“Aqui,
em 14.10.1906, nasceu a historiadora e filósofa política judia-alemã HANNAH
ARENDT.
Nascida
antes do nacional-socialismo, ela fugiu da Alemanha em
1933.
Seu
trabalho científico foi dedicado às origens do totalitarismo e do
antissemitismo.
Ela
faleceu em 4.12.1975, em Nova Iorque.”
Hoje, 14 de
outubro, Hannah Arendt faria 106 anos. No dia de seu nascimento, suas reflexões
acerca da política e o que ela cunhou de “milagre do novo” estabelecem
horizontes para a compreensão dos processos políticos e sociais ocorridos no
Brasil nas últimas décadas, notadamente, nos últimos 20
anos.
Por
Kim Shonagon e Maila Bendix | Instituto Norberto Bobbio
Hannah
Arendt não aceitava ser chamada de filósofa. Preferia que lhe tratassem por
pensadora. Suas experiências, especialmente os aspectos políticos de seu tempo,
marcaram sua vida de tal forma que, de sua produção intelectual, boa parte foi
dedicada à compreensão dos descaminhos do século XX, em especial o
totalitarismo, posto no mundo, tornando-se um assunto humano. Quando usou como
epígrafe a citação “os homens normais não sabem que tudo é possível”, Arendt
nos sintetizou aquilo que seria uma das grandes temáticas de sua obra: as
possibilidades do agir humano.
Nascida
alemã, refugiou-se na França quando a perseguição nazista aos judeus ganhou
proporções aterradoras. Em 1940, migrou para o Estados Unidos, onde viveu na
cidade de Nova Iorque até sua morte, em 1975. Perdeu a cidadania alemã, mas não
sua identidade. Apesar de ter se tornado apátrida durante o III Reich e depois
cidadã estadunidense, ela guardava sua identidade pela língua materna, que,
segundo ela mesma, é a única coisa que não perdemos.
Foi
em sua morada nos Estados Unidos que Arendt construiu seu legado intelectual,
escrevendo a maioria de sua obras, desde “Origens do Totalitarismo” até seu
inacabado “A vida do espírito”. Seu primeiro trabalho intelectual, a tese que
escreveu para concluir os estudos universitários na Universidade de Heidelberg,
foi um pensar filosófico sobre o amor a partir da obra de Santo Agostinho. Esse
amor se tornaria uma de suas contribuições para o pensamento político: o amor ao
mundo (amor mundi). Vê-se seu percurso caracterizado pela reflexão
política. Contudo, em sua última obra, Arendt retorna às origens: sua formação
de filósofa. Uma investigação sobre as atividades da vida contemplativa: o
pensar, o querer e o julgar, em contraposição àquelas da vida ativa: o labor, o
trabalho e a ação. De certa forma, suas críticas, ao estilo kantiano, apesar de
todas as implicações em teoria política, constituíram, ao final, uma reflexão
filosófica sobre o bem e o mal. Sua obra mais polêmica, “Eichmann em Jerusalém”,
é o texto em que a ação e o julgar se encontram, criando um divisor de águas nas
suas reflexões, dando-lhes estrutura enquanto uma grande linha de raciocínio
voltada à compreensão do seu tempo.
Sua
leitura singular do mundo, manifestada por sua vasta obra, dá-nos elementos
cruciais para a compreensão da política, sobretudo no atual momento em que
ativamos o exercício político por meio das eleições municipais no Brasil. Chamam
a atenção o desenvolvimento de nossa construção democrática e as novas posturas
que os cidadãos brasileiros estão se propondo a exercer. Estamos diante de um
exercício democrático relativamente novo e esse aprendizado do exercício da
cidadania fascina e apavora em suas diferentes facetas: desde o aumento do
interesse por assuntos políticos por parte dos jovens até demonstrações de uma
ascenção conservadora; das reflexões sobre os poderes do Estado, passando pelos
julgamentos políticos (a exemplo do Ficha Limpa, da Lei de Anistia e, mais
recentemente, do Mensalão) até a constatação dos problemas que ainda temos no
que se refere ao alcance do termo democracia, as dificuldades de exercício do
voto, as discussões sobre financiamento público das campanhas eleitorais, dentre
tantos outros. Alguns aspectos enchem nosso horizonte de esperanças e boas
expectativas, ao passo que outros assustam e põem a sociedade diante de
ideologias mórbidas e reacionárias.
O
processo de construção da democracia no Brasil intensificou-se após o fim da
ditadura militar, em 1985, tendo como resultado a disseminação da palavra
cidadania. Devido à banalização do termo, houve um esvaziamento de seu
significado, bem como do próprio conceito de democracia, conceitos estes que não
haviam sequer sido incorporados ao imaginário político nacional. A democracia,
como já se acreditou, pode ser uma ferramenta para a superação das questões
referentes ao nosso passado. Todavia, ela não se resume a isso. A democracia é
uma constante invenção, não cingindo-se à mera conservação de direitos: é também
a criação ininterrupta de novos direitos, a subversão contínua do que foi
estabelecido, a restituição permanente do social, do econômico e do político. No
entanto, essa invenção é coletiva e exige a participação de diversos agentes. Na
perspectiva moderna do termo, diríamos: ela demanda a participação de
todos.
Arendt diz também que o
poder é muito frágil, pode se esgotar, culminando no fim da vida no mundo,
reduzindo as pessoas a trabalhadores que buscam somente sua sobrevivência na
Terra,
sem qualquer
comprometimento com sua transformação e a construção da esfera
pública.
Nesse
sentido, podemos mobilizar o conceito de poder proposto por Arendt a fim de
analisar a democracia em nosso atual momento político. O poder é a capacidade
humana de agir em comum acordo, nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a
pessoas unidas e existe somente enquanto se conservam unidas. No momento em que
a união da qual ele se originou desaparece, “o poder” também some. Isso
significa que enquanto as pessoas agem juntas, existe poder, e quando elas
dispersam-se, o poder desaparece. O poder deve ser comunicativo, dividido e
contrabalanceado. Se bem dividido e interativo, pode gerar mais poder. Ele não
permanece ao longo do tempo, não pode ser trocado, comparado a um bem material,
porque é produto da ação, que é dinâmica. Arendt diz também que o poder é muito
frágil, pode se esgotar, culminando no fim da vida no mundo, reduzindo as
pessoas a trabalhadores que buscam somente sua sobrevivência na Terra, sem
qualquer comprometimento com sua transformação e a construção da esfera
pública.
As
características do poder são: a pluralidade e a ilimitação. Para que exista
poder é necessária unicamente a convivência entre as pessoas. O impedimento para
que haja o poder é a ausência de pessoas reunidas, pois ele desenvolve-se em um
campo abstrato que não se restringe à natureza humana, desse modo, não importa
se as pessoas possuem limitações físicas, de instrumentos, pois o poder só
requer o seu agrupamento. O poder é compartilhado entre as pessoas, todas elas
têm poder sem que ele seja reduzido a ninguém, e essa situação participativa
gera mais poder. Assim, a efetivação do poder depende da indissociabilidade
entre palavra e ato. As palavras têm fundamento, os atos não são brutais e ambos
servem para estabelecer as relações políticas. Por isso o poder legítimo
constitui-se a partir do consentimento e do apoio popular, fundados na livre
troca de opiniões entre iguais. Ele é baseado na autorização e participação da
maioria das pessoas. Sem o discurso para materializar e celebrar, ainda que
provisoriamente, as coisas novas que surgem e resplandecem, não há memória; sem
a permanência duradoura do artifício humano, não haverá recordação das coisas
que têm de suceder depois de nós. E sem o poder, o espaço da aparência produzido
pela ação e pelo discurso em público desaparecerá tão rapidamente como o ato ou
a palavra viva.
O
conceito de poder em Hannah Arendt convoca-nos a pensar em que tipo de ação
conjunta e de democracia estamos construindo, sem ignorar nosso passado e a
maneira como nos formamos. Durante séculos de dominação colonial e
posteriormente elitista, o cidadão brasileiro foi privado desse exercício de
cidadania, sendo-lhe, portanto, imposta uma apatia, que, posteriormente, se
cunhou de um defeito de nossa gente, algo intrínseco a nossa estrutura anímica.
A grosso modo, podemos emprestar de Arendt suas ponderações sobre o racismo e
concluir com ela que essa construção acerca das tendências naturais de um povo
ou de um grupo étnico não são mais do que formas de dominação, de segregação e
de justificar até mesmo o extermínio. Daí entendermos que essa dita apatia não
corresponde à realidade, mas a um discurso, que desqualifica a cultura, as
formas de agir, de pensar e de participar do povo brasileiro, que incorporam as
contribuições negras e indígenas. Mesmo reprimida, a participação popular sempre
existiu, desde que existem grupos sociais excluídos que se manifestam e demandam
ações ou políticas governamentais.
Nessa
perspectiva, Arendt pensa a política como ação conjunta. Sendo a pluralidade a
lei da terra, entende que o engajamento cidadão é a forma de exercer uma
liberdade criativa, capaz de criar mundo. Livres dos condicionamentos próprios
da existência voltada a manutenção da vida (o labor), o homem, animal político,
exerce sua liberdade na esfera pública, o espaço de encontro dos livres e
iguais, para deliberarem, em conjunto, sobre o bem, sobre o justo e darem
sentidos à existência. Ao não ser absolutamente determinado por instintos
naturais, o homem é um ser político pela sua capacidade de fazer escolhas, pela
liberdade que ele conquista ao dominar a natureza e as necessidades de sua
condição animal.
Nossa
história, aqui no Brasil, foi marcada por constantes atos de violência por parte
dos grupos dominantes contra as tentativas de agremiação e ação conjunta do povo
brasileiro, completamente opostos ao poder – onde há violência não há poder e
vice-versa. Exemplos não faltam, apesar de desmemória que se criou em torno
deles. Porém, a questão é que desde as resistências ameríndia e africana do
período colonial até as mobilizações atuais, o povo brasileiro esforça-se para
ser livre, para escolher, tentando levar a cabo a ideia de política como
exercício de liberdade. E se hoje temos horizontes diante de nós, apesar da
incipiência de nossas instituições republicanas e democráticas, a verdade é que,
com a maturidade de nossa democracia, a tendência é alinharmos progresso
econômico com justiça social, criando, assim, a almejada liberdade e igualdade
cidadãs.
Imperioso,
nessa esteira, é compreender as razões pelas quais o progresso econômico
brasileiro é tão importante para nossos processos políticos. E que tal progresso
seja efetivo na vida dos cidadãos, significando melhor distribuição de renda e
acesso a bens e serviços. Só há democracia se há igualdade. E não uma igualdade
puramente formal; é necessário a equidade na distribuição de renda, a fim de que
possamos gozar de padrões mínimos de existência, que irão promover a convivência
equilibrada entre os cidadãos, sem haver opressão econômica tal que lhes prive
da liberdade política de fato. As discrepâncias sociais que ainda existem, mas
estão sendo combatidas nos últimos anos, foram, talvez, um dos maiores entraves
à construção de nossas cidadania e democracia. Daí porque não se pode falar em
democracia sem que haja condições econômicas e sociais para a existência livre e
igualitária entre os homens. Longe de falar em ausência de classes ou de
diferenças, essa igualdade material, proporcionada pela equidade na distribuição
de riquezas, significa um principio de garantia de condições mínimas para a
existência, que permita ao indivíduo ter liberdade para agir, mesmo diante dos
mais ricos, pois que sua vida – no sentindo mais banal do termo, entendida como
manutenção do corpo, do organismo – não está nas mãos de quem quer que seja,
haja vista a sua condição econômica.
Dessa
forma, a igualdade é indispenável ao exercício da liberdade entre os homens;
liberdade que se conquista pela emancipação econômica: eis ai o cerne da
política arendtiana. Em nosso país, esse valor de justiça social, elemento de
construção da igualdade, constitui uma de nossas maiores lutas democráticas.
Nessa direção, podemos pensar que nossa emancipação econômica e social também
atualizam aquilo que estaria no centro da ação política para Arendt. Se a ação
tem como resultado o novo, nossas conquistas por mais democracia e mais
liberdade passam necessariamente pela busca de mais igualdade material.
Outro
aspecto é o aprendizado do exercício da liberdade democrática. Como votar, como
escolher? É imperativo para nós, cidadãos, que reflitamos acerca da nossa
participação política, já que é por meio da ação no sentido arendtiano que
teremos possibilidades de escolher e determinar os rumos do nosso país. Essa
ideia coaduna com o pensamento de outros teóricos, como o filósofo Norberto
Bobbio, para quem a apatia política pode comprometer o futuro da democracia. O
exercício da democracia passa pelo entendimento do seu alcance e,
principalmente, pela compreensão de que a participação do cidadão não se cinge
ao voto. O engajamento vai além e demanda um exercício diuturno de participação
nas diversas esferas onde se exerce poder político. Ao desqualificar o povo como
agente político, nossa tradição autoritária criou a desmemoria e a opressão,
geralmente brutal, como meios de manter uma democracia apenas de fachada no
Brasil.
A
abertura democrática, ocorrida em 1985, permitiu, ao longo dos anos, o
surgimento do mal estar: a insatisfação, a contestação das estruturas, a
ressignificação do próprio conceito de brasileiro, novas posturas. De modo
geral, podemos dizer que o aumento da participação do povo na gestão da coisa
pública, a compreensão de sua responsabilidade como agente transformador e maior
conscientização dos deveres cívicos tem conduzido ao questionamento e a ainda
pequenas, mas significativas transformações. Temos como exemplos: a instauração
da Comissão da Verdade, para apurar os atos ainda obscuros que cercam nosso
passado ditatorial; a política de cotas e todas as discussões que ela gera
acerca do racismo; o surgimento de novos canais de comunicação que contrastam
com as versões, há muito usadas, da grande imprensa formadora de opinião; a
maior transparência política, com atuação cada vez maior de controles externos
ao poder e o fortalecimento e legitimação dos controles internos, dentre
outros.
Por
certo que estamos no início de um longo caminho: a construção da cidadania e,
por conseguinte, o exercício dos ideais democráticos e republicanos. Vemos isso
nas inúmeras questões que cercam o último processo eleitoral, ainda em curso: as
eleições municipais. Municípios com apenas um candidato, coligações partidárias
incompreensíveis até mesmo aos estudiosos da política brasileira, campanhas
eleitorais sem plano de propostas, amparadas apenas em propaganda milionária
custeada por particulares, grande número de abstenções, votos em branco e nulos.
Ainda nos falta entender como o voto pode mudar as coisas: bem escolher e,
principalmente, ter opções são duas situações implicadas no exercício do
sufrágio. Ter candidatos é também uma construção. Não votar nos mesmos nomes de
sempre força o surgimento de novos nomes, que, sob o massacre das campanhas
milionárias, não conseguem chegar ao eleitor. Estimular e apoiar lideranças e
iniciativas populares, entre jovens, entre os que estão perto de nós. Nós mesmos
assumirmos uma postura política no trato dos nossos problemas coletivos e
comunitários. Agir em conjunto, construir nossas opções, com o engajamento
cívico, para então dar-se o escrutínio e a escolha. O “milagre do novo” almejado
com esperança por Hannah Arendt também surge aí, onde nós abrimos o horizonte
para esse milagre acontecer, rompendo o ciclo das repetições e do
esquecimento.
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Fonte:
http://hannaharendt.wordpress.com/2012/10/14/arendt-e-o-milagre-que-fazemos/
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