terça-feira, 30 de abril de 2013

O pessimismo é mais fácil

José Tolentino Mendonça*
A tradição ocidental não deixa margens para dúvidas na ligação que faz entre sabedoria e pessimismo. Bastaria um daqueles inesquecíveis retratos de Rembrandt para nos dizer tudo: sábio é aquele que se senta na penumbra, olhando com ponderada distância para as ilusões de transparência que a luz e a existência acendem. O que não é propriamente algo que tenha mudado. Veja-se como mais facilmente o taciturno passa por sábio do que o homem alegre. E um espírito torturado e reticente arranca maior alcance e aplauso do que todos os que se esforçam por manter ativa a esperança.

Há, de facto, um erro de avaliação que leva a considerar a jovialidade do otimista como característica espontânea de caráter, que nada deve à decisão, à maturação da vontade ou à tenacidade. Aliás, o mais comum é arrumar o otimismo na ingénua estação dos verdes anos (mesmo se ele persiste fora de época) e reservar o fruto comprovado da argúcia apenas para o seu oposto. «Juventude ociosa/ por tudo iludida/ por delicadeza/ perdi minha vida» - é aviso de Rimbaud, garantem-nos. No pessimismo, pelo contrário, nada se perde, pois somos levados a adivinhar aí um coerente processo de consciência, uma abrangência de análise sobre todas as variantes, um metabolismo sagaz da pequena e da grande história.

Contudo, o que realmente experimentamos é o avesso desta experiência, já que o pessimismo é, em muitas circunstâncias, a resposta mais fácil às solicitações do tempo. Os que só vislumbram doses colossais de ciência e de humanidade no pessimismo, esquecem quanto ele pode ser conformista, parcial ou insensível. Certamente que o pessimismo desempenha uma função purgatória face às derivas, mas um mundo gerido por pessimistas talvez não nos levasse sequer a levantar âncora do porto. Importa sublinhar que otimismo não é fatalmente leviano ou infundado (e não deveria sê-lo nunca). Os otimistas autênticos não são os que desconhecem as razões que levam outros ao seu inverso, mas aqueles que dominando objetivamente o quadro do real mesmo assim o integram num projeto maior e paciente, onde os obstáculos podem constituir oportunidades.
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* José Tolentino Mendonça é teólogo, escritor.
In Página 1
Fonte: Site de Portugal: http://www.snpcultura.org/paisagens_o_pessimismo_e_mais_facil.html
Rubem Alves

A "leveza" autêntica é um elevar-se da alma e até mesmo do corpo para o alto, é um ascender para além do pó rumo a um horizonte mais límpido e puro.
"Eu tinha 15 anos e, com os meus pais, estava voltando para os Estados Unidos. Antes do voo, eu estava buscando um livro para acompanhar as longas horas da viagem para casa. Na banca, cheia de jornais, romances policiais e românticos, eu encontrei o livro que mudaria a minha vida definitivamente. O caixa sorriu quando eu lhe apresentei Os Irmãos Karamazov. Não é coisa de alguém de 15 anos, nem para uma leitura distraída em voos intercontinentais...".

Muitos, como eu, escancararam os olhos diante dessa confissão autobiográfica: um rapaz de 15 anos, além do mais norte-americano, que, não há um século, mas sim em 1993, faz uma viagem inteira entre a Inglaterra e os Estados Unidos fascinado por uma obra tão difícil e elevada.
Porém, foi desde então que Jonah Lynch, o rapaz em questão, iniciou um percurso de "desconstrução e reconstrução" que o levou não só a encontrar Deus de modo autêntico, mas também a se tornar sacerdote (atualmente, ele tem 35 anos e é reitor do seminário da Fraternidade de São Carlos, em Roma).

O livro que ele está escrevendo agora, acompanhado por um prefácio atrevido mas partícipe do comediante Paolo Cevoli, é, por um lado, um tipo de releitura pessoal dessa história que começou na banca do aeroporto de Heathrow e que chegou à meta romano e, por outro lado, é um diálogo com todos aqueles rapazes que se encontram no ponto de partida ou já se encaminharam, com resultados duvidosos e talvez negativos, pelo caminho estreito das perguntas últimas sobre o sentido com relação ao ser e ao existir.

Lá, naturalmente, o tema da fé se cruza com muitas outras questões que, nesse livro, são desvendadas, no esforço de impedir qualquer dicotomia repulsiva sua, evitando, assim, "a tentação de dividir o mundo em dois: de um lado, o mundo da ciência e da racionalidade, de outro o mundo da criação e da fé". Por isso, o subtítulo traz esta nota explicativa: "Improvisação livre sobre Deus, a música, a ciência e o amor", mas também sobre a dor, sobre a crise, sobre a morte, sobre a Igreja, sobre Cristo, sempre tocando a própria história pessoal de jovem perturbado e depois transformado, com a semente das perguntas e com muitas flores de respostas.

Depois daquele texto capital dostoievskiano, Lynch leu muitas outras coisas e, nas suas páginas, acenam as palavras de Solženicyn e Claudel, de Tolkien e de Hugo, de Eliot e de Esopo, e até mesmo de Heráclito e dos nossos Pirandello e Buzzati. Há também a doce e intensa história do barbeiro Jayber Crow do romance homônimo de Wendell Berry e do seu amor impossível e supremo por Mattie. Há a música, certamente, dos Doors, dos Moody Blues e dos Beatles, mas também Dvorvák com a sua célebre Nona Sinfonia Do Novo Mundo. Mas tudo isso incrustado de referências, se colore com a experiência pessoal ou, melhor, uma aventura possível, segundo o autor, desejável para todos, porque leva a não renunciar a nada, mas a transfigurar tudo, a "cantar todas as coisas", como diz o título.

E também é justamente intitulado Il Canto della Vita o outro livrinho que colocamos ao lado do de Lynch. Aqui nos deparamos, ao invés, com um velho filósofo, teólogo, psicanalista e poeta brasileiro, o octogenário Rubem A. Alves, o inventor do termo "teologia da libertação", duramente perseguido pelo regime militar que incumbia sobre aquele grande país na década de 1960.

De confissão protestante, Alves celebra nessas páginas, mesmo que a partir de um ângulo diferente, a alegria de crer. Ela transpira por todos os poros da pele da sua existência e pode-se entrevê-la em filigrana em cada linha sua: não é à toa que as citações são exclusivamente bíblicas, e cada pequeno capítulo termina com uma oração doce e apaixonante.

Aqui também desfilam os grandes temas do existir, do desejo à nostalgia, da ausência ao amor, da dor ao sorriso, do corpo à morte e ao além, mas eles são apresentados de um modo contemplativo por um ancião sábio que quer ser sobretudo "pastor de esperança". As poucas evocações pessoais, como a do alecrim do jardim cuja muda foi plantada pelo pai do poeta, se dissolvem no halo da fé, assim como os sinais concretos da paisagem brasileira – as mangas, as cerejas tropicais, o vermelho dos papagaios, os cantos populares, os berimbaus, instrumentos musicais que acompanham as danças, e assim por diante – se tornam símbolos do divino e sinais de confiança.

Certamente, não se silencia o ininterrupto sopro de sofrimento que sobe da terra ao céu, nem se ignora que "os militares possuem bombas para destruir dez vezes o nosso mundo", mas o apelo é para manter fixo o olhar no bem da humanidade, na beleza do cosmos, na força da ressurreição.

E, então, a invocação se torna: "Ajuda-me a exultar em tristeza da qual nasce a nostalgia pelo reino de Deus e a detestar a tristeza daqueles que só têm olhos para contemplar a si mesmos. E que nunca falte aos tristes do teu reino o doce sacramento do sorriso de Deus".

Quisemos, assim, propor desta vez dois textos "leves". Em italiano, também temos o sinônimo, que nasce da mesma etimologia, de leggero: no entanto, este último também pode remeter a algo frívolo, superficial, bobo, vão. A "leveza" autêntica, ao invés, é um elevar-se da alma e até mesmo do corpo para o alto, é um ascender para além do pó rumo a um horizonte mais límpido e puro.

Os dois livretos que apresentamos são dotados dessa leveza que, no fim, também é leggiadria [graça, beleza, elegância] (termo que tem a mesma raiz de leggero e de lieve). É aquela "sustentável leveza do ser", bem diferente da "insustentável" e atormentada "leveza" do médico Tomáš e da sua amada Tereza do célebre romance de Kundera.

Em tempos tão pesados e materialistas, como os que estamos vivendo, o canto de Lynch e de Alves pode se tornar um antídoto benéfico tanto para os jovens quanto para os adulto
  • Jonah Lynch. Egli canta ogni cosa. Turim: Lindau, 128 páginas.
  • Rubem A. Alves. Il canto della vita. Bose (Biella): Qiqajon, 102 páginas.
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* A opinião é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 28-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 30/04/2013
 

Humanidade precisa do Deus que se autoesvazia, diz filósofo

O mundo de múltiplas possibilidades religiosas e conexões sincretistas que hoje se apresenta precisa dessa ideia maluca do Deus que se autoesvazia. Ela inspira cristãos a conviverem com a pluralidade e a diversidade, afirmou Charles Taylor.

"Vivemos na fronteira" das convicções religiosas e é preciso conviver num mundo plural, admitiu o filósofo canadense, que participou de conversatório com religiosos, teólogos, jornalistas e cientistas sociais reunidos na sexta-feira, 26, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos.

De adolescente confuso, na época do Concílio Vaticano II, Taylor voltou a crer na fé católica inspirado pelas leituras dos teólogos Yves Congar e Henri de Lubac. "Hoje sou um octogenário confuso", definiu-se, entre risos da plateia. Taylor, 81 anos, biografou três tipos de cristãos.
A primeira biografia diz respeito às pessoas que não perdem a fé, vêm de uma família cristã e creem assim como seus avós e pais acreditaram na mensagem evangélica. No segundo grupo estão aqueles que ainda creem, enquanto o terceiro grupo passou por um hiato, mas voltou a crer.

Taylor frisou a distinção de "ainda crer" e "crer novamente". Cristãos do terceiro grupo descobriram nova caminhada, uma nova maneira de vivenciar a fé, diferente daquela professada por seus antepassados, e se entendem envolvidos numa busca constante.

Cristãos do primeiro grupo sentem-se ameaçados pelo processo de secularização e assumem uma postura defensiva e não entendem esse mundo de múltiplas possibilidades e conexões.

"É um erro pastoral agir dessa forma. Devemos conviver com esse tipo de pluralismo", defendeu. O filósofo canadense aceita que as novas mídias ajudam a construir um mundo secular, mas elas apenas incrementam a sociabilidade difusa, não são cruciais e responsáveis pela constituição de uma nova ambiência que transforma a religião.
As novas tecnologias que marcam a sociedade da informação intensificam o que já vinha acontecendo, disse. A busca difusa teve início na sociedade protestante dos Estados Unidos. Pessoas buscavam respostas às suas perguntas fora dos limites do cristianismo, no budismo, no hinduísmo, "o que vem num crescendo na nossa época", admitiu.

Ele "detestaria" ser papa diante de decisões importantes, como adoção do ministério feminino na Igreja Católica. "Nossos netos e bisnetos vão olhar para trás e perguntar - 'o quê, mulheres não podiam ser ministras?' A gente não pode ficar furioso e encarar isso com raiva", admoestou, mas defendeu: "É preciso romper o vínculo entre sacerdócio e gênero."

Taylor acredita que o cristianismo ainda tem um papel relevante na sociedade, mesmo que cristãos não saibam bem como conviver com a diversidade. O mundo moderno, disse, pode ser tudo, menos relativista. "Há malucos fundamentalistas por todo lado. Quando a Igreja fala a partir do Evangelho, ela sempre cativa pessoas", afirmou.
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A reportagem é de Edelberto Behs e publicada pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação - ALC, 29-04-2013.
Fonte: IHU on line, 30/04/2013

Antropólogo realiza observações científicas sobre o impacto da religião na vida das pessoas

"Certamente muitos fiéis lutam com comportamentos que gostariam de mudar, mas, em média, os frequentadores regulares de igrejas bebem menos, fumam menos, usam menos drogas recreativas e são menos sexualmente promíscuos
do que os outros",

afirma T. M. Luhrmann, professor de antropologia na Universidade de Stanford e autor do livro When God Talks Back: Understanding the American Evangelical Relationship with God ("Quando Deus responde: Entendendo a relação dos evangélicos norte-americanos com Deus", em tradução livre), em artigo publicado no The New York Times e reproduzido pelo Portal Uol, 28-04-2013.

Eis o artigo.

Uma das descobertas científicas mais impressionantes sobre religião nos últimos anos é que ir à igreja uma vez por semana faz bem. Frequentar a igreja – e no mínimo, a religiosidade – melhora o sistema imunológico e diminui a pressão arterial. Isso pode acrescentar até dois ou três anos de vida. A razão para isso não está inteiramente clara.
O apoio social é sem dúvida uma parte da história. Nas igrejas evangélicas que estudei como antropólogo, as pessoas realmente parecem cuidar umas das outras. Elas apareciam com o jantar quando os amigos estavam doentes e se sentavam com eles quando estavam tristes. A ajuda às vezes era surpreendentemente concreta. Talvez um terço dos membros da igreja pertencia a pequenos grupos que se encontravam semanalmente para falar sobre a Bíblia e suas vidas. Uma noite, uma jovem de um grupo no qual eu tinha entrado começou a chorar. Seu dentista tinha dito que ela precisava de um procedimento de US$ 1.500, e ela não tinha o dinheiro. Para meu espanto, nosso pequeno grupo – cuja maioria era de estudantes – simplesmente cobriu os custos, com doações anônimas. Um estudo realizado na Carolina do Norte descobriu que fiéis frequentes tinham redes sociais maiores, com mais contatos, mais afeição e mais tipos de apoio social do que as pessoas que não frequentavam igrejas. E nós sabemos que o apoio social está diretamente ligado a uma saúde melhor.
O comportamento saudável é, sem dúvida, outra parte. Certamente muitos fiéis lutam com comportamentos que gostariam de mudar, mas, em média, os frequentadores regulares de igrejas bebem menos, fumam menos, usar menos drogas recreativas e são menos sexualmente promíscuos do que os outros.
Isso corresponde às minhas próprias observações. Numa igreja que eu estudei no sul da Califórnia, a história de conversão mais comum parecia ser ter encontrado Deus e nunca mais ter tomado metanfetaminas. (Uma mulher me disse que ao esquentar sua dose, ela desencadeou uma explosão no apartamento de seu pai que estourou as portas de vidro. Ela me disse: "Eu sabia que Deus estava tentando me dizer que eu estava indo pelo caminho errado.") Na igreja seguinte, lembro-me de ter ido a um grupo que ouvia uma mulher falar sobre um vício que ela não conseguia largar. Assumi que ela estava falando sobre sua própria batalha contra a metanfetamina. No fim, ela achava que lia romances demais.
No entanto, acho que pode haver outro fator. Qualquer religião demanda que você vivencie o mundo como algo mais do que é apenas material e observável. Isso não significa que Deus é imaginário, mas que, como Deus é imaterial, os que creem nele precisam usar sua imaginação para representar Deus. Para conhecer Deus numa igreja evangélica, você deve experimentar o que só pode ser imaginado como real, e você deve experimentar isso como algo bom.
Quero sugerir que esta é uma habilidade e que pode ser aprendida. Podemos chamá-la de absorção: a capacidade de se envolver em sua imaginação, de uma maneira que você goste. O que eu vi na igreja como um observador antropológico foi que as pessoas eram incentivadas a ouvir a Deus em suas mentes, mas apenas para prestar atenção às experiências mentais que estavam de acordo com o que elas considerassem ser o caráter de Deus, que elas consideram bom. Vi que as pessoas eram capazes de aprender a vivenciar Deus dessa forma, e que aquelas que eram capazes de vivenciar um Deus amoroso de forma vívida, eram mais saudáveis – pelo menos, julgando por uma escala psiquiátrica padronizada. Cada vez mais, outros estudos confirmam esta observação de que a capacidade de imaginar um Deus amoroso vividamente leva a uma saúde melhor.
Por exemplo, num estudo, quando Deus era experimentado como algo mais remoto não amoroso, quanto mais alguém rezava, mais sofrimento psiquiátrico parecia ter; quando Deus era experimentado como próximo e íntimo, quanto mais alguém orava, menos doente ficava. Em outro estudo, numa faculdade cristã particular no sul da Califórnia, a qualidade positiva de um apego a Deus diminuiu significativamente o estresse e fez isso de forma mais eficaz do que a qualidade das relações da pessoa com outras pessoas.
Eventualmente, isso pode nos ensinar como aproveitar o efeito "placebo" – uma palavra terrível, porque sugere uma ausência de intervenção em vez da presença de um mecanismo de cura que não depende de produtos farmacêuticos nem de cirurgia. Nós não entendemos o efeito placebo, mas sabemos que é real. Ou seja, temos cada vez mais provas de que o que os antropólogos chamariam de "curas simbólicas" têm efeitos físicos reais sobre o corpo. No cerne de alguns destes efeitos misteriosos pode estar a capacidade de confiar que aquilo que só pode ser imaginado seja real, e seja bom.
Mas nem todos se beneficiam da cura simbólica. No início deste mês, o filho mais novo do famoso pastor Rick Warren se suicidou. Sabemos poucos detalhes, mas a perda nos lembra que sentir desespero quando você quer sentir o amor de Deus pode piorar a sensação de alienação. Necessitamos com urgência de mais pesquisas sobre a relação entre doença mental e religião, não só para que possamos compreender mais intimamente essa relação – as formas pelas quais elas estão ligadas e são diferentes –, mas para reduzir a vergonha daqueles que são religiosos e, no entanto, precisam buscar outros cuidados.
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Fonte: IHU on line, 30/04/2013

segunda-feira, 29 de abril de 2013

" Música e Matemática " < por Kledir Ramil >

 


Por incrível que possa parecer, Kleiton e eu somos formados em engenharia. Eu sou engenheiro mecânico, e ele, eletrônico. Cantores-engenheiros não são raros na MPB: Ivan Lins, João Bosco e Francis Hime também são. No fim é isso, artistas, engenheiros é tudo a mesma turma.

Para fazer um show, por exemplo, a gente depende de vários profissionais da área. Precisamos de um prédio, um teatro com tratamento acústico e equipamentos elétricos/eletrônicos de última geração. Nossos instrumentos musicais são ferramentas de alta precisão, projetados segundo formas, medidas, resistência dos materiais e até cálculo de engrenagens, como é o caso das chaves usadas para afinar as cordas do violão.

O mundo está cada vez melhor graças aos engenheiros, nossos colegas. Se não fosse o domínio de toda essa tecnologia, nós estaríamos vivendo no meio do mato, cantando e dançando na volta de uma fogueira.

Adoro ciências exatas, tenho uma mente concreta, um pensamento lógico. O problema é que eu era um cara atrapalhado com as questões afetivas e corria o risco de me tornar um sujeito cartesiano. A música me salvou. Encontrei uma atividade absolutamente rigorosa, de precisão matemática, onde posso extravasar as minhas emoções.

Música é pura matemática. O que a gente chama de nota musical é, na verdade, uma frequência determinada. Lá 4 é uma vibração de 440 hertz. Frequências mais altas, notas mais agudas. Mais baixas, notas graves. Além da altura, uma nota musical tem um tempo de duração, curto ou longo.

Uma sequência de notas “constrói” uma melodia. Notas tocadas ao mesmo tempo criam acordes, harmonias. Aí, esse monte de notas com frequências e tempos variados, são executadas em um ritmo, tipo 4/4, 6/8... E com um andamento determinado, como 120 bpm (beats por minuto). Por isso, é necessário um maestro para fazer uma contagem e dirigir a orquestra.

Além de todas essas medidas musicais, na hora de compor uma canção ainda é preciso “encaixar” uma letra. Versos respeitando a métrica (um número certo de vocábulos), a prosódia (a acentuação tônica das palavras coincidindo com a acentuação melódica) e a rima. Aí, no fim, tudo isso tem que fazer algum sentido e ter um mínimo de beleza. Ou seja, é uma loucura, é mais complicado do que construir um edifício. Acho que vou voltar pra engenharia.
Comentário final: Maria Fumaça... só mesmo dois engenheiros malucos para fazerem uma canção de amor em homenagem a uma locomotiva.

" Libert - ação : ação que lierta a liberdade cativa "



Leonardo Boff*
Liberdade é mais que uma faculdade do ser humano. a de poder escolher ou o livre arbítrio. A liberdade pertence à essência do ser humano. Mesmo sem poder escolher, o escravo não deixa de ser, em sua essência, um ser livre. Pode resistir, negar e até se rebelar e aceitar ser morto. Essa liberdade ninguém lhe pode tirar.

Entre muitas definições, penso que esta é, para mim, a mais correta: liberdade é capacidade de auto-determinação.

Todos nascem dentro de um conjunto de determinações: de etnia, de classe social, num mundo já construído e sempre por construir. É a nossa determinação. Ninguém é livre de alguma dependência. Ela pode ser uma opressão como o trabalho escravo ou o baixo salário. Ao lutar contra, exerce um tipo de liberdade: liberdade de, desta situação. É a luta por sua in-dependência e autonomia. Ele se auto-determina: assume a determinação mas para superá-la e ser livre de, livre dela.

Mas existe ainda um outro sentido de liberdade como auto-determinação: é aquela força interior e própria (auto) que lhe permite ser livre para, para construir sua própria vida, para ajudar a transformar as condições de trabalho e para criar outro tipo de sociedade onde seja menos difícil ser livre de e para. Aqui se mostra a singularidade do ser humano, construtor de si mesmo, para além das determinações que o cercam. A liberdade é uma libert-ação, vale dizer, uma ação autônoma que cria a liberdade que estava cativa ou ausente.


Estes dois tipos de liberdade ganham uma expressão pessoal, social e global.

Em nível pessoal a liberdade é o dom mais precioso que temos depois da vida: poder se expressar, ir e vir, construir sua visão das coisas, organizar a vida como gosta, o trabalho e a família e eleger seus representantes políticos. A opressão maior é ser privado desta liberdade.

Em nível social ela mostra bem as duas faces: liberdade como independência e como autonomia. Os países da América Latina e do Caribe ficaram independentes dos colonizadores. Mas isso não significou ainda autonomia e libertação. Ficaram dependentes das elites nacionais que mantiveram as relações de dominação. Com a resistência, protestação e organização dos oprimidos, gestou-se um processo de libertação que, vitorioso, deu autonomia às classes populares, uma liberdade para organizarem outro tipo de política que beneficiasse os que sempre foram excluídos. Isso ocorreu na América Latina a partir do fim das ditaduras militares que representavam os interesses das elites nacionais articuladas com as internacionais. Está em curso um processo de libert-ação para, que não se concluiu ainda mas que fez avançar a democracia nascida de baixo, republicana e de cunho popular.

Hoje precisamos também de uma dupla libertação: da globalização econômico-financeira que explora mundialmente a natureza e os países periféricos, dominada por um grupo de grandes corporações, mais fortes que a maioria dos Estados. E uma libertação para uma governança global desta globalização que enfrente os problemas globais como o aquecimento, a escassez de água e a fome de milhões e milhões. Ou haverá uma governança colegiada global ou há o risco de uma bifurcação na humanidade, entre os que comem e os que não comem ou padecem grandes necessidades.

Por fim, hoje se impõe urgentemente um tipo especial de liberadade de e de liberdade para. Vivemos a era geológica do antropoceno. Isto significa: o grande risco para todos não é um meteoro rasante, mas a atividade irresponsável e ecoassassina por parte dos seres humanos (ántropos). O sistema de produção imperante capitalista, está devastando a Terra e criou as condições de destruir toda a nossa civilização. Ou mudamos ou vamos ao encontro de um abismo. Precisamos de uma liberdade deste sistema ecocida e biocida que tudo põe em risco para acumular e consumir mais e mais.

Precisamos também de uma liberdade para: para ensairmos alternativas que garantam a produção do necessário e do decente pra nós e para toda a comunidade de vida. Isso está sendo buscado e ensaiado pelo bien vivir das culturas andinas, pela ecoagricultura, pela agricultura familiar orgânica, pelo índice de felicidade da sociedade e outras formas que respeitam os ciclos da vida. Queremos uma biocivilização.

Como cristãos precisamos também libertar a fé cristã de visões fundamentalistas, de estruturas eclesiásticas autoritárias e machistas para chegarmos a uma liberdade para as mulheres serem sacerdotes, para os leigos poderem decidir junto com o clero os destinos de sua comunidade, para os que tem outra opção sexual. Precisamos de uma Igreja que, junto com outros caminhos espirituais, ajude a educar a humanidade para o respeito dos limites da Terra e para a veneração da Mãe Terra que tudo nos dá.


Esperamos que o Papa Francisco honre a herança de São Francisco de Asssis que viveu uma grande liberdade das tradições e para novas formas de relação para com a natureza e com os pobres.
A luta pela liberdade nunca termina, porque ela nunca é dada mas conquistada por um processo de libert-ação sem fim.

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* Teólogo. Filósofo. Escritor. Educador.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/04/29/libert-acao-acao-que-liberta-a-liberdade-cativa/

" Darwin e a prática da " salami science "

 

FERNANDO REINACH*
Em 1985, ouvi pela primeira vez no Laboratório de Biologia Molecular a expressão "Salami Science". Um de nós estava com uma pilha de trabalhos científicos quando Max Perutz se aproximou. Um jovem disse que estava lendo trabalhos de um famoso cientista dos EUA. Perutz olhou a pilha e murmurou: "Salami Science, espero que não chegue aqui". Mas a praga se espalhou pelo mundo e agora assola a comunidade científica brasileira.

"Salami Science" é a prática de fatiar uma única descoberta, como um salame, para publicá-la no maior número possível de artigos científicos. O cientista aumenta seu currículo e cria a impressão de que é muito produtivo. O leitor é forçado a juntar as fatias para entender o todo. As revistas ficam abarrotadas. E avaliar um cientista fica mais difícil. Apesar disso, a "Salami Science" se espalhou, induzido pela busca obsessiva de um método quantitativo capaz de avaliar a produção acadêmica.

No Laboratório de Biologia Molecular, nossos ídolos eram os cinco prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos artigos indicava falta de rigor intelectual. Eles valorizavam a capacidade de criar uma maneira engenhosa para destrinchar um problema importante. Aprendíamos que o objetivo era desvendar os mistérios da natureza. Publicar um artigo era consequência de um trabalho financiado com dinheiro público, servia para comunicar a nova descoberta. O trabalho deveria ser simples, claro e didático. O exemplo a ser seguido eram as duas páginas em que Watson e Crick descreveram a estrutura do DNA. Você se tornaria um cientista de respeito se o esforço de uma vida pudesse ser resumido em uma frase: Ele descobriu... Os três pontinhos teriam de ser uma ou duas palavras: a estrutura do DNA (Watson e Crick), a estrutura das proteínas (Max Perutz), a teoria da Relatividade (Einstein). Sabíamos que poucos chegariam lá, mas o importante era ter certeza de que havíamos gasto a vida atrás de algo importante.

Hoje, nas melhores universidade do Brasil, a conversa entre pós-graduandos e cientistas é outra. A maioria está preocupada com quantos trabalhos publicou no último ano - e onde. Querem saber como serão classificados. "Fulano agora é pesquisador 1B no CNPq. Com 8 trabalhos em revistas de alto impacto no ano passado, não poderia ser diferente." "O departamento de beltrano foi rebaixado para 4 pela Capes. Também, com poucas teses no ano passado e só duas publicações em revistas de baixo impacto..." Não que os olhos dessas pessoas não brilhem quando discutem suas pesquisas, mas o relato de como alguém emplacou um trabalho na Nature causa mais alvoroço que o de uma nova maneira de abordar um problema dito insolúvel.

Essa mudança de cultura ocorreu porque agora os cientistas e suas instituições são avaliados a partir de fórmulas matemáticas que levam em conta três ingredientes, combinados ao gosto do freguês: número de trabalhos publicados, quantas vezes esses trabalhos foram citados na literatura e qualidade das revistas (medida pela quantidade de citações a trabalhos publicados na revista). Você estranhou a ausência de palavras como qualidade, criatividade e originalidade? Se conversar com um burocrata da ciência, ele tentará te explicar como esses índices englobam de maneira objetiva conceitos tão subjetivos. E não adianta argumentar que Einstein, Crick e Perutz teriam sido excluídos por esses critérios. No fundo, essas pessoas acreditam que cientistas desse calibre não podem surgir no Brasil. O resultado é que em algumas pós-graduações da USP o credenciamento de orientadores depende unicamente do total de trabalhos publicados, em outras o pré-requisito para uma tese ser defendida é que um ou mais trabalhos tenham sido aceitos para publicação.

Não há dúvida de que métodos quantitativos são úteis para avaliar um cientista, mas usá-los de modo exclusivo, abdicando da capacidade subjetiva de identificar pessoas talentosas, criativas ou simplesmente geniais, é caminho seguro para excluir da carreira científica as poucas pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes. Essa atitude isenta os responsáveis de tomar e defender decisões. É a covardia intelectual escondida por trás de algoritmos matemáticos.

Mas o que Darwin tem a ver com isso? Foi ele que mostrou que uma das características que facilitam a sobrevivência é a capacidade de se adaptar aos ambientes. E os cientistas são animais como qualquer outro ser humano. Se a regra exige aumentar o número de trabalhos publicados, vou praticar "Salami Science". É necessário ser muito citado? Sem problema, minhas fatias de salame vão citar umas às outras e vou pedir a amigos que me citem. Em troca, garanto que vou citá-los. As revistas precisam de muitas citações? Basta pedir aos autores que citem artigos da própria revista. E, aos poucos, o objetivo da ciência deixa de ser entender a natureza e passa a ser publicar e ser citado. Se o trabalho é medíocre ou genial, pouco importa. Mas a ciência brasileira vai bem, o número de mestres aumenta, o de trabalhos cresce, assim como as citações. E a cada dia ficamos mais longe de ter cientistas que possam ser descritos em uma única frase: Ele descobriu...
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* Biólogo. Colunista do Estadão
Fonte: http://www.estadao.com.br/27/04/2013

" Um cirurgião de textos "



Cirurgião de textos. Esta é, na essência, a profissão de James McSill, um gaúcho de 56 anos que mora em Yorkshire, na Inglaterra, e que se tornou conhecido em todo o mundo graças a seu trabalho como consultor literário. Ele auxilia escritores que sonham em escrever livros de sucesso de público e de crítica.

James esteve em Florianópolis no fim de semana compartilhando suas experiências no mundo da literatura na Maratona de Imersão Literária. O consultor aplica, em suas palestras e aulas, conhecimento, didática e irreverência, uma receita que tem se mostrado eficiente, já que as inscrições para seus cursos esgotam-se rapidamente, em todos os cantos do planeta. Ele coordena a Maratona, destinada a empresários e escritores de autodesenvolvimento, que vão descobrir estratégias para a produção de textos apreciados por agentes e editoras internacionais e aprender, na prática, a estruturar um protótipo de livro comercial.

Dono de empresas ligadas à indústria literária e consultoria em Londres e Yorkshire, no norte da Inglaterra, James está à frente da McSill Story Studio (que tem parcerias com estúdios de Hollywood) e, ainda, da agência literária internacional em São Paulo, sendo representante para a América Latina e Península Ibérica do prestigiado BritWriters’ Awards. Atualmente, está ampliando o seu bem-sucedido sistema de treinamento remoto para jovens autores, chamado Book in a Box.

– Eu me proponho a ser o amigo que vai dar no texto do autor uma chibatada crítica. Sou apenas um “estruturalista”, cirurgião de texto, e não um crítico literário. É a opinião de alguém que lê de tudo, que gosta de opinar e de embasar as suas opiniões. E que gosta, também, de apontar caminhos e de ver o texto como uma obra que quer ser publicada.

James nasceu nos arredores de uma colônia inglesa, perto de Pelotas (RS). Ainda menino mudou-se com a família para a Escócia. Voltou para estudar Línguas na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e, após a formatura, fez pós-graduação no Reino Unido e ganhou o mundo. Foi educador, conferencista na área de ensino de idiomas e consultoria e trabalhou com análise, criação de livros e dicionários, até que, no fins dos anos 1980 passou a atuar como tutor de autores. Hoje, trabalha ainda com agentes e editores mundialmente reconhecidos, como Ken Atchity, Mardeene Mitchell e Richard Krevolin, dentre outros.

O grande desafio para os escritores, especialmente aqueles que estão começando, diz James McSill, é responder à seguinte questão: você poderia escrever uma primeira página que me levasse a querer virar a folha para ler uma segunda?

– O autor quer criar uma narrativa que todos – ou, ao menos, muitos no segmento para o qual escreve – gostem; que fiquem implorando por outras histórias como aquela.
VIVIANE BEVILACQUA | Diário Catarinense
3 dicas de James McSill
> O essencial para ser um escritor é aprender a estruturar uma história e ter a paciência para reescrevê-la várias vezes, até ficar pronta.
> O primeiro esboço de uma trama tem que emocionar o autor. Já os rascunhos subsequentes têm de ser trabalhados nos mínimos detalhes para emocionar o leitor, os críticos e aqueles que nos são indiferentes. Não os que nos amam, porque esses vão gostar de qualquer forma.
> O mercado literário nunca esteve tão bom. Esta é a hora de publicar seu livro, quer por meios regulares ou alternativos.

Reportagem por VIVIANE BEVILACQUA | Diário Catarinense Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/29/04/2013

" Apontamentos sobre o padre e as suas fragilidades "

 

Christian Albini*

A pessoa do padre, as suas fragilidades e a proximidade da comunidade: algumas reflexões nascidas de uma troca de ideias entre sacerdotes e leigos em Crema, na Itália.

O desconforto do padre é um fato que hoje, diferentemente do passado, é mais evidente. Quais são as situações pessoais e eclesiais que não ajudam a reconhecer os limites relacionais do padre, mas podem até alimentá-los, encorajando comportamentos que são danosos para os outros e para si mesmo? A manifestação mais grave e evidente é a dos casos de abuso sexual. Mas há muitas outras problemáticas menos aparentes: vícios, autoritarismo, carreirismo, fixação no cargo, isolamento...
Esses apontamentos para um discernimento sobre a pessoa do padre e as suas fragilidades nascem de uma troca entre alguns padres e leigos, e são pensados para favorecer a reflexão. A ideia de fundo é que o padre não deve ser deixado sozinho, mas sim apoiado e acompanhado, assim como ele acompanha a sua comunidade.

1. A teologia e a espiritualidade do sacramento da Ordem, expressões de um rosto da Igreja
Que teologia e espiritualidade do sacramento? Se ele não for considerado, a partir do sacramento do Batismo, no contexto da pluralidade e da comunhão dos carismas em que o ministério ordenado se configura como serviço, há o risco de provocar uma percepção "mágica" e individualista do sacramento, pela qual o ordenado se pensa como um eleito que é mais do que homem.
Tudo isso alimenta um senso distorcido de si mesmo e uma ilusão de autossuficiência. Na raiz, há uma visão da Igreja. A superação da imagem do padre como "separado" e "preservado", por força da ordem, das fragilidade alheias corresponde ao modelo de Igreja promovido pelo Vaticano II, centrada na eclesiologia de comunhão em que fiéis e pastores pertencem ao Povo de Deus em fraternidade e corresponsabilidade (unidade na diversidade). Na raiz, há a parábola dos operários na vinha e a alegoria da videira e dos ramos, e o consequente ensinamento de Jesus sobre aos apóstolos a não seguirem as lógicas de poder e lavarem os pés uns dos outros (cf. Mc 10, 35-45; Jo 13, 1-17).

2. A relação entre experiência humana e experiência de fé
Gratia non tollit naturam sed perficit (Tomás de Aquino). Deus não faz nada sem a nossa liberdade e responsabilidade. O caminho de fé vai de mãos dadas com o caminho de crescimento humano, segundo a lógica da Encarnação. Como dois esposos, que também receberam um sacramento, eles podem precisar de um suporte qualificado das ciências humanas por causa das suas dificuldades relacionais, assim também o padre, em cuja vocação não entra só a vontade, mas também a vivência psicológica.
Rejeitar essas contribuições em nome do sacramento recebido pode se tornar uma desculpa para não revelar a verdade sobre si mesmos e para não favorecer uma verdadeira formação da espiritualidade. Um autêntico caminho humano e um autêntico caminho espiritual vão de mãos dadas; caso contrário, confunde-se a espiritualidade com uma sucessão de práticas e de "deveres" de oração, sem um verdadeiro caminho de conversão do coração.
Em particular, a elaboração de uma relação positiva, serena e madura com a subjetividade feminina é um passo indispensável. Tudo isso faz parte daquela custódia do coração que o Senhor ensinou como necessária para a verdadeira conversão (cf. Mt 6, 22-23; 15, 18-19; Mc 7, 20-22; Lc 6, 45).

3. A relação com a sexualidade, o poder, o dinheiro
Onde o caminho humano e espiritual permanece incompleto, o padre continua sendo prisioneiro do seu ego e das idolatrias, razão pela qual prevalece nele a busca da própria gratificação ou o sofrimento pela sua frustração, escondido atrás da máscara do seu próprio papel (removendo os conflitos psicológicos). Daí derivam os comportamentos patológicos e lesivos para si mesmo e para os outros.
A forma mais evidente e estigmatizada é a dos comportamentos sexuais, com os casos extremos, mas também há outros que dizem respeito principalmente à relação com o poder nas suas diversas nuances, com o dinheiro, a busca por alguma forma de relevância ou refúgio em uma identidade forte (sobretudo em nível de imagem).
Aqui se requer levar a sério aquela "luta espiritual", cujo paradigma são as tentações de Jesus no deserto (cf. Mt 4, 1-11; Lc 4, 1-13). "Tu deves lutar em ti mesmo, porque a luta procede das profundezas do teu coração" (Orígenes).
É preciso prestar atenção a sistematizações educativas, mesmo que de "sucesso", que preferem a liderança carismática e o verticalismo, porque na adesão a um líder e a um grupo pode-se encontrar uma via de fuga da atenção a si mesmo.

4. A relação entre os padres e o bispo
É indispensável favorecer uma comunicação o máximo possível aberta e sincera, aprendendo também as modalidades de respeito e de escuta que nem sempre se encontram entre coirmãos. Em particular, cabe ao bispo a atenção às situações de desconforto e aos comportamentos danosos, assim como a vigilância sobre aquelas realidades em que o pertencimento particular pode ofuscar a comunhão e a diocesaneidade.
Que contextos e atenções podem favorecer o exercício de uma correção fraterna em revisão de vida (cf. Mt 18, 15.21-22; Lc 17, 3-4)? Não deveria ser o Evangelho (em que Jesus envia os apóstolos a anunciar o Reino e a curar em fraternidade, pobreza e gratuidade) o critério de medida do "estilo" do padre, do seu modo de viver e de se comportar (cf. Mt 10, 7-10; Lc 9, 1-6; 10, 1-4)? Em um horizonte de comunhão e de fraternidade presbiteral, a sinceridade recíproca e a verificação disso (com a atenção a formas que não oprimam e desvalorizem a pessoa) é indispensável.

5. A relação com a comunidade
O padre exerce o seu ministério pastoral "sobre a" comunidade ou "na" comunidade? Há o hábito a um estilo de relações pelas quais se vive a comunidade como uma realidade de "família" na sua pluralidade de sujeitos ou prevalece o isolamento? As decisões são tomadas "monarquicamente" ou exercendo a escuta e o debate para acolher as diversas sensibilidades e pontos de vista?
Como educar os jovens padres para a comunidade e como ajudar os padres já à frente no ministério para rever os seus próprios hábitos? Como as unidades pastorais podem ser uma ocasião para favorecer um estilo relacional entre os padres com a comunidade? (cf. At 2, 42-47; At 4, 32-35).

6. As culpas dos irmãos
Quando se verificam casos graves, como a Igreja pode revelar a verdade e a justiça, continuando, ao mesmo tempo, a ser mãe? Que atenções, em uma perspectiva evangélica, devem ser dadas com relação às vítimas e com relação a quem é culpado? (cf. Mt 6, 14-15; Mt 18, 21-22; Lc 6, 36ss; Rm 15, 7; Ef 4, 32; Cl 3, 12ss.).
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* A reflexão é do cientista social italiano Christian Albini, em artigo publicado no sítio Vino Nuovo, 11-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 29/04/2013

" O erudito na era da informática "

 
 

Juremir Machado da Silva*

Entrevistas marcantes: Eco e a leitura

Umberto Eco realmente dispensa apresentação. Em todo caso, vale dizer que ele, o sábio italiano nascido no Piemonte, em 5 de janeiro de 1932, professor de Semiologia na Universidade de Bolohna, autor do clássico Tratado de Semiótica Geral e dos best-sellers O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault, foi escolhido para brilhar no Colégio da França, a prestigiosa instituição parisiense criada em 1530 e que não organiza exames e nem emite diplomas. Em resumo, existe para estimular a pesquisa pura, o ensino no grau máximo da sofisticação e coroar a carreira dos eruditos. Na aula inaugural, no dia 2 de outubro de 1992, compareceram ao tradicional rito acadêmico o poderoso ministro da Educação e Cultura da França, Jack Lang, e ilustres jornalistas culturais como Bernard Pivot. Chamado a falar durante quatro meses sobre A Procura de uma Língua Perfeita na Cultura Européia, o mestre viajou da cabala ao esperanto passando pelas reflexões de Dante, Descartes, Wilkins, Raymond Lulle, Porfírio e mais uma infinidade de filosofias, teologias, seitas e códigos secretos. Um voo absoluto no reino da fascinação intelectual. Um mergulho soberano na erudição. Um jogo de livre-associação que só poderia ser superado por um computador programado para estabelecer relações lógicas (e certamente inúteis) a partir do patrimônio cultural da humanidade. Abençoado pelo frio do outono, Eco concedeu esta entrevista. Vertiginoso, aceitou colocar tudo no devido lugar e precisou, outra vez, o papel dos meios de comunicação de massa, a função do erudito, o valor da literatura e, acima de tudo, as características da civilização da informática (segui o seu curso do primeiro ao último dia)

JMS – O senhor mescla erudição e meios de comunicação de massa com perfeição. Trata-se da mistura da cultura considerada legítima com o brilho da mídia ainda menosprezada pelos intelectuais. Como analisar o papel das imagens no mundo atual? Crise da modernidade e ameaça de uma nova barbárie ou expansão comunicacional democratizante ?
Umberto Eco. Uma pesquisa recente, publicada na Inglaterra, demonstra que hoje os jovens leem mais do que os seus pais. Conclusão: a geração da televisão e do computador é ainda encorajada a ler, mais do que em relação às gerações precedentes. Com todos os seus defeitos, é evidente que a civilização dos meios de comunicação de massa faz circular a informação, mesmo superficial, e a informação estimula a necessidade de conhecimento. Portanto, a superficialidade da mídia empurra a juventude a buscar experiências mais profundas e satisfatórias. Na década de sessenta, McLuhan podia anunciar o fim da civilização alfabética e o nascimento do poder da aldeia global. Hoje, entretanto, as telas de computador não mostram imagens, mas textos. Estamos prestes a entrar em uma nova galáxia Gutenberg. A leitura das informações informatizadas esbarra na ausência de aprofundamento, claro. Em todo caso, estou seguro, depois de três horas na frente de um computador, explode a vontade de ler um bom livro. A escrita não perdeu a guerra para a audiovisual. Ao contrário, ela está face à vitória absoluta.

JMS – Erudito e apaixonado pela informática, o senhor associa o sábio do passado, que armazenava informações extraordinárias na memória, e o intelectual da era pós-industrial, ligado aos bancos de dados internacionais. Não o assusta, em uma espécie de ficção científica com forte tendência à realidade, a possibilidade de ser secundarizado pelo cérebro artificial? Dito de outra forma: qual é a função do intelectual ao final do século XX?
Eco – O computador é um instrumento como o eram as fichas dos intelectuais de antigamente. O erudito antigo passava incontáveis dias a pesquisar informações bibliográficas que hoje podem ser manipuladas em segundos a partir de arquivos eletrônicos. Neste sentido, o computador faz simplesmente uma parte do trabalho mecânico que os eruditos do passado eram obrigados a realizar. A fotocópia, no mesmo sentido, permite ganhar o tempo outrora dedicado à cópia dos textos. Na verdade, eu me irrito um pouco com o excesso de informação erudita produzida pelos arquivos eletrônicos. Temo que a abundância possa matar a informação relevante. Se eu vou levantar dados em uma biblioteca, trabalho um dia e adquiro o conhecimento de cerca de trinta livros, dos quais me lembrarei. Mas se aperto um botão e surgem, sobre o mesmo assunto, dez mil títulos, ficarei, em razão da quantidade, impossibilitado de reter as obras verdadeiramente importantes. Do ponto de vista da escrita, pretende-se que o computador é hemingwayniano, frases curtas e secas. Erro: ele é proustiano e favorece a repercussão de todas as contradições. Logo, em face dos novos meios, incontornáveis, os eruditos devem aprender uma nova disciplina de pesquisa.

JMS – Em um texto de 1967, o senhor falava da guerrilha da mídia e questionava-se sobre o verdadeiro sujeito criador das ideologias ou dos costumes, modas e valores. Ainda é pertinente dissertar sobre a potência absoluta dos meios de comunicação de massa, sobretudo da televisão, ou os intelectuais de esquerda, no Brasil, por exemplo, agarram-se a uma análise esclerosada quando denunciam o poder da Rede Globo de fazer e desfazer a realidade ?
Eco – Devemos considerar, mais uma vez, os efeitos da abundância: uma só rede de televisão pode influir sobre as ideias dos telespectadores. Mas quando o mesmo telespectador é submetido a dez redes e viaja entre elas, o que ele absorve é o ruído. Neste caso, a influência da mídia anula-se em vez de crescer e a independência é favorecida. Em um plebiscito recente, na Itália, os grandes partidos e os meios de comunicação que os representavam ou contrariavam resolveram silenciar de modo a estimular a abstenção. A maioria dos italianos, contudo, compareceu às urnas e votou pelo sim. A população tinha aceitado o chamado dos meios menores e rejeitado o comando das grandes cadeias. Existem, de fato, os espaços de escolha e as margens de manobra. Eu condeno a idéia maniqueísta dos falsos intelectuais que consideram a escrita representativa do bem e a imagem como o mal.

JMS – Poder-se-ia imaginar que os meios de comunicação de massa são detentores de poderes absolutos no Terceiro Mundo e domesticados nos países desenvolvidos?
Eco – Para o Terceiro Mundo talvez a situação seja diferente, justamente porque não há possibilidade de escolha entre diferentes mensagens de mídia. Mas é preciso não esquecer que muitos países trabalharam para aumentar o índice de alfabetização, fator positivo, e elevaram a barreira contra a homogeneização midíatica. Precisamos, o que é mais importante, parar de pensar em universos compostos apenas pelos meios de comunicação de massa. As sociedades são plurais. Nos Estados Unidos, Ross Perot comprou enormes espaços na mídia. Clinton optou pelas equipes de jovens voluntários que estabeleceram contatos corpo a corpo. Qual foi o resultado? Se os meios de comunicação de massa fossem mesmo possuidores de todo o poder, Perot teria vencido. O tecido social, felizmente, é articulado de modo plural.

JMS – Houve o tempo do estruturalismo, da linguística, da semiótica, da semiologia e dos mestres da área, entre os quais Umberto Eco. Eram modas? Passado o período de febre, qual o balanço possível?
Eco – Sempre acontece de certas disciplinas ou correntes artísticas gerarem sua própria moda. Depois, passado o apogeu, vencida a moda, resta a pesquisa. Necessitamos julgar as investigações, não as aparências. Ultrapassamos a época em que um movimento destruía o anterior, de acordo com uma visão hegeliana da história. O que caracteriza a nossa civilização é o entrelaçamento da televisão com o cinema, a imprensa, os Beatles, Stockhausen e a literatura. Inventaram o termo pós-modernidade para o que eu prefiro chamar de poliglotismo generalizado da cultura. Em síntese, prevalece a convivência.

JMS – O senhor escreveu romances que se transformaram em best-sellers. O Pêndulo de Foucault, paradoxalmente, é ilegível pelo menos até a página 27. Houve um projeto deliberado de construção literária hermética? O senhor buscou um estilo inacessível ?
Eco - Eu digo com frequência que o meu leitor ideal deve ganhar o prazer da leitura com esforço, como se ganha o prazer da paisagem escalando a montanha. O fato de que os meus romances, escritos a partir da violação de todas as regras do best-seller, transformem-se em fenômenos de vendagem prova que os leitores são mais exigentes do que acreditam os meios de comunicação de massa.

JMS – O Pêndulo de Foucault é uma critica das utopias clássicas, do poder, da razão absoluta e do marxismo ? Existe uma passagem em que uma brasileira, ex-estudante de sociologia em Paris, marxista, participa de uma sessão de candomblé. Trata-se da caricatura dá queda do materialismo diante do misticismo exótico ?
Eco – O episódio brasileiro do Pêndulo é uma parábola do que se passará com os meus personagens na Europa. Sim, eu pensei na crise do imaginário de maio de 68 e nisto que se chama de retorno do sagrado da parte de uma geração em crise de identidade. Mas este retorno não foi, na maioria dos casos, uma volta a teologias ou a filosofias. Retornou-se ao sagrado massificado, produto com o selo dos mercadores do absoluto. A literatura, em todo caso, resiste. Eu passei minha vida a colecionar livros antigos e a escrever livros novos. Sinto-me mal dentro deste tempo e só posso experimentar compreendê-Io , escrevendo, para fugir ao mal-estar.

JMS – Em vez de conflito entre cultura visual e cultura da leitura, o senhor prefere, de toda maneira, pensar em termos de integração?
Eco – O senhor falou no sucesso dos meus romances. No século XIX, certamente, eu teria conseguido um número menor de leitores, mesmo em proporção à população mundial da época. E então? Vê-se muito a televisão, constata-se a força da civilização da visão e esquece-se que há uma civilização da leitura em marcha. Ela não desapareceu. Ao contrário, expressa-se na sede de narrativas e na procura de jornais, de novelas de televisão, do cinema e dos livros. Reina o desejo da narrativa.

JMS – Mergulhado em viagens, conferências e cursos no exterior a rotina de um erudito célebre, o senhor encontra ainda tempo para a leitura?
Eco – Eu tenho cada vez menos tempo para ler livros. O problema mais grave para um sábio na atualidade é a enorme produção de preprints, os textos, inventários de pesquisa, que chegam antes da publicação. A relação de trocas científica passa-se, agora, através desses textos, verdadeira indústria anterior às edições. Quando uma pesquisa é publicada como livro, em geral, ela já está caduca.
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Novembro de 1992 (republicado em O pensamento do fim do século (L&PM)
* Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário. Tradutor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/29/04/2013

domingo, 28 de abril de 2013

" A forma de organizar o trabalho, hoje . Um olhar crítico "

 

Foto: http://t2.gstatic.com/

         Entrevista especial com José Roberto Montes Heloani

“Uma característica muito forte desse modelo de organização do trabalho é a solidão. Encontra-se rodeado de pessoas, mas verdadeiramente se está só”, constata o pesquisador.

A partir da experiência que possui ao longo dos anos na área da Psicologia do Trabalho, o professor Roberto Heloani, da Unicamp, identifica que foi se criando uma cultura dentro das organizações cujo mote é o seguinte: “aproveite enquanto der; o futuro ninguém sabe; nem você tem controle desse futuro”. Na entrevista que aceitou conceder por telefone à IHU On-Line, ele argumenta que, em uma situação como essa, “não se pode esperar dos jovens sonhos de longo prazo, uma lealdade estrita às pessoas e à organização e, muito menos, uma dedicação incondicional. Ele pode até trabalhar muito, até 16 horas por dia, como alguns trabalham, mas é um trabalho voltado para si, que quer uma recompensa rápida, imediata e de preferência segura. Ele construiu uma lógica que não é perversa”. E continua: “temos uma organização do trabalho que exige uma nova modelagem, uma nova subjetividade – chamo isso de manipulação da subjetividade – e responde com uma nova subjetividade: sendo individualista para melhor se adaptar a essa realidade. Quem é perverso não é o jovem, nem o gestor, nem o chefe. Se tem alguém perverso é a própria forma de organizar o trabalho. Essa forma diferenciada de organizar o trabalho tem obviamente benefícios, pontos positivos, mas também tem muitos pontos negativos”.

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, José Roberto Montes Heloani (foto abaixo) é mestre em Administração pela Fundação Getúlio Vargas/SP e doutor em Psicologia pela PUC-SP. É professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, na área de Gestão, Saúde e Subjetividade. Também é professor conveniado junto à Université de Nanterre (Paris X). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia do Trabalho, Saúde no Trabalho e Psicodinâmica do Trabalho. É membro-fundador do site www.assediomoral.org, coautor de Assédio moral no trabalho (São Paulo: Cengage Learning, 2008), e autor de, entre outros, Gestão e organização no capitalismo globalizado – História da manipulação psicológica no mundo do trabalho (São Paulo: Atlas, 2003).
Confira a entrevista.
IHU On-Line O que caracteriza o perfil dos jovens no mercado de trabalho? Como a intolerância a problemas e a cobrança por resultados aparece, nesse sentido?
Foto: http://portalimprensa.uol.com.br/

Roberto Heloani – Em primeiro lugar, precisamos reconhecer que o mundo do trabalho mudou de forma significativa, e aqui me refiro à forma de organizar o trabalho. Há 30 anos uma pessoa entrava para uma grande organização e sabia que poderia permanecer lá a vida toda, caso tivesse um bom desempenho, fosse uma pessoa leal à organização, que se aplicasse, se qualificasse, aproveitasse as oportunidades oferecidas pela organização, e se fosse minimamente disciplinada. E o sonho de muitos jovens era justamente fazer carreira na organização e depois ser substituído pelo próprio filho. Isso caracterizou o que chamamos de modelo fordista de produção, que era piramidal, com uma hierarquia mais explícita – não é que não se tenha hierarquia hoje em dia, apenas pessoas ingênuas pensam que ela não existe. Em consequência disso, o grande sonho era fazer certos sacrifícios, postergar a felicidade para depois ter os louros, a recompensa. O próprio modelo de produção era de longo prazo. Hoje não. Esse jovem já entra na escola e logo acaba recebendo a ideologia da internet, da informação virtual, na qual não se exige do sujeito grande reflexão, mas muito mais uma pró-atividade de resposta. Isso não quer dizer que o sujeito está pensando, mas que ele está sendo treinado para responder rapidamente.

O resultado disso é que, quando ele entra no mundo corporativo, começa a ouvir comentários de que aquela pessoa que estava lá outro dia já não está mais e que a média de permanência naquela organização é de 2 a 3 anos. Daí ele para e pensa: afinal de contas, me é permitido pensar que vou passar minha vida toda aqui? Será que essa será a minha casa? Será que devo compartilhar minhas angústias e incertezas com esse grupo? É outra lógica. Uma coisa é ter um amigo, uma pessoa com a qual você compartilha as ansiedades, desejos, medos, receios, neuras. E outra coisa é ter uma amizade profissional.

Esse jovem, desde cedo, aprende que no mundo do trabalho atual é preciso construir amizades profissionais, o que é diferente de construir amizades. A amizade profissional dura enquanto for do interesse de ambos. São raras as pessoas que saem de uma organização e mantêm contato com seus ex-colegas. Será que é porque são pessoas perversas e frias? Nada disso. São pessoas “normais”, que aprenderam que ter uma relação afetiva e efetiva pode ser até perigoso, porque essas amizades são datadas, não são verdadeiras.

A relação que se estabelece com os colegas é a mesma que se acaba tendo com as empresas. E esse perfil vai sendo moldado. Mais do que isso: vai se criando uma cultura dentro das organizações, e hoje boa parte delas está moldada por essa lógica, cujo mote é o seguinte: aproveite enquanto der; o futuro ninguém sabe; nem você tem controle desse futuro. É claro que em uma situação como essa não se pode esperar dos jovens sonhos de longo prazo, uma lealdade estrita às pessoas e à organização e, muito menos, uma dedicação incondicional. Ele pode até trabalhar muito, até 16 horas por dia, como alguns trabalham, mas é um trabalho voltado para si, que quer uma recompensa rápida, imediata e de preferência segura. Ele construiu uma lógica que não é perversa. Temos uma organização do trabalho que exige uma nova modelagem, uma nova subjetividade – chamo isso de manipulação da subjetividade – e responde com uma nova subjetividade: sendo individualista para melhor se adaptar a essa realidade. Quem é perverso não é o jovem, nem o gestor, nem o chefe. Se tem alguém perverso é a própria forma de organizar o trabalho.

Essa forma diferenciada de organizar o trabalho tem obviamente benefícios, pontos positivos, mas também tem muitos pontos negativos. Não é à toa que ainda nesta década, até 2020, segundo relatórios internacionais, a segunda causa de afastamento do trabalho será o transtorno mental, sendo que a mais recorrente será a depressão. Isso é gravíssimo. Uma característica muito forte desse modelo de organização do trabalho é a solidão. Encontra-se rodeado de pessoas, mas verdadeiramente se está só.

IHU On-Line – Quais são os novos formatos da agressão no trabalho?

Roberto Heloani – Quando comecei a trabalhar com o tema do
assédio moral, há mais de 15 anos, o assédio era mais explícito. Mas de uns tempos para cá ele está cada vez mais sofisticado, mais sutil. Temos o assédio a jornalistas, na área de serviços, na justiça, tem assédio a médicos, na academia, até nas grandes universidades, como USP e Unicamp. Ou seja, não é que o assédio não existisse há décadas. É óbvio que sim, mas por que hoje se fala tanto e por que ele tanto se disseminou?

Essa nova lógica do trabalho tende a reificar a coisificação das pessoas. Hoje não tenho grandes amigos, pois as pessoas que trabalham comigo poderão vir a ser meus concorrentes para uma futura vaga. Isso para um jovem de 20 e poucos anos é muito duro. É muito deseducativo saber que ele vai ter que desejar que tantas pessoas se deem mal para que ele garanta sua vaga. O próprio modelo de organização prega o trabalho coletivo. No entanto, as avaliações continuam sendo individuais. Isso causa na cabeça das pessoas uma sensação de guerra constante. Esse é o modelo indutor de agressão. Então, teremos desde agressões mais grosseiras e explícitas até aquelas bem sutis, acompanhadas de elogio, com grande cinismo. Não é à toa que o assédio moral se sofisticou, está complexo, mas extremamente destrutivo.

IHU On-Line – Qual o preço que os trabalhadores do mundo inteiro estão pagando em função da crise financeira internacional? Qual a especificidade do Brasil?

Roberto Heloani– A crise nos países europeus nos mostrou muito bem isso. A gente sabe que a União Europeia é algo difícil de se estabelecer, uma ficção. Não quero ser pessimista, mas me diga o que um português tem a ver com um grego? O que um grego tem a ver com um alemão? Sabemos que foi uma tentativa de fazer um acordo econômico. No entanto, a Europa tem línguas e culturas muito diferentes. Já não era uma união fácil. O que mantinha unidos povos tão diversos, que há pouco tempo se digladiavam, era o interesse econômico e o Welfare State – Estado-previdência.

Os países capitalistas centrais tentaram – e conseguiram – bolar um sistema na lógica keynesiana de redistribuição, que é a lógica da social-democracia. O projeto keyenesiano é um estado, dentro do capitalismo, minimamente protetor. Isso, até certo ponto, manteve as coisas a contento. Quando, a partir da década de 1980, esse projeto vai sendo paulatinamente substituído pelo projeto neoliberal, teremos o seguinte: o projeto neoliberal vai pregar, afinal de contas, outra lógica, que é a do “salve-se quem puder”, a lógica do Estado mínimo. Não compete ao Estado ficar pensando muito em educação, saúde, segurança, mas compete ao indivíduo. Esse projeto neoliberal diz o seguinte: você é o principal responsável por você próprio. Esse negócio de sociedade é um “lero”. O neoliberalismo vai, pouco a pouco, minando o Estado protetor, vai tornando esse Estado cada vez menor, menos interventor, menos positivo. E o mercado vai fazendo a vez do Estado.

É claro que, quando se tem uma concepção de Estado dessa forma, se acaba tendo outra concepção de sociedade e de homem, que vai induzir as pessoas a terem projetos voltados a um pequeno grupo social: a si e a família. Essa nova lógica econômica respinga nos países latino-americanos. Por que o Brasil foi um dos menos afetados? Porque ele foi, na América Latina, um dos poucos países que não aderiu ao projeto neoliberal. Ao contrário da Argentina e principalmente do Chile, onde a previdência foi privatizada.

O respingo da financeirização no Brasil ocorreu e ocorre até hoje. Temos uma inflação latente, um medo latente; porém, apesar de tudo isso, por termos um Banco Central com políticas de intervenção, graças ao governo Lula e ao Bolsa Família, conseguimos incluir como consumidores uma parcela significativa da população que estava totalmente à margem. É a política interna e as políticas públicas, as ações concretas do governo que amortecem os efeitos, ou, pelo contrário, exponenciam e os aumentam.

Nunca tivemos Estado de bem-estar social no Brasil. O emprego formal aumentou recentemente. Tem mais gente com carteira assinada, mas ainda temos subemprego. Onde se tem um capital financeiro muito forte em detrimento da produção, é claro que isso trará consequências para a questão do emprego. Há setores que estão se automatizando cada vez mais. Há também a questão dos terceirizados, que será regulamentada agora. Temos uma situação de uma classe média que perdeu muito, temos as chamadas classes C, D e E que se mantiveram, mas permanece no Brasil um percentual mínimo de pessoas, da ordem de 2%, que detém uma quantidade de riqueza estonteante. Isso é justamente consequência do processo de financeirização da economia.

IHU On-Line – Quando se fala de finanças e trabalho/emprego, o que podemos identificar como crise real e como crise imaginária?

Roberto Heloani – Ao contrário do que as pessoas pensam, a
lógica financeira trabalha muito com o imaginário social. Temos a especulação, que também usa e abusa dos medos, receios e ilusões das pessoas. Investir em ações pode ser até um ótimo negócio. Não sou contra a bolsa de valores. Só que para ganhar dinheiro nessa área ou a pessoa tem uma sorte absurda – então é melhor jogar na loteria – ou ela entende muito de negócios, é um profissional. A maior parte da população não tem nem uma coisa nem outra. Temos situações surrealistas, não de medo explícito, mas um receio, um temor latente, que faz com que as pessoas tenham atitudes que podem ser vistas como irracionais.

IHU On-Line – Como se configuram os processos de migração internacional de trabalhadores e de deslocamentos de empresas? Quais suas implicações no mundo do trabalho?
Roberto Heloani – Essa é uma questão complexa, que envolve aspectos financeiros, culturais e de violência simbólica. A questão dos
expatriados, por exemplo. Há pouco tempo, ser expatriado era um prêmio para um executivo. As pessoas comemoravam com champanhe e uísque escocês quando iam ser expatriadas. Hoje a coisa não é bem assim. Isso acontece menos e alguns sabem que, sendo expatriados, estão correndo um risco muito grande, mesmo que seja apresentado como uma promoção. Isso porque o grau de exigências a curto prazo é muito forte. Se a pessoa for vista pelo grupo que está lá à frente como alguém que veio roubar o cargo de outra ou obstaculizar a promoção de alguém, ela pode ser até boicotada, colocada de lado. É interessante como essa lógica atinge desde o jovem até o executivo sênior. A expatriação, em consequência disso, é vista com outros olhos.
Por Graziela Wolfart