Passado esse Natal de fim de mundo, um
jornalista perguntou: professor, em que festa natalina você recebeu o melhor
presente?
Respondi:
Num Natal antigo eu ganhei uma bicicleta
importada de uma impecável Suécia, conforme papai me falou com aquele tom de voz
que situava tudo o que era estrangeiro como superior. Esse foi um presente
importante - em Niterói íamos a todos os lugares de bicicleta -, mas, diz um
lado meu, não foi o meu melhor presente.
De uma outra feita, moço e apaixonado, ganhei
em plena Rua Dr. Romualdo, em Juiz de Fora, o beijo de uma namorada e com ele a
promessa esquecida de ser amado para sempre. O beijo natalino foi um belo
presente, mas não foi - diz novamente a voz dentro de mim - o meu melhor
presente.
Num Natal na casa de meus avós, Raul e
Emerentina, na Rua Nilo Peçanha, 31, recebemos todos um presente inesquecível:
revólveres de espoleta que reproduziam, a nosso ver perfeitamente bem, a guerra
entre o Bem e o Mal - entre os mocinhos e os bandidos que víamos no cinema.
Lembro da felicidade de manusear o meu revólver, de nele colocar as espoletas e,
ato contínuo, atirar "matando" meus irmãos. Não esqueço o fato de ter sido
ferido e de ter morrido muitas vezes por outros tiros naquele calorento Natal
numa Niterói sem água, mas com uma praia das Flechas de mar translúcido. Apesar
dos tiros, das mortes e das ressurreições, esse também não foi o meu melhor
presente.
Num outro Natal, eu ganhei as obras completas
de Guy de Maupassant em muitos volumes, mais do que poderia ler. Ao receber os
livros de um contista que eu amava - ao lado de gente como O. Henry, Hemingway,
Graham Green e Monteiro Lobato do Urupês -, exultei. Jamais me esqueci da
luminosidade de Maupassant. Foi um grande presente, mas não foi o meu melhor
presente.
Doutra feita, recebi os almanaques do Globo
Juvenil e do Gibi. Maravilhado, transformei a varanda onde estava sentado meu
avô Raul numa nave especial na qual viajavam Flash Gordon, o Dr. Zarkov e Dale
Arden, por quem eu fiquei imediatamente apaixonado. Até hoje eu me lembro da voz
calma do Celso Scofield, meu melhor e querido amigo, lendo comigo os quadrinhos.
Ficamos, ambos, intrigados com uma história de Brick Bradford na qual ele ia
parar num planeta com três gigantes imortais. O que era ser imortal? Celso havia
perdido o pai; eu vivia numa casa cheia dos fantasmas dos meus tios mortos.
Titia Amália, que era uma grande contadora de histórias, via almas do outro
mundo num corredor sem fim, no qual não ousávamos transitar sozinhos de noite.
Nem de luz acessa. Foi um excelente presente, mas não foi meu melhor
presente.
O meu primeiro Natal com data fixa e certa foi
o de 1968 - em Cambridge Massachusetts, aonde fui levado como estudante de uma
Harvard perfeita. Fomos para a casa dos Maybury-Lewis. David era o meu
orientador e Pia, sua esposa dinamarquesa, preparou a festa como mandava o
figurino daquilo que eu só havia visto em tecnicolor e na grande tela do Cinema
Icaraí. Havia uma enorme mesa com folhagens se misturando a comidas doces e
salgadas. Havia vinho e neve, itens desconhecidos. E havia o amor de Celeste e
dos nossos filhinhos. Cantamos músicas de Natal. Eu pude dar presente para todos
os meus filhos com o deleite do pai feliz por ter plantado as suas sementes no
mundo, e foi assim que eu os vi rasgando o papel dos embrulhos para descobrir o
que haviam recebido. Não ganhei nada, mas hoje sei que foi essa a festa.
A partir de um certo Natal, quem tem filhos
passa a ser mais um doador do que um receptor de presentes. Comecei a sustentar
a crença dos meus filhos em Papai Noel, embora piscando o olho. Afinal, o Natal
é apenas na aparência uma festa para crianças. No fundo, ele é uma celebração da
paternidade que tenta retribuir o peso indiscutível de sua autoridade
distribuindo dádivas. Era maravilhoso ver a crença nos olhos das crianças com
aquele brilho que os meus olhos haviam perdido.
Seria mesmo possível responder à questão do
jornalista? Afinal de contas, qual foi o melhor presente que recebi em toda a
minha vida? Vocês sabem como eu sou ingrato e difícil de satisfazer. Ademais,
sejamos realistas, quem é que, na tal "melhor idade" (como é o meu caso), pode
se lembrar de tudo o que recebeu ao longo de 76 Natais?
Em alguns, eu tenho agradecido a presença de
pessoas queridas. Em todos, eu sofro pela ausência de outros entes amados e
perdidos. Meu maior presente tem sido, sem nenhuma dúvida, os livros que me
fazem ler e escrever e, pelo milagre da literatura, tentar desenhar dádivas e
ter o privilégio de distribuí-las nesta coluna. Esperando, é claro, algum
retorno.
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Antropólogo. Escritor. Colunista do Estadão
Fonte:
http://www.estadao.com.br/26/12/2012
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