Leonardo
Boff*
Uma dimensão sine que
non para inaugurar uma nova aliança para com a Terra reside no resgate da
dimensão do sagrado. Sem o sagrado a afirmação da dignitas terrae e de
seus direitos permanece uma retórica sem efeito. O sagrado constitui uma
experiência fundadora. Ele subjaz às experiências que deram origem às religiões
e às culturas humanas.
Os últimos séculos se caracterizam por uma
sistemática intervenção nos ritmos da natureza a ponto de ficarmos surdos à
musicalidade dos seres e cegos face à grandeur do céu estrelado. Com isso
perdemos a experiência do sagrado do universo. Em seu lugar entrou a vigorar
vasta profanidade, que reduziu o universo a uma realidade inerte, mecânica e
matemática e a Terra a um simples armazém de recursos entregues à
disponibilidade humana. Tirou-se a palavra de todas as coisas, para que só a
palavra humana imperasse.
Se não conseguirmos resgatar o sagrado,
dificilmente garantiremos o respeito à Terra e aos demais seres que possuem um
valor intrínseco. A ecologia se transformará numa técnica de simples
gerenciamento da voracidade humana mas jamais em sua superação. A pretendida
nova aliança significará apenas uma trégua para que a Terra se refaça das chagas
recebidas, para logo em seguida receber outras, porque o padrão das relações
agressivas não mudou nem transformou nossa atitude básica de ausência de
respeito e de sacralidade.
Antes de qualquer outra coisa, cumpre que nos
reencantemos com o universo. Isso foi bem expresso pelo astronauta
norte-americano Edgar D. Mitchell, em 1971, sobre a Apolo l4 a caminho da lua.
Exclamava boquiaberto: "Daqui a milhares de milhas de distância, a Terra mostra
a incrível beleza de uma joia esplêndida de cor azul branca, flutuando no vasto
céu escuro. Ela cabe na palma de minha mão. Nela está tudo o que é sagrado e
amado por nós”.
Que é o sagrado? Não é uma coisa. É uma
qualidade das coisas, que de forma envolvente nos toma totalmente, nos fascina,
nos fala ao profundo de nosso ser e nos dá a experiência imediata de respeito,
de temor e de veneração.
"O sagrado irrompe em nós quando internalizamos a visão
contemporânea do universo
em evolução e em cosmogênese."
Rudolf Otto, um clássico estudioso do fenômeno
em O sagrado (das Heilige), descreve em duas palavras-chave a
experiência do sagrado: o tremendum e o fascinosum.
O tremendum é aquilo que nos faz tremer por sua magnitude e pelo
desbordamento de nossa capacidade de suportar a sua presença. Esta nos faz
fugir devido a sua arrasadora intensidade. E ao mesmo tempo, é
o fascinosum, vale dizer, aquilo que nos fascina, nos arrasta como um
íman irreprimível porque nos concerne absolutamente. O sagrado é como o sol:
sua luz nos arrebata e nos enche de entusiasmo (fascinosum). E ao mesmo
tempo nos obriga a desviar o olhar porque pode nos cegar e queimar
(tremendum).
É essa experiência ambivalente que os seres
humanos originários fizeram e nós ainda podemos fazer em contato com o cosmos,
com a Terra, com a vida. com as pessoas carismáticas, com a atração amorosa
entre um homem e uma mulher. Sentiram comunicar-se nestas realidades uma força
irrefragável, expressa classicamente pela palavra melanésia de mana ou
pelo axé das religiões afro. Potencialmente, todas as coisas são
portadores de mana ou de axé. São por excelência a revelação do
sagrado, sua epifania e diafania.
Por debaixo de tudo opera, como nos dizem os
modernos cosmólogos, a Energia fontal, o Abismo gerador de todas as coisas,
o Spiritus Creator. O sagrado irrompe em nós quando internalizamos a
visão contemporânea do universo em evolução e em cosmogênese. Não basta esta
cosmovisão que pode ser encontrada no Google. Do que precisamos é de uma comoção
e uma experiência de choque. Precisamos sentirmo-nos dentro destes conhecimentos
sobre o cosmos, a Terra e a natureza, porque são conhecimentos sobre nós mesmos,
sobre nossa ancestralidade e sobre a nossa realidade mais profunda. São tais
comoções que modificam nossas vidas.
Como não se extasiar diante da imensidão de
energia ejetada na singularidade do big bang, na formação do campo de
Higgs, que permitiu conferir massa às partículas originárias, a constituição das
nuvens de gases que originaram a primeira geração de estrelas que. depois de
explodirem. deram origem às galáxias, às estrelas, aos planetas e a nós mesmos.
É o fascinosum.
Que existe de mais tremendo e misterioso do que
a massiva destruição da matéria inicial pela anti-matéria sobrando apenas uma
bilionésima parte, da qual se origina todo o universo e nós mesmos? Aqui
o tremendum se associa ao fascinosum. E poderíamos enumerar
outras tantas experiências.
Todas elas nos colocam diante de uma realidade
cuja melhor forma de abordá-la é pela teoria da complexidade pela qual os
contrários se fazem complementares, aceitar que somos parte e parcela deste
Todo. Só nos integramos e nos sentimos em casa quando nos associamos a essa
sinfonia e disfonia, quando compreendemos que o bumbo convive com o violino,
quando usamos nossa criatividade para agirmos com a natureza e nunca contra
ela ou à revelia dela.
Esse sagrado assumido nos faz regressar de
nosso exílio e despertar de nossa alienação. Ele nos reintroduz na Casa que
havíamos abandonado. Somente uma relação pessoal com a Terra nos faz amá-la. E a
quem amamos também não exploramos mas respeitamos e veneramos. Agora poderá
começar uma nova era, não de trégua mas de paz perpétua (Kant) e de verdadeira
re-ligação de tudo com tudo.
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* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é
escritor, autor do livro 'Opção-Terra: A solução para a Terra não cai do céu'
(Record)
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