Quem se
interessa pelo saco de Papai Noel? O trenó puxado pelas renas,
suas roupas vermelhas, e casa em pleno Polo Norte - que nos trouxe a chamada
"civilização ocidental" - têm um certo interesse. O mesmo ocorre com a sua
logística que intriga os que, no futuro, serão doutores em gestão e finanças.
Como é que ele faz com aquelas infindáveis listas de presentes que recebe do
mundo inteiro? Como seleciona os presentes certos num mundo que não tem mais
noção de quem é bonzinho ou levado? E num Brasil onde malfeitos são bem feitos?
Quem, afinal, confecciona os presentes que levam a etiqueta made in China?
Daí o inusitado da pergunta que embaraçou meus
pais: o que está no gigantesco saco de Papai Noel? Pois se tem presentes, deve
também ter venenos.
Num primeiro momento o saco de Papai Noel é o
baú mágico onde cabem todos os desejos. Caixa de Pandora do consumo, o saco
produz aquela escuridão brilhante da publicidade que nos faz querer ter.
Ademais, ele não está hermeticamente fechado, pois que se abre e fecha no ritmo
do nosso desejo infindável de consumir, de ter e de gastar. Papai Noel vem e
volta, mas o seu grande saco faz parte de nossas fantasias de riqueza fácil.
"Num primeiro momento o saco de
Papai Noel
é o baú mágico onde cabem todos os
desejos.
Caixa de Pandora do consumo,
o saco produz aquela escuridão
brilhante
da publicidade que nos
faz querer
ter."
Quando eu ganhei um Cadillac-rabo-de-peixe de
brinquedo, num Natal passado com os Mendonça Vianna, em São João Nepomuceno, eu
sabia que essa piada de bom gosto havia saído do grande saco de Papai Noel. No
mesmo modo que as obrigatórias Missas do Galo estavam todas dentro daquele
apêndice natalino que continha tudo. Soube, na mesma época, de uma contraditória
morte em pleno Natal.
O saco de Papai Noel pode ser o mundo e o mundo
é o Brasil. Claro que ele é global, mas o seu "aqui e agora" da vida, da doença,
do amor, da comida, do ódio, da mentira, do perdão e da morte ficam aqui - ao
alcance desta mesma mão que tecla esse texto. Cada qual, disse meu pai, tem o
saco de Papai Noel que merece. E ganha o que pediu! - completou sério.
Eu, entretanto, estava numa crise de desejo.
Apaixonado pela irmã do Décio (eu beijava respeitoso sua fotografia) eu oscilava
entre pedir a Papai Noel um laboratório de química, uma máquina fotográfica ou
um trem elétrico, esse brinquedo que foi o sonho de todos os meninos de minha
idade. Em nossa rua, apenas vi o tal trem com um filho balofo de "alto
funcionário público" que, graças a uma dessas sinecuras nacionais, havia
residido nos Estados Unidos. Afora isso, todos ganhavam sempre o que não haviam
pedido.
Vi logo que era raro receber exatamente o que
se desejava. O primeiro erro do desejo é imaginar que ele pode ser satisfeito
pelo saco de Papai Noel. Um saco que ao longo da vida vai mudando de
significado
Dentro dele há de tudo. Tem o automóvel
comprado em 700 prestações, tem a dívida impagável do cartão, tem as ONGs
nutridas por verbas governamentais ou por uma prefeitura ou ministério. O saco
pode também transformar-se num casamento desandado ou um copo de uísque com
soda. Ou ainda numa doença ou loteria. Mais das vezes, é apenas um simples
desejo de tomar um copo d'água ou comer um pão quentinho com manteiga. O saco
vai mudando conforme a vida que depende do mundo e da idade que faz esse mundo.
Crianças, cabemos nele; adultos, temos que carregá-lo nas costas e ele às vezes
fica muito pesado. Quando somos jovens, ele é esvaziado pelos nossos desejos. E
no final da vida, quando o passado conta mais do que o presente, o futuro não
existe e o ressentimento do que poderíamos ter recebido é insanável e, por isso,
aceito; o saco do Papai Noel é um saco!
Há no mundo um sério problema com merecimentos.
Um frade conhecido meu achava que se havia
justiça quando um pai punia um filho notoriamente errado, deveria haver uma
justiça cósmica. Se há leis em algum lugar, dizia ele, deve haver leis (e
justiça) em todos os lugares. A propósito, a frase é do antropólogo Edward B.
Tylor e serve como epígrafe para o livro As Estruturas Elementares do
Parentesco, que transformou Claude Lévi-Strauss em Lévi-Strauss e que foi
publicado no Brasil numa coleção que dirigi.
Pois bem. Como um menino no Natal, o frade
buscou essa lei que regeria os elos entre bem-aventuranças e sofrimentos -
aquilo que os filósofos chamam de teodiceia - e nada descobriu. Na sua paróquia,
numa gigantesca favela do Rio de Janeiro, ele registrava que os generosos, os
trabalhadores, os honestos e os que tinham fé eram alvos de assaltos,
falcatruas, falsas promessas, deslizamentos e tragédias; ao passo que os
mentirosos, os hipócritas e os vis viviam bem. Alguns ficavam muito ricos, seus
próximos estavam bem e, mais que isso, eles próprios se achavam o sal da
terra.
Será que Papai Noel recebeu mesmo a minha carta
ou ela se extraviou tangida pelos ventos fortes e gelados do ártico? Será que
ele leu o que eu queria ou simplesmente leu e resolveu não me dar o que pedi?
Será, porém, que no ano que vêm (se houver ano que vêm...) eu vou ganhar o que
não ganhei neste ano?
Será que o grande saco de Papai Noel vai nos
envergonhar novamente em 2012, fazendo crescer nossas favelas que irão ficar do
tamanho da França? Com a palavra os que acreditam. E acreditar faz parte da
aventura humana na qual nenhum de nós entra por querer. Trata-se de um saco
infinito. Um saco de Papai Noel...
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Antropólogo. Escritor. Cronista do Estadão.
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