Lee Siegel*
Eu gostaria que houvesse um dia sem
imagens. Gostaria de passar um dia sem precisar abrir meu computador e ser
inundado por imagens trágicas e banais. Gostaria de passar um dia sem ver a
imagem de Kim Kardashian ao lado da imagem de uma pilha de cadáveres no
Congo.
Mas mesmo que eu boicotasse a internet,
mantivesse o televisor desligado e usasse meu celular só para e-mails e
mensagens de texto, as hordas vitoriosas de imagens me envolveriam do vídeo no
banco de trás do táxi, do vídeo em um banco ou supermercado, do televisor nas
salas de estar de lares vizinhos. Quando nasceu meu segundo filho, uma
enfermeira insistiu para eu lhe entregar o meu celular e depois ficou parada do
outro lado da cortina tirando fotos enquanto minha filha era retirada de minha
mulher numa cesariana. "Como está o bebê?", eu perguntei, esticando os braços
para segurar minha nova filha. A enfermeira sorriu para mim e suavemente
recolocou o celular em minha mão, dizendo: "Tirei algumas fotos
maravilhosas".
Já se escreveu muita coisa sobre a ambiguidade
moral da câmera, e o grande livro sobre o tema é Sobre a Fotografia, de Susan
Sontag. No entanto, uma reflexão filosófica sobre a fotografia é, a esta altura,
irrelevante. O que nos rodeia com a ubiquidade envolvente do oxigênio não é algo
como "fotografia". A fotografia é um produto de propósito e vontade. Nosso cerco
segundo a segundo por imagens é inteiramente aleatório. É um produto não de
propósito e vontade, mas de distração, luxúria e o eterno impulso humano para
envergonhar e humilhar.
Uma amiga minha me contou que estava andando
por uma rua de Manhattan certo dia quando esbarrou numa pequena multidão de
pessoas reunidas na calçada. Quando ela se aproximou, viu que elas estavam
rodeando um pássaro com a asa quebrada que lutava pela vida na calçada. Todas
brandiam seus aparelhos digitais tirando fotos da criaturinha moribunda.
Qual o significado disso tudo? Estariam
simplesmente expressando a necessidade humana de registrar a vida que as
cercava, como artistas fizeram desde o tempo das pinturas nas cavernas até os
impressionistas, as fotos de Atget de Paris, as fotos de trabalhadores de
Salgado, e outros? Ou teriam se tornado, como a decadente classe dirigente do
Império Romano tardio, tão indiferentes ao sofrimento que o espetáculo do
sofrimento havia se tornado mais um prazer sensual?
E por que alguém simplesmente não pegou a ave e
tentou levá-la para um lugar onde ela pudesse ser salva? Antes que minha amiga
pudesse fazê-lo, a ave morreu.
Ao que parece, a era digital nos levou a um
"ponto de virada". A curiosidade que nos mantém engajados com o mundo e atentos
à realidade se transformou num distanciamento obsceno que constata eventos
tenebrosos numa fantasia de imunidade de tempo e circunstância. O fotógrafo,
como observou Sontag, sempre teve de lidar com o fato de que "capturar" alguém
numa película lhe confere um poder potencialmente abusivo. Agora, porém, ninguém
lida com nada. As pessoas simplesmente fotografam a agonia de outras pessoas -
ou de outras criaturas -, fazem o upload e acionam "enviar".
Na semana passada, o New York Post, tabloide
dedicado a reportagens floreadas de acontecimentos revoltantes, se superou no
quesito das imagens promíscuas. Ele publicou em primeira página, sob a manchete
CONDENADO, e com a legenda EMPURRADO PARA O TRILHO DO METRÔ, ESTE HOMEM ESTÁ
PRESTES A MORRER, a foto de um homem de pé sobre os trilhos agarrando-se em
desamparo à borda da plataforma enquanto um trem se aproxima para atingi-lo.
Segundos depois, ele morreu esmagado. Verificou-se depois que ele era um coreano
que havia se envolvido numa briga com um sem-teto, o qual havia atirado o pobre
infeliz para os trilhos.
O debate, hoje tão familiar nesta era de
captura desregrada de fotos, recomeçou. Por que o fotógrafo não tentou salvar o
homem em vez de fazer a sua foto? Como o New York Post foi capaz de publicar tal
foto, que seguramente magoaria e indignaria a família da vítima?
Segundo o fotógrafo, que declarou trabalhar
como free lance para o New York Post, ele só fez a foto na esperança de usar o
flash para alertar e parar o trem. (Sim, e eu tenho um par de asas que uso para
ir e voltar voando à Califórnia). Ele também alegou que as outras pessoas na
plataforma estavam tirando fotos com suas engenhocas em vez de ajudar o coreano.
Nisso eu acredito.
Mas o debate é irrelevante. Fotos como essa
continuarão a surgir, e pessoas continuarão alçando o voyeurismo a um repugnante
novo tipo de moralidade. A observação indiferente - a sociedade do espetáculo,
como alguém um dia a chamou - é uma qualidade de decadência e os Estados Unidos
estão, de certo modo, em seu estágio tardio, decadente. E em nossa era de
ascendência tecnológica, nossos inúmeros aparelhos milagrosos servem,
inevitavelmente, como ilusões de imortalidade.
A única resposta a isso é declarar guerra às
imagens degradantes ou sem sentido. Talvez algum gênio, um Steve Jobs da
oposição, invente um novo tipo de grafite digital. Até lá, neste país ao menos,
precisamos proclamar um feriado nacional em que as pessoas terão de usar uma
venda sobre os olhos por 24 horas. Elas acabarão vendo mais em um dia do que
viram em anos.
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* NOVA
JERSEY - O Estado de S.Paulo
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