Robinson
Borges*
Durante uma viagem de avião do Rio para
São Paulo, na semana passada, uma mulher abordou o ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso e, sem cerimônia, comentou: "Presidente, estou lendo um de seus
livros sobre a teoria da dependência. O senhor tem alguma coisa a acrescentar?"
A leitora se referia a um clássico da sociologia que trata das relações
internacionais e o processo de desenvolvimento econômico e social
latino-americano. A pergunta foi respondida prontamente - e com o típico humor
do ex-presidente: "Escrevi este livro 45 anos atrás. Claro que eu tenho coisas a
acrescentar. Estamos em um outro mundo".
Não se trata de mais uma brincadeira em torno
da famigerada frase "esqueçam o que eu escrevi" - que Fernando Henrique já negou
ter dito. Ao longo dessas mais de quatro décadas, um mundo novo se desenhou,
disse um sorridente ex-presidente a uma pequena plateia de pesquisadores e
empresários brasileiros, indianos e sul-africanos no Instituto Fernando Henrique
Cardoso, no centro paulistano. Todos estavam reunidos numa moderna sala no
interior de um prédio repleto de memórias dos tempos do governo FHC para debater
justamente as mudanças, econômicas e sociais, que levaram à constituição das
chamadas novas classes médias do Brasil, da Índia e da África do Sul. Não por
acaso três democracias emergentes do Brics.
Nos últimos dez anos, o Brasil tornou-se
referência em virtude da mobilidade social de 40 milhões de pessoas para uma
nova classe social, o que se tornou o destaque no seminário, o terceiro de uma
série que já ocorreu em Joanesburgo e Nova Déli. "O Brasil tem mostrado que é
possível ganhar a guerra contra a pobreza e a desigualdade", observou Ann
Bernstein, diretora-executiva do Centre for Development and Enterprise, parceiro
sul-africano do Instituto Fernando Henrique ao lado do Centre for Policy
Research, da Índia. Os três formaram consórcio para pesquisar o crescimento
inclusivo em democracias.
A nova classe média brasileira passou de 38% da
população, em 2002, para 53%, em 2012. Apesar do elevado grau de concentração de
renda do país, a classe média responde por 36% da renda e 38% do consumo das
famílias, segundo a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). A grande novidade
desse período é que o Brasil vive um movimento de crescimento econômico maior
associado à redução da pobreza e da desigualdade social mais rápida. "O Brasil
já havia tido crescimento econômico e redução da pobreza, mas sem queda na
desigualdade", disse André Portela Souza, professor da Fundação Getúlio
Vargas.
Nos anos 70, quando o Brasil passou por um
processo acelerado de crescimento econômico de 7%, todos os indicadores sociais
caíram, lembrou o ex-presidente, ao ressaltar a importância da democracia. "Hoje
é o oposto: o crescimento é baixo, mas os indicadores sociais são altos. Isso
não é tão novo quanto imaginamos. Depende de forças políticas e liberdade para
que as pessoas possam pressionar."
Se naquela época o Brasil era chamado de
Belíndia, o país de hoje é uma mistura de China com Alemanha, brincou Ricardo
Paes de Barros, secretário de Ações Estratégicas da SAE. A renda da parcela mais
pobre do país tem crescido tão rápido quanto a renda per capita chinesa, mas a
renda entre os mais ricos têm aumentado em ritmo alemão. "Mais da metade da
redução da pobreza no Brasil é fruto da redução da desigualdade", observou Paes
de Barros.
As políticas de transferência de renda explicam
apenas parte dessa história, ponderou Portela. Benefícios como o Bolsa Família
são mais relevantes do que o crescimento econômico para a redução da pobreza
extrema, mas a importância relativa da expansão econômica se torna maior
conforme os níveis de renda se ampliam. "A expansão da classe média se deve
principalmente ao crescimento econômico do período", concluiu o professor. A
renda maior do trabalhador estaria associada, assim, à expansão das ocupações no
setor formal da economia e ao aumento da produtividade dos trabalhadores.
"Parece que os limites da ampliação da classe média como vivemos até agora são,
em parte, os limites da expansão do emprego formal no país", afirmou.
Nesse cenário, a educação seria uma
questão-chave para a continuação do movimento de inclusão e aumento de renda. Há
mais indivíduos jovens com nível superior e médio entre os trabalhadores formais
do que antes, mostraram dados da FGV. Mas Paes de Barros alertou que são
desconhecidos como os bons postos de trabalho estão sendo criados, nesse
ambiente de crescimento nem tão notável. Há apenas a constatação de que há uma
movimentação dos trabalhadores para postos melhores e que eles mudam de emprego
por decisão própria. "No Brasil, o salário mínimo dobrou e todos esperavam
crescimento da informalidade, mas o surpreendente é que temos a menor taxa de
desemprego na história e o mais alto grau de formalidade na história."
Aos olhos do ex-presidente, a mobilidade social
provavelmente é resultado de "diferentes políticas implementadas
desorganizadamente no país estável, depois da democracia", disse ele, destacando
a participação de sua gestão nesse processo. "Comecei a distribuição de renda
ligada à educação. Lula veio e pôs vários programas juntos, mudando o nome para
Bolsa Família, e aumentou consideravelmente o volume de dinheiro."
A classe média brasileira já ultrapassou os 100
milhões de pessoas. Como boa parte é nova no grupo, o segmento tornou-se
heterogêneo, com valores e estilos de comportamento diferentes e distantes do
ideal de uma classe média americana triunfante. Ann Bernstein brincou: a classe
média, às vezes, é mais sociológica do que lógica. "Há a tradicional classe
média, mas há a classe média para os padrões dos países emergentes."
A nova classe média brasileira é o mundo do
carnê, do consórcio, do SPC, do metrô, do lotação e do seminovo zerado, sugere o
Data Popular, instituto de pesquisa brasileiro. Para alguns sociólogos, porém,
tratar esse novo segmento social como classe média é uma conceituação imprecisa,
já que o recorte tem sido o da renda e não o de classe social, o que exigiria um
padrão de comportamento. Mas o quer esse novo grupo? Pouco se sabe. O mundo
atual não comportaria mais a dualidade entre burgueses e classe trabalhadora,
tema de pesquisa de alguns dos presentes no debate. "Entendemos que o antigo
paradigma não funciona mais, mas temos de entender que um novo paradigma tem de
compreender os pontos negros", disse o professor de sociologia da UFRJ Bernardo
Sorj, que criticou a transferência dos critérios de renda para um conceito
sociológico. Pertencem à classe média, segundo o governo, aqueles com baixa
probabilidade de passar a ser pobres no futuro próximo e que vivem em famílias
com renda per capita entre R$ 291 e R$ 1.019 por mês.
Esse amplo e ainda pouco conhecido segmento é
tema do recém-criado projeto Vozes do Brasil da SAE, no qual Paes de Barros está
envolvido. A proposta é que os dados estatísticos sejam costurados com as
aspirações desse novo grupo, coletadas por meio de pesquisas periódicas. Com seu
estilo sóbrio, o secretário também contou sua história de avião: num voo de São
Luís para Brasília, foi abordado por uma trabalhadora doméstica, que voava pela
primeira vez e se sentava, ao seu lado, no assento do corredor. A moça sugeriu
que ambos mudassem de lugar, uma vez que ele consultava seu notebook e não
apreciava a vista de sua janela. "Meu computador mostrava justamente que um dos
grupos que mais cresceram na classe média foi o de empregados domésticos",
disse, rindo. "Ela estava indo visitar sua família. É um caso típico de mistura
que a classe média brasileira enfrenta hoje. O grau de segregação
diminuiu."
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