A
solidariedade é uma das características que definem nossa espécie. É comum
observar pessoas que sacrificam seu bem-estar e conforto para cuidar de
incapazes. Abandonar inválidos à sua própria sorte causa repulsa e reprovação
social. Mas quando surgiu essa característica tão humana? Paleontologistas vêm
tentado desvendar esse mistério analisando esqueletos de nossos
ancestrais.
É bastante comum encontrar esqueletos que
demonstram que nossos ancestrais e seus parentes sobreviviam mesmo quando
sofriam acidentes ou nasciam parcialmente incapacitados. O esqueleto de um
neandertal denominado Shanidar 1 é um bom exemplo. Shanidar 1 sobreviveu muitos
anos após ter perdido seu braço direito e sofrido um trauma craniano. É bem
provável que ele tenha recebido ajuda de companheiros nos momentos seguintes ao
acidente (ou luta) e mais tarde o grupo tenha se acomodado para incorporar essa
pessoa parcialmente incapacitada. Mas é difícil saber que tipo de ajuda e por
quanto tempo esse indivíduo a recebeu antes de morrer.
Caso semelhante é o do esqueleto de um anão do
Paleolítico chamado Romito 2, descoberto na Itália. Dada sua pequena estatura e
deformações nos membros superiores e inferiores, é quase certeza que tinha
enormes dificuldades de locomoção. Paleontólogos creem que, para sobreviver em
uma comunidade de coletores e caçadores, que andavam quilômetros por dia, Romito
2 deve ter recebido ajuda. De novo, é difícil determinar quanto de ajuda Romito
2 recebeu.
Melhor exemplo. O esqueleto
que talvez demonstre melhor a solidariedade de nossos ancestrais foi descrito em
2009. Um cemitério neolítico de mais de 3,5 mil anos, chamado Man Bac, no Vietnã
do Norte, próximo à vila de Bach Lien, foi escavado entre 1999 e 2007. Lá foi
encontrado MB07H1M09, ou M9. Ele foi encontrado curvado sobre si e o que chamou
a atenção foi a atrofia das pernas e braços, com ossos finos e fracos.
O exame do crânio mostrou que M9 era
provavelmente do sexo masculino e tinha uns 30 anos ao morrer. Sua dentição era
normal e bem preservada. Apesar de um dos lados da articulação que liga a maxila
ao crânio estar mais desgastada, indicando que ele mastigava de lado, os dentes
estavam igualmente desgastados dos dois lados, indicando que ele usava toda a
boca para mastigar.
Ao examinar as vértebras, cientistas deduziram
a causa de sua paralisia. As vértebras estavam soldadas e o canal em que passam
os feixes nervosos da coluna vertebral estava comprimido e tinha diâmetro menor
que o normal. Além de membros atrofiados, M9 tinha alterações nas vértebras do
pescoço, o que indica que ele provavelmente vivia deitado e mantinha a cabeça
curvada para um lado, incapaz de sentar ou ficar de pé.
Analisando o esqueleto de M9, foi possível
diagnosticar que ele provavelmente sofria da síndrome de Klippel-Feil tipo 3,
cuja frequência nas populações modernas é de 1 nascido em cada 40 mil. A fusão
das vértebras e o estreitamento do canal por onde passa a medula fazem com que
os pacientes desenvolvam paralisia total dos membros inferiores e muitas vezes
paralisia dos superiores ao longo da infância.
Como M9 morreu aos 30, seguramente fui cuidado
por mais de 20 anos pelos membros de seu grupo. O fato de seus dentes estarem
bem preservados e não existirem sinais de desgaste desigual demonstra que ele
era bem alimentado. E provavelmente vivia deitado, com a cabeça encurvada. Para
que tenha sobrevivido tantos anos, seus companheiros cuidaram de sua higiene e
provavelmente o viravam regularmente, para evitar a formação de feridas no
corpo. Essa síndrome geralmente não afeta a capacidade mental dos pacientes e
provavelmente M9 era capaz de interagir com seus companheiros.
Com base em outros dados obtidos em Man Bac,
sabe-se que essa comunidade estava nos estágios iniciais do desenvolvimento da
agricultura, mas ainda dependia em grande parte da coleta de plantas e da caça
esporádica. Ela já tinha os primeiros artefatos de cerâmica, jade e conchas, mas
estava longe de habitar uma cidade bem estabelecida.
Nesse ambiente cultural, há 3,5 mil anos, M9,
paralisado e permanentemente deitado, foi cuidado com amor e carinho por mais de
20 anos. Essa descoberta demonstra que a solidariedade surgiu entre os homens
bem antes do aparecimento das grandes civilizações e das principais religiões.
Neste final de ano, quando a solidariedade é sempre comemorada, lembre de M9.
Feliz Natal.
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BIÓLOGO
MAIS
INFORMAÇÕES:SURVIVAL AGAINST THE ODDS: MODELING THE SOCIAL IMPLICATIONS OF
CARE PROVISIONS TO SERIOUSLY DISABLED INDIVIDUALS. INT. J. PALEONTOLOGY,
VOL. 1, PÁG. 35, 2012
Fonte:
http://www.estadao.com.br 20/12/2012
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