sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

A força do gesto, de Cintia Moscovich


Filho de imigrantes, nosso pai se esfalfava de trabalhar e recusava luxos – tinha ojeriza a novo-riquismo. Mas havia uma coisa à qual não resistia: bons carros. E era no Fairlane rabo-de-peixe ou nos Galaxies LTD que ele nos levava a viajar, geralmente para o Uruguai, terra da mãe. A gente rodava horas protegidos pela robustez do carro e pela promessa de pasculinas e dulce de leche.

Numa dessas viagens, eu estava dormindo no banco de trás, quando ouvi um estrondo, um guincho de freada e logo a voz assustada do pai:

– Acho que matei um cachorro.

Ele saiu correndo do carro. Pelo vidro traseiro, a gente não via sinal de bicho morto ou vivo. Nada no leito da estrada, muito menos nos matinhos laterais. Intrigados, nossa única alternativa era seguir viagem. E por todo o trajeto o pai foi se martirizando: o cachorro tinha vindo do nada e se metido na frente do carro, nem tempo de frear, ele tinha matado o animal.

Meia hora de luto adiante, ele parou para abastecer e todos descemos do carro. Foi então que vimos: de baixo da carroceria, saía, se esgueirando, um cachorro. O bicho bocejou, alongou as patas dianteiras, se sacudiu todo e, como se nada fosse, se afastou a passo, vivinho da silva. O pai deu uma gaitada bonita: decerto o animalzinho tinha se protegido na lataria do carro, que sorte, graças a Deus. Ficamos tão aliviados com a proeza que parecia uma festa no posto de gasolina.

Agora, quando se aproxima a época de veraneio, eu me lembro do pai e dessa história – porque vai começar a temporada infeliz na qual as pessoas, de férias, abandonarão seus animais de estimação nas estradas. Os cachorrinhos, que nem sabem trair, serão largados como se fossem estorvos: serão atropelados, causarão acidentes, morrerão à míngua.


Muitos desses que abandonarão seus bichinhos estarão com seus filhos como testemunhas. Que exemplo dão pai e mãe que descartam uma vida? Qual é o sentido de colocar a própria conveniência acima de qualquer outra coisa? Vamos combinar: quem não respeita a vida de um animal dificilmente respeitará a vida de um humano. Na falta de empatia com o sofrimento de um ser vivo, a maioria dos valores se subverte, a estupidez começa a ditar as regras do convívio e as pessoas passam a seguir uma moral torta e amalucada.

Peço aos donos de animais de estimação que pensem, mas pensem muito, antes de abandonar seus amigos de quatro patas. Quem tem a guarda de um animal é responsável por suas condições de vida e sobretudo pelas condições de sua morte. Àqueles que têm filhos e que não sabem o que fazer com os bichos nas férias, peço que reflitam no exemplo que deixarão. Meu pai ensinou e eu nunca mais esqueci: as palavras comovem, mas os exemplos arrastam.
 

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