Não creio que nenhum guarda o tenha acusado de fazer parte
da turma. Nem que tenha blasfemado
Uso o belo título de Cesare Pavese
("Prima Che il Gallo Canti") para me lembrar, uma vez mais, do Paulo Francis,
cuja falta sinto a cada manhã, quando recebo os jornais. Gostaria de saber como
ele interpretaria as sessões do STF sobre o mensalão. Sem desdenhar o muito que
se publica atualmente, acho que, com aquele jeitão que ele tinha, as coisas
ficariam mais claras, ao menos para mim.
Pergunta: o que tem o Paulo com o canto do galo
que Pavese aproveitou para uma de suas obras? A resposta exige um longo
flashback. Para quem não sabe, a citação é da paixão de Cristo. Pouco antes de
ser preso no Monte das Oliveiras, num lugar chamado Getsêmani, o apóstolo Pedro
garantiu que seguiria o Mestre até a morte, mas recebeu o aviso: "Antes que o
galo cante, tu me trairás três vezes".
Pedro tinha sangue quente, logo depois reagiu à
sua maneira, cortando a orelha de um soldado. Diz um dos evangelhos que o Mestre
colocou a orelha de Malco no lugar e advertiu o exaltado discípulo: "Quem com
ferro fere com ferro será ferido".
Não deu outra. Pedro havia acompanhado os
soldados e foi reconhecido três vezes por gente do povo: "Esse aí é um deles!".
Três vezes Pedro negou, sendo que, na última, começou a blasfemar, provando que
não fazia parte dos seguidores daquele prisioneiro. Nisso, o galo cantou e ele
se lembrou daquela advertência, e entrou a chorar. Dizem os evangelhos que Pedro
chorou "amargamente".
Pulando do Monte das Oliveiras, em Jerusalém,
para o hotel Glória, no bairro homônimo do Rio de Janeiro, um pequeno grupo deu
uma vaia no presidente Castelo Branco, em novembro de 1965. O protesto foi
coordenado por amigos que se reuniam na Editora Civilização Brasileira, rua Sete
de Setembro, 97.
Quase todos eram editados pelo Ênio Silveira,
programaram a manifestação, fizeram faixas pedindo liberdade e fim das torturas.
Por decisão da maioria, excluíram o Otto Maria Carpeaux, que era austríaco
nacionalizado, podia ser expulso do Brasil, e o Paulo Francis, que, como o
apóstolo Pedro, tinha sangue quente. Nada se avisou a eles, mesmo assim o Paulo
foi assistir à vaia sem engrossá-la. Ficou a certa distância e viu que todos os
manifestantes foram presos na hora.
Eu estava num dos camburões do Dops, o
Departamento de Ordem Política e Social, ao lado de Flávio Rangel, que fora
preso antes. Vimos o Paulo ao longe e ficamos tranquilos porque ele não estava
no mesmo bolo.
Acontece que fomos levados para o Ministério da
Guerra, onde ficamos meia hora, até que as autoridades decidissem sobre o nosso
destino. Ao sairmos do ministério, baixinho, o Flávio me avisou: "Olha o Paulo
ali na calçada! O que ele veio fazer aqui?".
Rodamos pela cidade e fomos levados para o
quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, famoso naqueles
tempos. O camburão parou diante de um portão que estava fechado. Mais uma vez, o
Flávio me avisou: "Olha o Paulo ali, atrás daquela árvore!". Nunca soube como
ele poderia ter acompanhado a gente, nenhum de nós sabia onde estávamos.
Repetindo a cena do Jardim das Oliveiras, Paulo
manteve-se fiel aos amigos, querendo saber o que fariam da gente. Não creio que
nenhum guarda o tenha acusado de fazer parte da turma. Nem que tenha blasfemado
contra a gente. Mas sua presença foi útil, ele avisou às nossas famílias e a
outros companheiros, naqueles tempos era comum as pessoas desaparecerem sem que
ninguém soubesse onde estavam.
Paulo liderou um movimento de protestos contra
a nossa prisão, Jean-Luc Godard chegou a fazer uma denúncia no filme que na
ocasião estava rodando ("Masculino, Feminino"). Sartre, Pasolini, Resnais, Yves
Montand e muitos outros fizeram manifestos denunciando a violência.
Quanto ao Paulo, reclamou de não ter sido
avisado. Em compensação, pouco depois, foi preso várias vezes, creio que três.
Mas nunca nos perdoou, acusando todo o nosso grupo de sacanagem.
Aqui na Lagoa, onde moro, não deve existir
nenhum galo. Outro dia, sem mais nem menos, ouvi cantar um deles, certamente
perdido em minhas bandas. Shakespeare chamou o galo de "clarim da aurora". Mas
não me lembrei de Shakespeare, nem de Cristo, nem de seu apóstolo. Lembrei do
Paulo atrás de uma árvore, na rua Barão de Mesquita.
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Escritor. Colunista da Folha
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/05/10/2012
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