Francisco Daudt*
A intimidade nos é algo tão caro que nem dada deve ser; no
máximo emprestada; com direito a devolução
O
ex-presidente Janio Quadros foi abordado pela repórter:
" -E aí, Janio, o que há de novo?"
"-Esta nossa intimidade. Intimidade, minha
jovem, só traz aborrecimentos e filhos, e eu não quero nenhum dos dois com a
senhorita".
Ele zelava por um bem precioso que a moça
tentava lhe tomar. A intimidade nos é algo tão caro que nem dada deve ser. No
máximo emprestada, com direito a devolução. Tomada de nós, jamais!
Olhe-a, portanto, como sua poupança, sua casa.
Valiosa, pode ser bem aplicada, mas corre riscos. Ela passou a existir com o
surgimento do indivíduo. Não me fiz claro: não é a partir do nosso nascimento,
mas da criação do indivíduo.
Sua existência é uma novidade na história
humana. Na aldeia primitiva, na tribo que não passava de 200 pessoas, não havia
indivíduos.
As pessoas eram empasteladas, todos se metiam
na vida dos outros, não havia intimidade, não havia indivíduo, pois uma coisa se
alimenta da outra (ou a falta de uma, vai matando a outra). A aldeia homogênea
continua na tirania das cidades pequenas, das tribos de adolescentes, dos
colégios (o bullying patrulha diferenças), das religiões fanáticas: todos
patrulham todos, para que todos sejam iguais.
Formigueiros, colmeias, o ideal comunista da
"igualdade", não a democrática de oportunidade e de direitos, mas a dos cupins,
em que todos são células de um só corpo, o Partido. "A morte foi vencida! As
pessoas não são mais que células, o que importa é o corpo". Até tiranos são
iguais.
O aparecimento do indivíduo só foi possível com
os direitos humanos, a democracia e as grandes cidades, onde ser anônimo protege
a intimidade.
O personagem da história de hoje é um
indivíduo. Único o bastante para não participar de redes sociais nem ter
celular. Um pária, portanto: empresta sua intimidade para poucos escolhidos;
conversa assuntos; não interrompe ninguém para atender ao telefone, ou digitar
mensagens. Estóico, resigna-se quando alguém menos íntimo o faz. É um homem de
vida calma, apreciador das virtudes.
Adora carros desde criança. São, como diz, as
esculturas contemporâneas que mais preza.
Resolveu vender seu atual, que não é
espetacular, apenas é lindo. Sua irmã ofereceu-lhe a postagem da belezura em sua
página do facebook, vai que algum "amigo" se interessasse? Ele, pária que é,
aceitou. Para quê?
Choveram mensagens metidas a engraçadinhas,
debochando dele e de seu carro. Uma em particular, chocou-o, pois vinha de
alguém que ele tem em alta conta.
Deu trabalho explicar-lhe que a internet serve
para o bem, mas igualmente pode despertar, na massa linchadora, um bullying nas
melhores pessoas. Contaminadas pela moda, viram patrulhadoras das diferenças,
num território livre para a inveja e o ódio.
Ódios sarcásticos e "espertos" ganham pontos
como símbolo de status. As redes sociais podem dar vazão à tendência humana a se
encarneirar e em transformar indivíduos em carneiros.
O pecado desse personagem foi ter sua
intimidade exposta. Mas não era nada pessoal, just business, como diz outra
comunidade homogênea, a máfia.
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Colunista da Folha
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