sexta-feira, 5 de outubro de 2012

" Antes que o galo cante " Carlos Heitor Cony*

 


Não creio que nenhum guarda o tenha acusado de fazer parte da turma. Nem que tenha blasfemado
Uso o belo título de Cesare Pavese ("Prima Che il Gallo Canti") para me lembrar, uma vez mais, do Paulo Francis, cuja falta sinto a cada manhã, quando recebo os jornais. Gostaria de saber como ele interpretaria as sessões do STF sobre o mensalão. Sem desdenhar o muito que se publica atualmente, acho que, com aquele jeitão que ele tinha, as coisas ficariam mais claras, ao menos para mim.
Pergunta: o que tem o Paulo com o canto do galo que Pavese aproveitou para uma de suas obras? A resposta exige um longo flashback. Para quem não sabe, a citação é da paixão de Cristo. Pouco antes de ser preso no Monte das Oliveiras, num lugar chamado Getsêmani, o apóstolo Pedro garantiu que seguiria o Mestre até a morte, mas recebeu o aviso: "Antes que o galo cante, tu me trairás três vezes".
Pedro tinha sangue quente, logo depois reagiu à sua maneira, cortando a orelha de um soldado. Diz um dos evangelhos que o Mestre colocou a orelha de Malco no lugar e advertiu o exaltado discípulo: "Quem com ferro fere com ferro será ferido".
Não deu outra. Pedro havia acompanhado os soldados e foi reconhecido três vezes por gente do povo: "Esse aí é um deles!". Três vezes Pedro negou, sendo que, na última, começou a blasfemar, provando que não fazia parte dos seguidores daquele prisioneiro. Nisso, o galo cantou e ele se lembrou daquela advertência, e entrou a chorar. Dizem os evangelhos que Pedro chorou "amargamente".
Pulando do Monte das Oliveiras, em Jerusalém, para o hotel Glória, no bairro homônimo do Rio de Janeiro, um pequeno grupo deu uma vaia no presidente Castelo Branco, em novembro de 1965. O protesto foi coordenado por amigos que se reuniam na Editora Civilização Brasileira, rua Sete de Setembro, 97.
Quase todos eram editados pelo Ênio Silveira, programaram a manifestação, fizeram faixas pedindo liberdade e fim das torturas. Por decisão da maioria, excluíram o Otto Maria Carpeaux, que era austríaco nacionalizado, podia ser expulso do Brasil, e o Paulo Francis, que, como o apóstolo Pedro, tinha sangue quente. Nada se avisou a eles, mesmo assim o Paulo foi assistir à vaia sem engrossá-la. Ficou a certa distância e viu que todos os manifestantes foram presos na hora.
Eu estava num dos camburões do Dops, o Departamento de Ordem Política e Social, ao lado de Flávio Rangel, que fora preso antes. Vimos o Paulo ao longe e ficamos tranquilos porque ele não estava no mesmo bolo.
Acontece que fomos levados para o Ministério da Guerra, onde ficamos meia hora, até que as autoridades decidissem sobre o nosso destino. Ao sairmos do ministério, baixinho, o Flávio me avisou: "Olha o Paulo ali na calçada! O que ele veio fazer aqui?".
Rodamos pela cidade e fomos levados para o quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, famoso naqueles tempos. O camburão parou diante de um portão que estava fechado. Mais uma vez, o Flávio me avisou: "Olha o Paulo ali, atrás daquela árvore!". Nunca soube como ele poderia ter acompanhado a gente, nenhum de nós sabia onde estávamos.

Repetindo a cena do Jardim das Oliveiras, Paulo manteve-se fiel aos amigos, querendo saber o que fariam da gente. Não creio que nenhum guarda o tenha acusado de fazer parte da turma. Nem que tenha blasfemado contra a gente. Mas sua presença foi útil, ele avisou às nossas famílias e a outros companheiros, naqueles tempos era comum as pessoas desaparecerem sem que ninguém soubesse onde estavam.

Paulo liderou um movimento de protestos contra a nossa prisão, Jean-Luc Godard chegou a fazer uma denúncia no filme que na ocasião estava rodando ("Masculino, Feminino"). Sartre, Pasolini, Resnais, Yves Montand e muitos outros fizeram manifestos denunciando a violência.

Quanto ao Paulo, reclamou de não ter sido avisado. Em compensação, pouco depois, foi preso várias vezes, creio que três. Mas nunca nos perdoou, acusando todo o nosso grupo de sacanagem.
Aqui na Lagoa, onde moro, não deve existir nenhum galo. Outro dia, sem mais nem menos, ouvi cantar um deles, certamente perdido em minhas bandas. Shakespeare chamou o galo de "clarim da aurora". Mas não me lembrei de Shakespeare, nem de Cristo, nem de seu apóstolo. Lembrei do Paulo atrás de uma árvore, na rua Barão de Mesquita.
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* Escritor. Colunista da Folha
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/05/10/2012

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