sábado, 16 de junho de 2012

"" coragem "",de Martha Medeiros

MARTHA MEDEIROS
Coragem





A pior coisa do mundo é a pessoa não ter coragem na vida.” Pincei essa frase do relato de uma moça chamada Florescelia, nascida no Ceará e que passou (e vem passando) poucas e boas: a morte da mãe quando tinha dois anos, uma madrasta cruel, uma gravidez prematura, a perda do único homem que amou, uma vida sem porto fixo, sem emprego fixo, mas sonhos diversos, que lhe servem de sustentação.

Ela segue em frente porque tem o combustível que necessitamos para trilhar o longo caminho desde o nascimento até a morte. Coragem.

Quando eu era pequena, achava que coragem era o sentimento que designava o ímpeto de fazer coisas perigosas, e por perigoso eu entendia, por exemplo, andar de tobogã, aquela rampa alta e ondulada em que a gente descia sentada sobre um saco de algodão ou coisa parecida.

Por volta dos nove anos, decidi descer o tobogã, mas na hora H, amarelei. Faltou coragem. Assim como faltou também no dia em que meus pais resolveram ir até a Ilha dos Lobos, em Torres, num barco de pescador. No momento de subir no barco, desisti. Foram meu pai, minha mãe, meu irmão, e eu retornei sozinha, caminhando pela praia, até a casa da vó.

Muita coragem me faltou na infância: até para colar durante as provas eu ficava nervosa. Mentir para pai e mãe, nem pensar. Ir de bicicleta até ruas muito distantes de casa, não me atrevia. Travada desse jeito, desconfiava que meu futuro seria bem diferente do das minhas amigas.

Até que cresci e segui medrosa para andar de helicóptero, escalar vulcões, descer corredeiras d’água. No entanto, aos poucos fui descobrindo que mais importante do que ter coragem para aventuras de fim de semana, era ter coragem para aventuras mais definitivas, como a de mudar o rumo da minha vida se preciso fosse. Enfrentar helicópteros, vulcões, corredeiras e tobogãs exige apenas que tenhamos um bom relacionamento com a adrenalina.

Coragem, mesmo, é preciso para terminar um relacionamento, trocar de profissão, abandonar um país que não atende nossos anseios, dizer não para propostas lucrativas porém vampirescas, optar por um caminho diferente do da boiada, confiar mais na intuição do que em estatísticas, arriscar-se a decepções para conhecer o que existe do outro lado da vida convencional. E, principalmente, coragem para enfrentar a própria solidão e descobrir o quanto ela fortalece o ser humano.

Não subi no barco quando criança – e não gosto de barcos até hoje. Vi minha família sair em expedição pelo mar e voltei sozinha pela praia, uma criança ainda, caminhando em meio ao povo, acreditando que era medrosa. Mas o que parecia medo era a coragem me dando as boas-vindas, me acompanhando naquele recuo solitário, quando aprendi que toda escolha requer ousadia.


quarta-feira, 13 de junho de 2012

" Passe Adiante, de Martha Medeiros

MARTHA MEDEIROS

Passe adiante


Tenho vários DVDs de shows, e houve uma época em que assistia a eles atenta, ou então deixava rodando como som ambiente enquanto fazia outras coisas pela casa. Até que os esqueci de vez. Conhecedor do meu acervo, meu irmão outro dia pediu: posso pegar emprestado uns shows aí da tua coleção? Claro! Ele escolheu quatro e levou com ele. E subitamente me deu uma vontade incontrolável de voltar a assistir àqueles shows. Aqueles quatro, não é estranho?

Logo a vontade passou, mas fiquei com o alerta na cabeça. Me lembrei de uma amiga que uma vez disse que havia comprado um vestido que nunca usara, ele seguia pendurado no guarda-roupa. Um dia ela me mostrou o tal vestido e intimou: “Pega pra ti, me faz esse favor. Jamais vou usar”. Trouxe-o para casa. Muito tempo depois, ela me confidenciou, às gargalhadas, que não havia dormido aquela noite. Passou a ver o vestido com outros olhos. Por que ela não dera uma chance a ele?

Maldita sensação de posse, que faz com que a gente continue apegada ao que deixou de ser relevante. Incluindo relacionamentos.

Uma outra amiga vivia reclamando do namorado, dizia que eles não tinham mais nada em comum e que ela estava pronta para partir para outra. E por que não partia? “Porque não quero deixá-lo dando sopa por aí.” Como é que é?

Ela não terminava com o cara porque não queria que ele tivesse outra namorada, dizia que não suportaria. Reconhecia a mesquinhez da sua atitude, mas, depois de tantos anos juntos, ela ainda não se sentia preparada para admitir que ele não seria mais dela.

DVDs, roupas, amores: claro que não é tudo a mesma coisa, mas o apego irracional se parece. É a velha e surrada história de só darmos valor àquilo que perdemos. Será que existe solução para essa neura? Atribuir ao nosso egoísmo latente talvez seja simplista demais, porém não encontro outra justificativa que explique essa necessidade de “ter” o que já nem levamos mais em consideração.

É preciso abrir espaço. Limpar a papelada das gavetas, doar sapatos e bolsas que estão mofando, passar adiante livros que jamais iremos abrir. É uma forma de perder peso e convidar a tão almejada “vida nova” para assumir o posto que lhe é devido. Fácil? Bref. Um pedaço da nossa história vai embora junto. Somos feitos – também – de ingressos de shows, recortes de jornal, fotos de formatura, bilhetes de amor.

Isso sem falar no medo de não reconhecermos a nós mesmos quando o futuro chegar, de não ter lá na frente emoções tão ricas nos aguardando, de a nostalgia vir a ser mais potente do que a tal “vida nova”.

Qual é a garantia? Um ano para geladeiras, três anos para carros 0km, cinco anos para apartamentos. Pra vida, não tem. É se desapegar e ver no que dá, ou ficar velando para sempre os cadáveres das vontades que passaram.

domingo, 10 de junho de 2012

de Antonio Prata," Adeus às Cartas ",

                                                         ANTONIO PRATA

                                Adeus às cartas


Quem mais perdeu com a morte da carta não foi o amor ou a amizade, meus caros; foi o carteiro

QUE INJUSTO é o mundo: tanta saliva gasta discutindo se o Kindle acabará com o livro e se o iPad engolirá o jornal, mas nem uma lágrima rolada pela carta, essa personagem central dos últimos séculos, que foi solapada pelo e-mail e sumiu sem que nos déssemos conta, sem que pudéssemos velá-la ou guardar luto. Partiu da vida para entrar na história e não deixou, vejam só, sequer uma carta de despedida.

Claro que ainda nos chegam envelopes por baixo da porta, todos os dias, mas isto que agora encontramos próximo ao capacho assemelha-se tanto a uma carta como um jingle a uma sinfonia. Contas, propagandas, cardápio de restaurante chinês: tristes arremedos das gloriosas folhas de papel que outrora relataram o descobrimento de continentes, alimentaram amores impossíveis, aproximaram amigos distantes; ringues nos quais travaram-se as mais apaixonadas pelejas intelectuais.

Não, não cederei à tentação barata da nostalgia dizendo que o mundo era melhor antes, que as emoções escritas à mão são mais verdadeiras que as digitadas no teclado. Uma longa carta que levou três semanas para chegar da Europa não bate todos os encontros que nos proporciona o e-mail numa única tarde: um link enviado por meu pai, com uma gravação do hino do Linense, as fotos do Paulinho com a Glória no colo, as notícias do Chico, da Belle e da primavera em Chicago, as primeiras impressões da Cla na tríplice fronteira, o vídeo dos Corsaletti, assando seis porcos no rolete, num sítio em Anastácio.

Quem mais perdeu com a morte da carta não foi a amizade, meus caros, não foi o amor nem a profundidade: o grande órfão do declínio postal foi o carteiro. Esse distinto profissional, que em sua época áurea era um pouco enfermeiro, bombeiro, cupido -um serafim de baixo escalão, trazendo em sua bolsa verde a preciosa literatura cotidiana-, profanou-se, transformou-se em traficante, cobrador, garoto-propaganda de drenagens linfáticas e Chops sueys.

Havia uma ingenuidade na figura do carteiro, algo que pertencia essencialmente ao século 20 e que não cabe no 21: um homem a pé ou de bicicleta, um personagem do Jacques Tati, que vinha entregar à mão um bilhete escrito também à mão. Tudo isso se foi com um clique. Para o nosso bem, é verdade, mas se foi; era bonito e deve, portanto, ser lembrado.

É com este intuito que eu sugiro que a categoria processe a Microsoft por danos morais. Ou melhor, que processe os herdeiros de Samuel Finley Breese Morse, que por volta de 1835, em Poughkeepsie (NY) inventou o telégrafo, tornando possível enviar informações através de um fio -e deu no que deu.

O processo não visaria uma compensação material, mas simbólica (afinal, os carteiros não perderam os empregos, apenas a aura). Que seja construída, na praça mais simpática de cada cidade, uma escultura discreta, dedicada à memória de todo aquele que arriscou a vida pelo mundo, no frio cortante e no calor escaldante, perseguido por cachorros e à mercê de malfeitores, para que matássemos nossas saudades: um Monumento ao Carteiro Desconhecido. E -quem sabe?-, também ao século 20, que mal terminou e já nos parece tão estranhamente distante.

antonioprata.folha@uol.com.br

" A Força do Hábito" de Hélio Schwartsmann

HÉLIO SCHWARTSMAN

A força do hábito

Por que é tão difícil se livrar de costumes e dependências

RESUMO

Quase metade das ações que executamos diariamente não são produto de decisões deliberadas, mas do hábito. Livros recentes mostram como rotinas se tornam vícios, como empresas se aproveitam dos costumes dos clientes para aumentar vendas e como mudanças de hábitos podem reduzir mortes em hospitais.

Qualquer comportamento humano é o resultado da interação de uma série de variáveis, que incluem desde inflexíveis características genéticas até detalhes exoticamente mundanos, como a temperatura em que foi deixado o ar condicionado, passando pelo mais puro acaso. Se há uma força que se destaca nessa multidão de impulsos e disposições, é o hábito.

Pesquisadores da Universidade Duke estimaram, num trabalho de 2006, que mais de 40% das ações que executamos diariamente não são produto de decisões deliberadas, mas do hábito. Seria difícil superestimar sua importância.

Hábitos nos permitem executar uma miríade de atividades intimamente associadas a nosso bem-estar e são uma das principais forças a movimentar a economia mundial. A capacidade de modificá-los está intimamente associada ao sucesso de pessoas e empresas.

Do lado negativo, hábitos estão ligados à dependência de drogas e a outros comportamentos destrutivos e são o ponto a partir do qual políticos, publicitários e outros segmentos da mídia tentam (e muitas vezes conseguem) influir em nossas decisões e manipular-nos o comportamento.

O hábito é basicamente uma rotina neurológica pela qual executamos uma tarefa de modo mais ou menos automático, como escovar os dentes, dirigir pelo trajeto de sempre, acender um cigarro após as refeições ou, no caso de uma tartaruga marinha, voltar sempre à mesma praia em que nasceu para depositar seus ovos.

Trata-se de uma ferramenta de aprendizado, a forma favorita da natureza de fixar comportamentos úteis para a sobrevivência. É pelo hábito que a maior parte dos vertebrados navega pelo mundo.

Nós, humanos, ao lado de alguns outros mamíferos, somos um pouco diferentes. Temos uma certa flexibilidade e, por isso, não nos fiamos inteiramente no hábito.

O problema é que o comportamento flexível demanda enormes recursos atencionais e, portanto, energéticos (o sistema nervoso central consome sozinho cerca de 25% do oxigênio que respiramos).

Sempre que pode, o cérebro tenta converter atividades rotineiras em hábitos e, com isso, poupar energia e liberar espaço para outras tarefas.

VÍCIO

Em termos neurológicos, os gânglios basais parecem ser o lugar onde armazenamos nossos hábitos. Essas estruturas primitivas também já foram associadas ao controle de sistemas motores (elas têm um papel importante na doença de Parkinson) e aos centros de recompensa, envolvidos no aprendizado e no vício em drogas.

Um pouco desprezado pelos cientistas, que o viam como algo repetitivo e aborrecido e que evocava os piores momentos do behaviorismo, o hábito está dando sua volta por cima. Nos últimos anos, vários livros detalharam seus mecanismos de funcionamento e destrincharam suas implicações.

Um recente é "The Power of Habit: Why We Do What We Do in Life and Business" [Random House, 400 págs., R$ 79] , de Charles Duhigg. O autor não é cientista nem divulgador de ciência. É repórter de negócios do "New York Times" e começou a se interessar pela força do hábito para modificar comportamentos quando cobria a guerra no Iraque.

No início da ocupação, o país era castigado por episódios quase diários de manifestações violentas. Mas havia uma notável exceção. A pequena cidade de Kufa despontava como ilha de tranquilidade. O responsável pela façanha era um major do Exército dos EUA, que, após analisar vídeos de protestos que descambavam para a violência, resolveu fazer um experimento. Mandou retirar todos os vendedores de comida da praça de Kufa. Deu certo.

O major identificara um padrão, um hábito organizacional. Os manifestantes se juntavam na praça aos poucos e iam atraindo a atenção de passantes, que paravam para observar, engrossando a multidão. Então apareciam os vendedores de comida. Alguém gritava um slogan antiamericano, jogava uma pedra ou uma garrafa e o pandemônio começava.

Sem os vendedores de comida, que haviam se tornado um dos gatilhos da rotina de violência, o ciclo não se completava. Os passantes, com fome e sem ter como saciá-la, preferiam ir para casa, desmobilizando os manifestantes.

"The Power of Habit" é um livro gostoso de ler. Duhigg escreve bem e recheia a narrativa com casos humanos e boas histórias sobre empresas, algumas com potencial para nos deixar preocupados, como veremos adiante. Poderia ter sido um pouco mais meticuloso ao descrever a ciência do hábito, mas a verdade é que a neurofisiologia é uma disciplina que não costuma atrair multidões de fãs.

Na versão simplificada, hábitos se materializam como um circuito de três fases. Eles são desencadeados por uma sugestão que funciona como gatilho, disparando a rotina gravada nos gânglios basais. Essas rotinas podem ser tanto físicas (meter os dentes numa barra de chocolate) como mentais (lembrar a infância sempre que se come um biscoito).

Em seguida vem a recompensa, que costuma ser uma boa descarga de dopamina, conhecida jornalisticamente como molécula do prazer. Trata-se de um mecanismo de "feedback" positivo.

Isso significa que, quanto mais o usamos, mais ele se solidifica em nossas mentes. Daí a dificuldade em abandonar velhas práticas, notadamente as que nos fazem mal. Esse mecanismo se manifesta na forma de "craving" (fissura), que é o desejo incontido de executar a rotina despertado pelo gatilho.

Outra implicação é que nunca nos livramos de verdade nossos hábitos, mesmo quando nos esforçamos para mudá-los. A rotina antiga é alterada, mas fica armazenada em algum recôndito de nossas mentes. O bom é que não precisamos reaprender a dirigir sempre que voltamos de férias. O ruim é que, sob estresse, alcoólatras e outras vítimas de dependência podem recair nos velhos padrões.

EMPRESAS

Hábitos não estão limitados a pessoas. Eles também estão presentes na vida de empresas e organizações. Pior ainda, empresas e organizações tentam explorar os hábitos de pessoas, mais especificamente de consumidores, para aumentar seu faturamento.

Um exemplo é o do McDonald's. As lojas seguem uma planta standard e tentam ser o mais parecidas possível, inclusive nas fórmulas de tratamento usadas pelos funcionários. A ideia é que tudo sirva como gatilho para disparar as rotinas de alimentação dos clientes. Eles se sentirão reconfortados e recompensados. E quanto mais forem ao McDonald's, mais quererão voltar.

Um caso assustador narrado por Duhigg é o da rede Target. Grávidas são uma mina de ouro para o comércio, não só porque gastam muito nos enxovais, mas, principalmente, porque esse é um momento em que elas (e os maridos) são particularmente vulneráveis a alterar hábitos de consumo, potencialmente para o resto da vida.

Diante disso, a Target, que vende um pouco de tudo, de móveis e eletrodomésticos a comida, a preços atrativos, resolveu que precisava descobrir quais clientes estavam começando uma gravidez para ganhá-las para todo o sempre.

Para isso contratou o economista comportamental Andrew Pole, que desenvolveu um algoritmo matemático para, com base em alterações bruscas nos itens comprados -coisas como vitaminas, loções, bolsas grandes-, identificar quais estavam grávidas. Aí era só enviar-lhes os cupons certos, com descontos para lindos berços e estoques de fraldas, e fisgá-las.

É claro que nada pode ser tão explícito. Muitos ficariam irritados se descobrissem que seu supermercado xereta o que compram para ampliar vendas. Assim, a Target não poderia só enviar cupons de produtos relacionados a bebês para as grávidas. A solução, genial, foi mandar essa publicidade específica misturada à de outros itens, fazendo parecer que tudo não passou de feliz coincidência.

A moral da história, que dá razão aos paranoicos, é que é preciso ter cuidado ao passar o cartão de fidelidade no caixa. Sua loja favorita pode estar descobrindo seus segredos mais íntimos.

LESÕES

Esses exemplos mundanos podem dar a impressão de que o hábito ocupa um lugar marginal em nossas vidas mentais, mas seu papel é absolutamente central.

Pessoas com lesões nos gânglios basais perdem a capacidade até de decidir o que vão comer ou de abrir uma porta. Sem os atalhos proporcionados pelo hábito, ficam mentalmente paralisadas, impossibilitadas de ignorar os detalhes insignificantes que continuamente inundam nossas cabeças.

Para Duhigg, o segredo para mudar os hábitos é manter o gatilho e a recompensa antigos, mas alterar a rotina. Parece banal e de fato é. O detalhe é que as pessoas nem sempre estão cientes de quais gatilhos disparam seus costumes.

O que programas como o Alcoólicos Anônimos (AA) fazem é oferecer condições para que a pessoa perceba que situações acionam a "fissura" que a leva a beber e substitua a rotina por outras que também produzam satisfação. A visita ao bar é trocada por uma reunião ou conversa com o padrinho.

O autor sustenta que, em princípio, por esse esquema de reconhecimento e substituição, qualquer hábito pode ser modificado. Aqui está o ponto mais fraco do livro de Duhigg. É claro que, em princípio, toda rotina automática pode ser alterada.

Pessoas se curam até da dependência de heroína. Mas, quando vemos as legiões de fumantes incapazes de largar o vício e exércitos de obesos que não conseguem perder peso, vemos que fazê-lo tende a ser mais complicado do que sugere a teoria.

Ao não valorizar devidamente as dificuldades, que são epidemiologicamente aferíveis, Duhigg, se não chega ele próprio a resvalar na literatura de autoajuda, abre uma avenida para seus promotores.

Cuidado, não estou afirmando que todos os títulos de autoajuda são lixo. Muitos de fato o são, mas nem todos. Uma honrosa exceção é "Switch: How to Change Things When Change Is Hard" [Crown Business. 320 págs. R$ 33 mais taxas] , dos irmãos Chip e Dan Heath, com várias publicações na área de negócios.

Embora "Switch" busque auxiliar o leitor a desenvolver estratégias para alterar seus hábitos e os das organizações de que faça parte, está calcado em boa ciência. Enquanto Duhigg caminha pelas sendas da neurociência, os irmãos Heath apostam na psicologia. Para eles, a dificuldade para alterar uma rotina decorre do fato de que nossas mentes são o campo de batalha onde razão e emoção se enfrentam pela supremacia sobre nossas ações. Enquanto o cérebro racional deseja uma silhueta esbelta, o emocional está mais interessado em repetir a sobremesa.

De modo geral, a razão gosta de mudança, enquanto a emoção prefere o conforto da rotina conhecida. Embora costumemos pensar em nós mesmos como seres racionais e ponderados, um enorme corpo de experimentos psicológicos esboça quadro mais complexo.

ELEFANTE

Emoções, para utilizar a imagem do psicólogo Jonathan Haidt, são um elefante; a razão, o condutor desse elefante. O animal obedecerá ao piloto, mas apenas enquanto estiver disposto a fazê-lo. Quando os dois estão de acordo, tudo transcorre bem, mas, quando divergem, o elefante tende a levar a melhor. Ele, afinal, é o mais forte e o mais resistente. Há outras circunstâncias, mais raras, em que o condutor convence o bicho a mudar de ideia. É aí que se inscrevem as mudanças de hábito.

Embora a prosa dos Heath não seja saborosa como a de Duhigg, eles também recorrem a casos interessantes, como o de Donald Berwick, médico e CEO do Institute for Healthcare Improvement.

Berwick queria reduzir o número de mortes por erros de procedimento em hospitais dos EUA. A taxa de "defeito", isto é, de erros como não ministrar a droga certa na quantidade e na hora especificadas, era de absurdos 10% no início dos anos 2000. Na maioria das indústrias, esse índice é inferior a 0,1%. Isso significava que dezenas de milhares morriam desnecessariamente a cada ano.

Nada disso era novidade. Os números eram conhecidos e todos sabiam mais ou menos o que deveria ser feito, mas as mudanças simplesmente não aconteciam. Foi aí que, em 14 de dezembro de 2004, numa convenção de administradores hospitalares, Berwick lançou o desafio. Propôs que, até as 9h de 14 de junho de 2006, ou seja, dali a 18 meses, as pessoas naquela sala salvassem 100 mil vidas.

A plateia ficou chocada, mas Berwick sugeriu que todos ali se comprometessem a implementar seis medidas específicas capazes de produzir enorme retorno. Algumas eram simples, como garantir que a cabeceira da cama de todos os pacientes estivesse com inclinação entre 30° e 45°, modo eficaz de prevenir pneumonia, complicação comum e frequentemente fatal.

Eles concordaram, mas não foi fácil. Aceitar as medidas implicava reconhecer que os hospitais tinham taxa elevada de erros e que produziam mortes desnecessárias, um pesadelo para os departamentos jurídicos. Mas a coisa ganhou força e, dois meses depois do discurso, mil hospitais haviam formalizado adesão à campanha.

Em 14 de junho de 2006, Berwick anunciava que os hospitais participantes da campanha das 100 mil vidas tinham evitado coletivamente 122.300 mortes, segundo cálculos dos epidemiologistas. Mais importante, a maior parte das seis medidas propostas havia sido institucionalizada. Os hospitais dos EUA se tornaram lugares um pouco menos perigosos.

Para os irmãos Heath, a receita da mudança de hábito tem três partes. Primeiro, dirija-se ao condutor do elefante. Muitas vezes, o que parece resistência é apenas falta de clareza. No caso de Berwick, as instruções ao piloto vieram na forma das seis intervenções.

Motive o elefante. O que parece preguiça pode ser só exaustão. O condutor não consegue opor-se ao animal por muito tempo, assim, é preciso colocar o lado emocional para trabalhar a favor da mudança. No exemplo, a motivação é salvar 100 mil vidas em 18 meses.

Modele o caminho. O que parece falha de caráter é às vezes só problema situacional, quando você altera um bocadinho as coisas para que a mudança pareça mais factível, ela se torna mais provável. Berwick modelou o caminho ao criar um sistema simples de adesão que logo se tornou corrente.

TRÁGICO

David DiSalvo, autor de "What Makes Your Brain Happy and Why You Should Do the Opposite" [Prometheus, 280 págs., R$ 43] , tem visão mais trágica. Para ele, o cérebro evoluiu para tornar-se uma máquina de fazer previsões. Para tanto, especializou-se em identificar padrões, antecipar ameaças e forjar narrativas. Ele ama a estabilidade e tem horror à incerteza e à imprevisibilidade, ameaças existenciais.

O problema é que, ao desenvolver a capacidade de se defender dessas supostas ameaças, nossos cérebros deixaram para trás subprodutos que jamais conseguiremos desentranhar de nossas atitudes e nossos pensamentos. Exemplos dessas inclinações incluem nossa obsessão por certezas, a confiança excessiva na memória, a disposição para achar que tudo tem um significado especial, a vontade de estar no controle etc.

Embora esses vieses deixem nossos cérebros felizes, isso nem sempre serve a nossos interesses no mundo moderno. Lembre que nossas mentes foram criadas para operar no paleolítico, não em sociedades tecnológicas e plurais.

Sintomaticamente, o livro de DiSalvo é o que reúne menos exemplos. É também o que traça panorama mais completo dos recentes achados científicos sobre aspectos salientes da natureza humana. O hábito é um dos personagens, mas, como estamos num romance sem protagonistas, não faz tantas aparições quanto nos outros livros.

Para o autor, os últimos achados da neurociência e da psicologia cognitiva desferem um golpe na literatura de autoajuda, ao mostrar como a maioria dos conselhos são vazios e até fraudulentos. O caminho, diz DiSalvo, é usar a ciência para entender por que nossos cérebros encerram vieses que nos colocam em encrencas e por que temos dificuldade em sair delas.

Curiosamente, DiSalvo finaliza o livro com 50 pérolas de sabedoria extraídas de um corpo que parece consistente de evidências científicas. São conselhos como "cuidado com nossos vieses", "termine o que começou", "crie hábitos úteis" etc. -um fecho paradoxal para um autor tão crítico à autoajuda.

Uma explicação possível é que, entre os pendores inextinguíveis do gênero humano, estão o medo da incerteza com o futuro e a necessidade de estar no controle, que, juntos, asseguram que, enquanto os humanos forem humanos, haverá interesse pela autoajuda. As melhores evidências disponíveis provam que esse é um hábito que não conseguiremos mudar nem com o auxílio de muita ciência.

sábado, 9 de junho de 2012

Vivemos o desprestígio do professor universitário, porque já se sente que ele deixará de ser um produtor para ser um reprodutor de conhecimento.

Nosso papel não é a alfabetização hipertardia

Paulo Ghiraldelli Jr.*

As universidades federais vão se tornando grandes colégios, cobrindo os buracos do ensino médio ruim. A pesquisa? Que SP arque com USP e Unicamp

Não há nenhum complô do governo Dilma contra as universidades federais. As universidades federais entraram em greve não por uma decisão do governo em diminuir a qualidade do ensino por meio de arrocho salarial.
Ao contrário, elas entraram em greve pela razão de que há uma despreocupação do governo Dilma em tomar cuidado para que as universidades federais não se transformem em grandes colégios.
Pela maneira como o nosso progresso se deu, acabamos por nos acomodar com a seguinte situação: se precisamos de pesquisa de ponta, parece que ficamos satisfeitos com o que faz a USP e a Unicamp. Se o nosso ensino médio público não funciona mais, parece que ficamos mais satisfeitos ainda em transformar toda a rede federal de ensino superior em um bom substituto para ele.
Desse modo, que o Estado de São Paulo arque em manter universidades com o nome de universidades, pois aí as federais poderão ter professores melhor pagos que os de ensino médio para fazer melhor o que o ensino médio fazia.
Não é que um governo sozinho tenha tomado essa decisão. Várias decisões de ordens diferentes foram tomadas nos governos FHC, Lula e agora Dilma. Todos colaboraram para que, no frigir dos ovos, esse fosse o resultado.
Como resultado, o que está se configurando é exatamente isto: não é necessário que o professor de ensino superior federal tenha o salário que tinha, já que as federais não conseguiram despontar no ranking mundial.
Ora, não há razão de termos mais ciência nacional, filosofia feita em casa e tecnologia para nós mesmos se, no cômputo maior, vamos trabalhar com importações e, no miúdo e contingente, com a USP e a Unicamp.
Esse pensamento não corre pela cabeça de ninguém individualmente. No entanto, é exatamente isso que aparece como a intenção que poderíamos imputar à política brasileira dos últimos 18 anos. Ninguém intencionou isso. Mas o resultado de intenções diversas e, talvez, até contrárias a essa situação está levando a ela.
O regime de trabalho de dedicação exclusiva do professor universitário deve ser preservado. Não se pode jogar fora a rede universitária federal como rede universitária. Ela não pode e não deve ser uma nova rede de alfabetização hipertardia, como ocorreu com as faculdades particulares criadas no boom do ensino superior gerado pela ditadura militar.
Vivemos o desprestígio do professor universitário, porque já se sente que ele deixará de ser um produtor para ser um reprodutor de conhecimento. É um efeito colateral do tipo de desenvolvimento que estamos tendo.
Um subproduto desse desenvolvimento é a busca de desenvolvimento pessoal de cada brasileiro sem que isso signifique ampliação de cultura. Pode significar conquista de diploma, mas não um salto para se transformar em um indivíduo melhor. Esse sonho do brasileiro de "se fazer pela educação" foi o sonho dos da classe média ou mesmo dos trabalhadores até 1970 ou 1980. Não é mais o que o brasileiro pensa.
A presidente Dilma faria muito se pudesse retardar essa desgraça, até que a sociedade, talvez por sorte, venha a acreditar que vale a pena ter bons professores universitários e que para tal se deve pagá-los com um salário que, na entrada dos anos 1990, não era ruim.
Pois, se a sociedade voltar a pensar assim, então o mecanismo normal do parlamento democrático, suscetível à população, funcionará em favor da universidade.
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* PAULO GHIRALDELLI JR., 54, é filósofo, professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor, entre outros, de "Lições de Paulo Freire" (editora Manole)
Fonte: Folha on line, 07/06/2012
Imagem da Internet

" o inesquecível de uma atitude",J.J.Camargo

                                         O inesquecível de uma atitude

J.J.Camargo [ é cirurgião torácico e diretor do Serviço

de Transplante da Santa Casa de Misericórdia]


Nas relações coletivas ,há uma compreensível tendência a valorizar o macro,em dettrimento do pormenor,porque este teoricamente interessa a menos gente.Esse princípio,que pode ser válido,por exemplo,na avaliação de marketing,não funciona assim na percepção de alguém fragilizado pelo medo da morte,atento aos mínimos detalhes,terrificado que está pela sensação torturante de que é o mais vulnerável dos mortais.
Isto explica as respostas inesperadas quando perguntamos a um paciente qual foi a experiência mais marcante ou a descoberta mais memorável de sua internação.
Usualmente , a resposta é a descriação de uma situação que não valorizamos e contransgedoramente,assumimos que nem havíamos percebido.
O Ramires ,um advogado do centro - oeste,queixoso de maus tratos em outro centro onde seu transplante de pulmão foi negado porque ele tinha também uma grande hérnia de hiato,foi admitido no nosso programa e três meses depois transplantado.
No fim do procedimento ,a hérnia que tinha sido o pivô da recusa foi corrigida,e o pós operatório foi uma maravilha.
Duas semanas,depois,por ocasião da alta,peguei uma carona na sua alegria e talvez por carência ou simplesmente necessitado de um elogio,perguntei-lhe:" O que foi o mais inesquecível dessa sua experiência hospitalar?"
E,ele ,meio encabulado ,mas com o olho brilhando de emoção:" de tudo o que aconteceu aqui ?!"... - " Sim,tudo !"
" Bem,foi a chegada ao hospital.O Senhor lembra que me chamou às duas da madrugada? Pois quando cheguei ao Dom Vicente Scherer ,eu estava com tanta falta de ar,que nem me animei a acompanhar minha mulher no estacionamento,apesar de saber dos riscos daquele hora.;Ela me deixou na portaria onde fui recebido pela Ana Lúcia,uma mulata de sorriso lindo,que me disse:" não perrca tempo aqui,porque a burocracia eu faço depois com a sua esposa.Suba diretamente para a UTI,aonde vão lhe preparar para o transplante".
E então ela me ajudou com o carrinho do oxigênio até o elevador e quando a porta ia fechar ela pôs a mão,a porta reabriu,ela me deu um beijo e me disse "" boa sorte... eu vou rezar pro senhor!"
Voces são maravilhosos mas o que certamernte nunca vou esquecer é a sensibilidade e o afeto daquela moça,que tendo percebido meu medo e aminha solidão naquela madrugada fria,foi capaz de ser solidária,doce e generosa.
Foi assim que uma simples atitude se cristalizou no coração daquele homem.
Inesquecivelmente,e ah.... doutor,o seu transplante foi bem legal!

" Pais & Filhos " - Cláudia Laitano

                                                                   CLÁUDIA LAITANO

                                       Pais & filhos

Os bebês invadiram o mundo – ou pelo menos o mundo virtual. Eles são onipresentes nas redes sociais: bebês sorrindo, bebês chorando, bebês de roupa nova, bebês tomando banho. Nunca participamos tanto da primeira infância alheia ou fomos tão detalhadamente informados sobre rotinas que pouco ou nada interessam a quem não é próximo da criança. Sua majestade, o bebê, é provavelmente o ser vivo mais filmado e fotografado do planeta – seguido de perto por gatos fofinhos e a realeza britânica.

Bebês talvez sejam mesmo a face mais luminosa da existência. Onde mais, seja você o Steve Jobs ou o vendedor de maçãs da esquina, seria possível encontrar uma combinação tão magnífica de amor incondicional, possibilidades ilimitadas e futuro a perder de vista? Não é à toa que os pais exibem as fotos de seus filhos nas redes sociais como antigamente se compartilhavam cartões-postais das pirâmides ou da Torre Eiffel.

Sim, eles são lindos, sim, eles são amados, mas, mais do que isso, eles são um instantâneo de um momento de plenitude em meio à inevitável imperfeição de todo o resto. Quem tem um bebê em casa não está pensando no que ele já foi nem sabe ainda o que ele será. O bebê muito desejado é um doce e prolongado presente, nos dois sentidos. E estar “presente no presente”, dizem, é o mais perto da felicidade que a gente consegue alcançar.

No outro extremo desse presente sorridente e absoluto, encontram-se os filhos encarregados de cuidar dos pais no fim da vida. Aqui é o peso do passado, tenha ele sido feliz ou nem tanto, e a angústia em relação ao futuro que tomam conta do dia a dia. O presente torna-se precário – e, em muitos casos, fisicamente doloroso.

Perder os pais, ou a sua lucidez, nos torna órfãos não apenas da companhia deles, mas da alegre inconsequência de nunca pensar muito a sério na própria finitude. (Imaginem que experiência transcendente essa que viveu a filha do Niemeyer, que morreu esta semana, aos 82 anos, deixando o pai vivo e lúcido chorando por ela.)

Ao contrário dos bebês, pais e avós não são exatamente um hit nas redes. Talvez essas cerimônias privadas de adeus não caibam mesmo na superficialidade de um tweet ou de um retrato de celular – embora experiências de dor, por mais diferentes que sejam da nossa própria realidade, nos ensinem muito mais sobre a condição humana do que os momentos de felicidade e plenitude alheios.

Nos últimos dias, foram publicados dois belos textos sobre o assunto – dois relatos corajosos e tocantes de filhos que perderam os pais. O primeiro, na capa da revista Time desta semana, assinado pelo jornalista Joe Klein: “Como Morrer: o que aprendi dos últimos dias dos meus pais”, em que o autor narra como enfrentou a responsabilidade de ter que decidir sobre a vida e a morte dos pais.

O outro, “O Cérebro do Meu Pai”, publicado na revista Piauí de junho e assinado pelo escritor americano Jonathan Franzen – um dos grandes autores da minha geração –, é provavelmente o texto mais comovente e profundo sobre a experiência de conviver com um paciente de Alzheimer que eu já li.

Entre outras coisas, Franzen revela que a excruciante experiência de ver o pai indo-se aos poucos, paradoxalmente, o fortaleceu: “Tornei-me, no geral, um pouco menos medroso. Uma porta ruim se abriu, e descobri que era capaz de atravessá-la”.

quinta-feira, 7 de junho de 2012


                                A leitura é uma porta aberta para um mundo de descobertas sem fim.
 

     
                                     "Ainda faço um livro onde nossas crianças possam morar."
                                                               ╰☆╮Monteiro Lobato ╰☆╮
                                    "Não sou aquele que sabe, mas aquele que busca."
                                                                    Hermann Hesse

domingo, 3 de junho de 2012

Viajar traz consigo a sublimação de nossas fronteiras

Pregrinar ,transcender a própria existência
Viajar traz consigo a sublimação de nossas fronteiras imaginárias.Ao pisarmos em solo estrangeiro ,é a fé,no diferente,no destino e no mundo que nos move.Guardamos em nossa memória pretérita ,fatos,e emoções passadas,momentos que nos inspiraram e guiaram.Preparar a bagagem e o espírito para o diferente,é rascunhar um prefácio dessa história de buscas.Afinal,a vida exprime nossa vocação natural em buscar a felicidade e a transcendência.
Aprendi desde cedo a confiar na natureza e a compreender que, por mais divergente que algo pareça inicialmente,haverá uma conexão inevitável entre os homens.
Hinduístas,budistas,judeus,católicos,tribos politeístas africanas e seguidores de Alá - são tantos grupos ,e tantos rituais que se unem em um mosaico formado por pessoas de todas as convicções,religiosas ou não,e que vêem na fé um veículo que propulsiona a determinação para viver.
Cresci acreditando em anjos e em santos,e ao longo do percurso vi que não immporta a manifestação,ou cultura,todos queremos celebrar a vida.Inesquecível a alegria purificante das festividades organizadas pela família libanesa de minha vizinha Rhani,dançando descalços e abraçados em ciranda.
Os olhos emocionados de monges e gerações de budistas concentrados na cerimônia de Ladakh, o lado tibetano da India,são votos de fé a disseminar as orações pela iluminação do mundo.A voz dos cânticos de um devoto muçulmano ecoa modulada da torre da mesquita e me desperta do sono para ser testemunho da fé,enquanto milhares de fiéis marcham com destino a Meca.Reconheci o brilho da fé inabalável nos olhos de um " baba ",um mentor espiritual hinduísta que havia percorrido a Ásia de bicicleta até encontrar a paz meditativa no moento Kailash,no Himalaia.
A verdade revela-se ao longo caminho dos peregrinos,da mesma forma intraduzível ,com destino ao Muro das Lamentações em Jerusalém,em Santiago de Compostela ou na celebração á margens do rio Ganges,em Varanasi.
A expressividade pulsante das danças africanas ensinadas através de gerações exorcizam o mal que assola o mundo dos homens,com as bênçãos de seus deuses ancestrais.Na fé sem fronteiras,o homem transcende sua própria existência,abrindo-se para o infinito mistério da vida.

Texto de Aline Sturmer

" Fé Sem Fronteiras "...

Entre a fé e o caos
Varanasi, a cidade mais sagrada da Índia, abre-se para aqueles que buscam a iluminação. Aqui, perder-se também parece ser um dos caminhos da fé
Texto: Aline Stürmer
foto: Renan Rosa


Com o pôr do sol, Varanasi inicia mais um “puja” às margens do rio Ganges – a grande mãe do país. “Jai Ganga Maiki!” (“glória à nossa mãe Ganges!”), ressoam as preces de devotos, enquanto flores e velas flutuam sobre o rio, embalados pelo badalar de sinos, cantos e danças. A celebração conduzida como “Adoração ao Fogo” é dedicada ao rio, ao deus hindu Shiva, ao Sol e ao Fogo, e recebe diariamente milhares de peregrinos vindos de toda a Índia a fim de purificar suas almas, permitindo a comunhão com o divino.

Varanasi, a “terra de luz sagrada”, rivaliza com Damasco, a capital síria, pelo título de mais antiga cidade ainda habitada do mundo. Apesar de suas origens serem desconhecidas, para os hinduístas a cidade representa um centro cósmico do universo, fundado por Shiva há cerca de cinco mil anos e, desde então, figura como centro comercial e industrial, com destaque para a produção de seda, perfumes, tapetes e artesanato.

No país em que grande parte das cidades apresenta dois nomes, a interseção dos afluentes Varuna e Asi fornece mais de uma centena de denominações. Os nativos ainda referem-se a ela como Banaras ou Benares, por conta do rei mitológico Benar, e como Molini, a “cidade do jardim de lótus”, a flor utilizada nas preces hinduístas.

A cidade hoje é um aglomerado de templos, antigas universidades e mitos contraditórios perpetuados através de gerações, que durante séculos usaram as inundações frequentes do Ganges para promover a fertilidade dos solos adjacentes, garantindo alimentação desde o surgimento das primeiras civilizações às margens do famoso rio. O nível da água oscila entre os períodos de monção, de junho a setembro, quando Varanasi vê suas escadarias sagradas – os famosos ghats – engolidas pelos 7 quilômetros de águas turvas, de cor marrom.

Imersão purificadora
Às seis da manhã, um labirinto de becos conhecidos como “galis” brilha com as cores do pluralismo arquitetônico desordenado de Varanasi, conectando os ghats com comércios tradicionais e mercearias. Figuras solitárias e famílias absorvidas em pensamentos de salvação aguardam o momento de imersão no santo rio para a purifição de seus pecados e problemas mundanos. Integrantes da casta brâmane, conhecidos como pandas, recitam passagens de textos sagrados enquanto homens santos demarcam as testas de peregrinos como sinal de veneração aos deuses. Os corpos ali cremados têm suas cinzas lançadas ao rio, em uma representação da liberação do samsara, o ciclo de morte e reencarnação defendido por religiões como o budismo e o hinduísmo.

O fato é que Varanasi tornou-se sinônimo de panaceia religiosa, social e econômica, em meio ao seu dinamismo caótico. O trabalho infantil parece ser um senso comum, com crianças ofertando pulseiras, pingentes e cartões-postais a visitantes, e adolescentes trabalhando com o translado de barcos às margens do Ganges, principalmente no período da manhã, horário mais requisitado e popular para passeios nessas embarcações. Nos degraus iniciais, hinduístas se ensaboam, ou apenas sinalizam três gotas sobre a boca ou cabeça, enquanto outros cantam mantras durante o banho vital.

Gado e macacos nas vielas
Mulheres indianas iniciam a movimentação de compras familiares entre bazares nos quais é possível encontrar até o que os deuses duvidariam. Queijo coalho de cabra, essências de perfumes de lótus e sândalo, garrafas com água sagrada do Ganges estão presentes entre inumeráveis lojas de doces com latika lavanga (sobremesa feita com coco), lassi (bebida à base de iogurte com especiarias) e samosa (salgados vegetarianos fritos ou assados), além de ateliês improvisados de costura e lojas de cítaras. O gado, venerado em todo o país, ocupa as vielas, obstruindo a passagem de peregrinos e pedestres com seus excrementos e chifres pontiagudos. Os macacos são os coadjuvantes nessa feérica movimentação urbana, correndo aflitos entre terraços e telhados irregulares das casas, à procura de alimento e eventuais peças de roupas.
Varanasi tem a bênção do deus Shiva, mas também de outras religiões como o islamismo e o budismo. A comunidade muçulmana, segundo maior grupo religioso do país, pertence, em grande parte, à casta tecelã ansari e reside em torno da mesquita Aurangzeb, um exemplo das influências persas deixadas pela dominação do império Mogul no passado. A mitologia regional também conta que Buda teria escolhido Sarnath, a poucos quilômetros de Varanasi, para realizar seu primeiro sermão após atingir a iluminação.

Anfiteatro a céu aberto
Cada um das cerca de 80 escadarias sagradas, conhecidas como ghats, ao longo das margens do Ganges foi concebida com um significado social único, por diferentes reinados medievais. Desaswamedh, o ghat mais movimentado, seria o lugar em que supostamente o pai do deus Rama teria sacrificado dez cavalos em apelo ao Sol. Uma fumaça negra e espessa desponta dos ghats Harish Chandra e Manikarnika – locais em que são cremados em torno de 300 corpos todos os dias – sendo essa área restrita a familiares e amigos dos falecidos, além de trabalhadores que cortam, separam e carregam troncos de madeira para as cremações a céu aberto.

“De acordo com a nossa crença, aqueles que são cremados em Varanasi e têm suas cinzas imersas no Ganges alcançam a iluminação e a libertação do ciclo de renascimentos”, explica Asin Kumar, de 20 anos, trabalhador do comércio de design e pintura em seda.

Visitantes estrangeiros espreitam o ritual a partir de sacadas posicionadas a distância, assistindo à procissão daqueles que carregam o corpo que será cremado e das tochas de madeira. Após a lavagem e massagem do corpo do falecido pelos integrantes da família do mesmo sexo, um homem guia o grupo queimando incensos, enquanto no mínimo dois indivíduos sustentam cabeça e pernas do corpo envolto em tecidos luminosos, murmurando “Ram naam satya hai”, que significa “o nome de Deus é verdade”.

As escadarias de cremação
“Apenas a família acompanha o ritual; posicionados em frente ao Ganga, cada membro deposita cinco vezes a água sagrada do rio na boca do cadáver para purificá-lo”, diz Hashowka. A estrutura de madeira já está preparada para receber o corpo; são necessários cerca de 250 quilos de madeira para cremar um corpo adulto. Os preços são variáveis de acordo com a qualidade da madeira – a cremação com sândalo puro custa em torno de R$ 50 o quilo, preço praticável apenas para as famílias mais abastadas. Mulheres grávidas, sadhus e crianças não podem ser cremados; eles são imersos com pedras segundo a crença de que vão diretamente ao encontro da mãe Ganga.

Ao lado dos ghats de cremação existem duas casas que recebem aqueles que aguardarão a chegada paulatina da morte. Os motivos variam: pessoas sem teto, sem família ou sem perspectivas nem suporte para essa transição. Gopal Pandhe, com seus 76 anos, padece na casa dos moribundos como uma miragem bíblica. Com vestes ocres, barbas e cabelos compridos, perambula por uma das salas enquanto o sono eterno não vem. Ele, como outros ocupantes temporários dessa morada, recebem alimentos e doações de famílias indianas e de casas comerciais para que tenham madeira suficiente para o ritual purificador. Para os hinduístas, o corpo, mesmo em vida, é apenas um receptor bruto para algo que perdura, e a vida, nada mais que uma manifestação fugaz da eternidade.

Entre ruelas convulsionadas pelo tráfego desgovernado de ciclo-riquixás buscando espaço entre carros e animais, letreiros convidativos para aulas de ioga, música e meditação, o modo de vida em Varanasi parece emergir da combinação de cultura, (des)organização social e elaborados rituais. Vacas podem entrar sem ser molestadas dentro de lojas para refrescar-se do calor intenso das ruas, sadhus podem intimidar ou iluminar transeuntes ao proferirem “Om Namah Shivaya”; pessoas desalojadas, filósofos, insanos e profetas finalizam suas preces, enquanto santidades revelam suas intenções – tudo coexiste em uma miscelânea flutuante em torno de seu protagonista, o rio Ganges.

Varanasi se apresenta, dessa forma, como uma cidade inigualável, que possibilita a nós, seres mortais, uma experiência de libertação e renascimento. O fluxo contínuo do Ganges é a própria metáfora de que o tempo e a vida prosseguem deslizantes. É nessa cidade antiquíssima, de cultura milenar, que trabalhadores, nativos e personagens de todos os credos comungam a paz nessa babilônia que entoa cânticos em sânscrito.

A luta contra a poluição da "Grande Mãe"

A cidade mais famosa do estado de Uttar Pradesh, que está entre as mais produtivas e povoadas da Índia, também tem sido protagonista há décadas de polêmicas envolvendo a poluição do rio Ganges. Questões culturais e práticas religiosas endossam os danos ao rio, um dos mais importantes do continente asiático e grande mantenedor de cerca de 400 milhões de pessoas que vivem em seu entorno e que dependem de suas águas para subsistência.

A Fundação Sankat Mochan é a única organização ativa quando o assunto é a limpeza do Ganges, apelidado de “grande mãe”, e que, ao descer de sua nascente no Himalaia até sua chegada ao Golfo de Bengala percorre uma distância de 2.510 quilômetros no país. Há quase 30 anos a instituição, apoiada por países como Austrália, Suécia e Estados Unidos, tenta criar um banco de dados científico dimensionando os impactos da poluição em Varanasi e nos seus arredores. A campanha em prol da limpeza do Ganges tem a coordenação de Veer Bhadra Mishra, professor de engenharia hidráulica e líder espiritual em Varanasi. A implementação do laboratório para análise de qualidade da água e do centro de educação ambiental direcionado à população fazem parte da iniciativa da organização.

Os esforços esbarram na burocracia do governo indiano para aprovar medidas como a instalação do sistema de limpeza usando algas e luz solar, desenvolvido pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e a implantação do crematório elétrico, o que preservaria as raízes culturais hinduístas sem danos maiores ao ecossistema.

Diana Corso,O Preço da Masculinidade

Publicado na Revista Vida Simples

                                O preço da masculinidade

Sobre os desafios que um menino enfrentava para provar-se homem. Esse tempo acabou?

No interior do Rio Grande do Sul alguns pecados são imperdoáveis. Para um cão pastor atacar uma ovelha é evento que só acontece uma vez: pagará com a vida. Aliás, um dos ditos que corre por aqui é “cachorro que come ovelha, só matando”. Supõe-se que o ato selvagem despertará uma gula ancestral, a fera acordada não se resignará mais à doma.
Esta é a história de um menino e seu cão “criminoso”. Ela me foi contada por sua irmã mais moça, que já avó nunca esqueceu. Era um pastor belga, a sombra negra do seu jovem dono, mas cometeu o crime de caçar o que devia proteger. O pai, homem antigo, achou que o animal devia ser punido pelo dono, assim tornando o evento exemplar para seu filho. Exigiu que ele matasse seu animal de estimação. O garoto recusou, mas os peões por ali reunidos observaram que não seria muito máscula semelhante covardia. A provocação funcionou e ele se embrenhou com seu parceiro no mato. Sumiu o dia todo. Noite fechada, as mulheres da casa choravam e já temiam por ele, quando voltou, silencioso, soturno. Nunca mais falou sobre isso, mas parecia ter executado a própria alegria. Era agora um homem, mostrou o desprendimento de um guerreiro, pagou o preço da masculinidade. Tornou-se um adulto tumultuado, nunca abandonou as terras do pai, foi seu predileto e razão de seus cabelos brancos.
Muito se diz sobre o árduo caminho das mulheres pela libertação. Foram milênios de opressão e dois séculos de luta das feministas. A cada 8 de março saudavelmente lembramos disso porque ainda há muita desigualdade. Por sorte, na esteira das lutas feministas, também a condição masculina teve suas regras alteradas. Histórias como essa tendem a não se repetir. Se bem é verdade que sempre cometemos algum gesto de assassinar a própria infância para crescer, a doação dos brinquedos preferidos já basta. Quanto à identidade sexual, cada dia fica mais claro que é incerta e transitamos sempre perto da raia do sexo oposto. Isso não se confunde com ser gay: homossexuais amam o próprio sexo, mas têm os mesmos dramas de identidade que os héteros.
Como o menino da história, estamos sempre sendo chamados a provar que nos tornamos suficientemente masculinos ou femininos, uma conquista sempre incerta. Que o digam as mulheres sem filhos, assombradas pelo olhar superior das supostamente legitimadas pela maternidade; os solteiros ou separados heterossexuais, que se envergonham sem a presença ostensiva de um parceiro sexual; os virgens tardios. As mulheres já não sabem bem o que é ser uma e, graças a elas, os homens carecem das certezas milenares. Não deviam queixar-se disso, já não serão eternos soldados, não precisarão pagar o preço da tristeza de assassinar a própria sombra, essa que brinca ao nosso lado enquanto caminhamos.
(publicado na Revista Vida Simples, edição de março)

De Rafael Tonon,sobre " Privacidade".

Privacidade

Privacidade tem sido um artigo raro nesses novos tempos digitais.Uma busca rápida no Google pode levantar o que você pode levantar o que você c ursou na faculdade,e com o que trabalha,e,até mesmo onde mora.
A timeline do seu Facebook denuncia para seus...xxxyyyzzês amigos tudo o que fez no ano passado- voltar no tempo,ali,é tão fácil quanto manipular a barra de rolagem.Fotos,vídeos ,depoimentos: sua vida está toda ao alcance de um clique alheio.Mas a falta de privacidade,quem diria,chegou aos nossos lençóis e edredons - e não estamos falando das polêmicas dos reality shows.
É que o site I Just Made Love ( Ijustmadelove .com) permite que seus usuários cadastrados compartilhem quando,como e onde transaram no último minuto ( ou no último mês,no caso dos menos afortunados).
O que deveria estar restrito aos limites geográfico do quarto ( ou da sala, da cozinha,vá lá...) é escancarado para quem quiser saber.Deve ser por isso que uma das próximas tendências,apontadas pelo mercado hoteleiro são os " black hole resorts ", ou os resorts buracos negros,para onde os hóspedes estão dispostos a viajar ( e pagar a quantia que for ) para terem a certeza de que os sinais de celular e internet são tão escassos quanto uma boa comida.Dá para arrumar as malas para passar uma temporada no Hotel Desconocido,em Puerto Vallarta,ou no MAS LES COLS,em Olot,na Espanha,sem que nenhum amigo virtual saiba que está lá.O Check in,nesse caso,é feito só na recepção do hotel - e não no Foursquare ou outras redes sociais.






O Afeto ou a bolsa

                                         Texto de Miguel Reali Júnior


parte dos filhos em relação aos pais, do marido em relação à mulher, da mãe em relação à filha o direito de requerer judicialmente que lhe seja dedicado afeto?

 

                             

 

Haveria da parte dos filhos em relação aos pais, do marido em relação à mulher, da mãe em relação à filha o direito de requerer judicialmente que lhe seja dedicado afeto? Haveria a possibilidade de alguém pretender o bem-querer de outrem como dever jurídico por ser seu filho, marido ou mãe? Como impor a alguém ser afetuoso em razão de laço de sangue ou de liame matrimonial? Por não se ter sido afetuoso, pode-se transformar essa falta de afeto em dinheiro, por descumprimento do dever de agir afetuosamente?
Essa questão vem sendo erroneamente apreciada pelos tribunais, culminando com recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na qual se confundem integralmente direito e moral. Dentre os vários exemplos, há duas decisões conflitantes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Segundo o entendimento da 7.ª Câmara Cível, caberia ao pai pagar indenização, embora prestasse regularmente alimentos, "em face da dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico". Mas, em decisão oposta, a 12.ª Câmara Cível, com razão, considerou indevida a indenização por danos morais em vista da ausência da figura paterna: "Ninguém é obrigado a amar ou a dedicar amor", pois "a paternidade requer envolvimento afetivo e se constrói com o passar do tempo, através de amor, dedicação, atenção, respeito, carinho, zelo, etc, ou seja, envolve uma série de sentimentos e atitudes que não podem ser impostos a alguém e muito menos serem quantificados e aferidos como dano indenizável".
No STJ decidiu-se que caberia ao pai pagar à filha indenização, pois houve ausência quase completa de contato paterno com a reclamante, em descompasso com o tratamento dispensado a outros herdeiros. Hoje casada e professora, a filha declarou a este jornal: "Desde que nasci ele nunca me quis". Revelou, também, que em toda a sua vida sentiu falta de ter um pai: "Uma pessoa para me aconselhar, para conversar, para me ajudar no que eu precisasse, eu nunca tive. Eu me encontrei com meu pai algumas vezes, tanto que ele pagou a pensão porque foi obrigado, mas em nenhuma das vezes ele me deu atenção".
Para a ministra Nancy Andrighi, há deveres de convívio, cuidado, educação, transmissão de atenção, acompanhamento do desenvolvimento sociopsicológico dos filhos: "Amar é faculdade, cuidar é dever". A seu ver, além do estabelecido na lei, "os pais devem garantir aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para adequada formação psicológica e inserção social".
No caso, a filha conseguira a "inserção social", mas a ministra entendeu, conforme noticiou o Estado (2/5), não se poder negar ter havido "sofrimento, mágoa e tristeza", que persistem como decorrência das omissões de cuidado do pai, daí derivando dever de indenizar. No seu entender, há, para além da lei, deveres de transmissão de atenção e de afetividade. Estes, portanto, não defluem da lei, mas de juízo moral do julgador, comovido com o sofrimento da filha, quando é certo não ser eventual dor, de difícil constatação, que legitima indenização, mas sim a violação a bem jurídico essencial, garantido pelo direito. A conduta do pai desatencioso com o filho, apesar de cumpridor dos deveres alimentares, pode ser moralmente censurável, mas não ilícita.
Ora, se o dever não decorre da lei, mas de juízo moral, inexiste pretensão juridicamente assegurada, pois não há direito subjetivo ao afeto, transformando-se o amor em dever jurídico. Se era incabível requerer judicialmente, quando criança, que o pai lhe dedicasse afeto, como depois transformar a ausência desse afeto em indenização monetária? Mistura-se o moralmente reprovável com o juridicamente exigível, quando apenas cabe indenização por descumprimento de dever jurídico. Pode ser censurável não ter afeto pelo filho, mas tal não constitui falta de cuidado legalmente estatuído e a lei jamais poderia impor a efetividade de carinho paterno.
A frase de efeito, repetida na imprensa, "amar é uma faculdade, cuidar é dever" incide em equívocos, pois faculdade consiste na possibilidade de exercício de um direito. Amar não é uma faculdade, é sentimento espontâneo de bem-querer que não deriva da lei.
Cuidar de criança ou adolescente é um dever, mas dentro de quais limites legais? O Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem que cumpre aos pais prover alimentos: nutrição, saúde, habitação e educação. No Código Penal estatui-se ser crime o abandono material e intelectual consistente em deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do filho ou sua instrução. No campo do direito não se confunde cuidado com cuidar afetivamente.
Dar afeto ou cuidar afetivamente - ser conselheiro, amigo, garantir equilíbrio emocional e inserção social - não constitui um dever jurídico, a não ser que se queira instituir a hipocrisia por força de lei. Muitas são as circunstâncias que a vida apresenta quanto aos afetos, a começar pela espontânea afinidade surgida sem se saber por quê. Pretender colocar o Estado a ditar o sentimento do afeto é um autoritarismo paternalista inaceitável. Com clareza assinalou a jornalista Eliane Brum não caber a nenhum tribunal analisar "sentimentos" e desferir punições pela ausência ou excesso de "sentimentos".
A decisão é preocupante exemplo de mercantilização das relações afetivas, com o risco de incompatibilidades naturais gerarem mágoa e, depois, a ação indenizatória como represália. Grave é o Estado assumir o papel de grande tutor, para suprir o desamor, impondo compensação em dinheiro, que algumas vezes pode apenas ter gosto de vingança. No STJ acaba-se, sem se aperceber, por consagrar o dever de cuidar amorosamente, substituindo-o pelo dever de indenizar monetariamente.
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* Jurista. Professor Universitário. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 02/06/2012

de Antonio Prata, Pocrastinaria...

 "transferir para outro dia ou deixar para depois; adiar, delongar, postergar, protrair"


                                      Pocrastinaria

Temos pressa. Trabalhar é importante. Vagabundear é urgente. Procrastinar, não, minha gente

PROCRASTINAR, SEGUNDO o "Houaiss", é "transferir para outro dia ou deixar para depois; adiar, delongar, postergar, protrair". Mas o que sabem os dicionários? Bichos afoitos, na ânsia de engolir o mundo, mal têm tempo de mastigar cada palavra, de extrair delas todo o sabor e os nutrientes, de modo que a definição acima diz tanto sobre a complexa arte da embromação quanto "forma de interação psicológica ou psicobiológica entre pessoas, seja por afinidade imanente, seja por formalidade social" explica o "amor".

Percebo, porém, que divago. Em vez de encarar o dever proposto no título e falar sobre a procrastinação, a pratico: passeio por enfadonhos arrabaldes, perco-me nas borradas fronteiras da linguagem e do coração. Tudo bem, não há razão para me afligir, pois as crônicas são redondas como a Terra, e às vezes é indo para trás que chegamos ali na frente. Se o parágrafo anterior fugiu à teoria, serve ao menos como demonstração prática do que entendo por procrastinar: adiar alguma obrigação chata arrumando outra atividade igualmente tediosa para pôr em seu lugar.

Veja, caro leitor: ir ao cinema em vez de trabalhar não é procrastinação. É vagabundagem, no melhor sentido do termo. Fazer sexo num sábado de manhã, quando se deveria pendurar estantes, não é procrastinação: é sabedoria, compreensão de que a vida é breve, é besta e que os instintos são muito mais importantes que as estantes. Já abrir o site do banco e ficar digitando a infinita sequência numérica do código de barras de uma conta de luz que só vence no fim de junho, quando se está cheio de trabalho para amanhã, eis o mais nítido retrato da procrastinação. Pois essa praga dispersória é filha de Deus com o Diabo, é um pecado que já vem com penitência.

O procrastinador só se permite gozar o adiamento do trabalho maltratando-se no interlúdio. Troca-se de aborrecimento, mais do que dele se desvia; eis como o saci da procrastinação oculta sua presença e surrupia nosso tempo, nossa vida.

Quantas vezes, atrasado na escrita, me pego limpando o antispam, arrumando papéis na gaveta, aceitando solicitações de amizade no Facebook, lendo, na internet, uma matéria sobre a tendência de queda nos juros do financiamento imobi-liário? Nunca, no entanto, nessas inconscientes delongas, me encontro gargalhando com uma crônica do Verissimo, tomando sol no quintal, assistindo a um antigo episódio de "Seinfeld", ouvindo um disco de ska.

A procrastinação é um mal, meus caros, não por arrancar-nos do trabalho, mas por nos grilar o ócio. Não é aferrando-me à labuta, portanto, que pretendo combater este vício, mas buscado forças para me entregar totalmente à lassidão. Da próxima vez que me flagrar pagando conta de luz às duas da tarde, vou desligar o computador, fechar os olhos e repetir os versos de Fernando Pessoa: "Ai que prazer/ Não cumprir um dever,/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!/ Ler é maçada,/ Estudar é nada./ O sol doira/ Sem literatura./ O rio corre, bem ou mal/Sem edição original./ E a brisa, essa/ De tão naturalmente matinal,/ Como tem tempo não tem pressa...".

Nós temos pressa. Trabalhar é importante. Vagabundear é urgente. Procrastinar, não, minha gente.