, em vários e significativos graus, depende de cada um de nós. Ela se nutre de um sistema de valores arraigados por meio dos quais vemos o outro como naturalmente desigual e tratamos a igualdade como um defeito e não como um direito. Intolerantes, nela, o outro não faz parte do nosso . 

José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras.