quinta-feira, 6 de março de 2014

" A arte de tolerar "

                                          Artigo Z.Hora 

 
O oportunismo e
a inadequação de
um político
levantam uma
celeuma onde
deveria haver
tolerância
CLARA PECHANSKY*Obras de arte não agradam a todos. Um exemplo se repete a cada dois anos em Porto Alegre: a Bienal do Mercosul pode apresentar excelente qualidade artística ao lado de grandes bobagens. Minha opinião pessoal, porém, não impede que eu considere muito bem-vinda a lei municipal que propõe que os artistas participantes doem obras à cidade após a bienal. Nesta vandalizada Porto Alegre, esculturas contribuem para diversificar a paisagem e todos podem opinar sobre elas.

Tenho todo o direito de não gostar da pintura de Romero Britto, mas não posso ignorar sua popularidade. Mesmo nunca tendo lido Paulo Coelho, impossível não reconhecer que é o escritor brasileiro mais conhecido internacionalmente. Minha opinião pessoal é um direito que exerço, mas consigo conviver com o que não gosto. E não dou a nenhuma autoridade o direito de legislar sobre meu pensamento ou meus julgamentos.
Bosch não retratou personagens bonitos no Juízo Final ou no Jardim das Delícias; Caravaggio representou santos como gente do povo, sem as auréolas que a Igreja exigia; Manet foi censurado porque pintou sua Olympia usando uma prostituta como modelo. As obras desses artistas, hoje reverenciadas, não foram aceitas nem compreendidas quando eles eram vivos.
Acabei de visitar, no Perez Art Museum de Miami, a magnífica exposição do chinês Ai Weiwei, que o governo de seu país tentou calar, mas que está agora sendo mostrada ao mundo ocidental como um libelo contra o aprisionamento das ideias.
Depois da sugestão de banimento das esculturas públicas, assumida pelo historiador Voltaire Schilling em ZH de 25/10/09, espalhou-se um rastilho de prós e contras sobre a arte existente nas nossas ruas. Na ocasião, escrevi um artigo comentando a ação de esconder ou destruir obras de arte que incomodam o observador.
 
O nazismo assassinou artistas e incendiou quadros em nome de uma purificação racial e estética que custou milhões de vidas. Voltaire, com seu rastilho, pode ter inadvertidamente iniciado um fogaréu. Parecia que o assunto havia sido esquecido, as brasas apagadas, quando reaparece esse Projeto de Lei 237/09. No Caderno Cultura publicado em ZH em 1º/3/14, o historiador Franscisco Marshall faz mais um sinal de alerta contra o abuso de poder que legisladores decidem impor aos cidadãos. O oportunismo e a inadequação de um político levantam uma celeuma onde deveria haver um território de tolerância.
É preciso dar aos artistas a oportunidade de pensar e expressar suas ideias livremente, sem julgamentos ou censuras prévias. O artista exerce sua cidadania desvelando, por meio de representações visuais, o mundo em que vive. Tentar criar comissões para limitar, definir ou qualificar uma obra antes de sua realização pode ser catastrófico, amordaçando a arte e privando a cidade da real expressão do seu tempo.

*Artista visual

Nenhum comentário:

Postar um comentário