Marcelo Coelho*
Em "Intocáveis" muitas cenas se
constroem a partir da ignorância
quase selvagem de Driss
O
público ri bastante em "Intocáveis", filme de Eric Toledano e Olivier Nakache,
em cartaz há algum tempo em São Paulo. É bem engraçada, sem dúvida, a
sem-cerimônia, a mistura quase brasileira de pureza e malandragem revelada pelo
personagem Driss (Omar Sy).
Ele é um imigrante africano com passagem pela
polícia, que encontra emprego como cuidador do milionário Philippe (François
Cluzet), tetraplégico depois de um acidente.
Muitas cenas se constroem a partir da
ignorância quase selvagem, quase "rousseauniana", de Driss. Ele se espanta, por
exemplo, com o preço altíssimo de uma obra de arte que lhe parece apenas uma
série de respingos espalhados sobre a tela.
Em vários momentos, o filme recorre a um mesmo
expediente cômico: Driss fecha questão sobre alguma tarefa que não irá
desempenhar em hipótese nenhuma, para logo em seguida, depois de um corte, a
plateia se divertir assistindo ao enfermeiro fazer exatamente aquilo que lhe
tinha sido ordenado.
Imagino que, depois de algum tempo, a maior
parte das tiradas do personagem tenham sido previstas pelos espectadores. Isso
não importa muito, porque o riso é menos provocado pela surpresa do que pela
simpatia.
A vontade de rir nasce do fato de que o próprio
ator ri com uma facilidade maravilhosa, pelos motivos mais comuns. Driss tem um
pouco do caipira, à la Mazzaropi, que fica de queixo caído ao ver o luxo de um
banheiro e morre de medo de avião.
"Falando sobre a velhice e a
doença,
Baudelaire evoca "o horror secreto"
que existe no olhar dos que
se dedicam aos inválidos."
Para sorte dos espectadores, o tetraplégico de
quem ele deve cuidar reduz a poucos minutos seus instantes de agonia e
depressão. Prefere divertir-se com o empregado, assustando-o quando convém,
enganando-o outras vezes, numa espécie de jogo intelectual.
Os dois, neste filme que é feito de pura
felicidade e vida, saem ganhando muito do encontro. Baseando-se numa história
real, ainda assim "Intocáveis" parece, não digo totalmente falso, mas um bocado
artificial e construído.
Como em qualquer roteiro de "Sessão da Tarde",
surgem pequenas dificuldades no meio do entrecho, apenas para que, superadas, o
fim do filme seja especialmente satisfatório.
O encontro do bom selvagem e do aristocrata em
fim de linha poderia ser mais caricato, em todo caso, se os diretores não
soubessem que o clichê precisa ser maquiado para um público que já não é tão
ingênuo assim.
Desse modo, o bom selvagem é também um sujeito
de maus antecedentes, e seria preciso um ricaço muito especial para admiti-lo em
sua própria mansão. Por isso mesmo, Philippe surge como alguém que gosta de se
arriscar -tanto que se acidentou num voo de parapente. Prefere a emoção, a
loucura e o imprevisto à rotina médica em que está encarcerado.
Nada disso, a rigor, fugiria das fórmulas mais
batidas do cinema "independente". É o chamado filme "humano", com personagens em
situações muito raras de acontecer, por trás de cuja estranheza sempre estarão
pulsando sentimentos essenciais e bons.
Houve um momento em "Intocáveis", contudo, em
que uma verdade, a meu ver, mais profunda, se deixa entrever.
É quando Philippe justifica, a um amigo, a
escolha imprudente que fez. De todos os funcionários que cuidaram dele, Driss
era o único, explica, que não lhe dirigia olhares de compaixão.
De fato, Driss tem sempre na ponta da língua
alguma piada incorreta sobre tetraplégicos e chega a fazer experiências
"científicas" com a insensibilidade nas pernas do seu paciente.
Falando sobre a velhice e a doença, Baudelaire
evoca "o horror secreto" que existe no olhar dos que se dedicam aos inválidos.
Pior ainda se lermos esse horror nos olhos de alguém que, no passado,
desejáramos com avidez.
"Intocáveis" talvez traga com isso uma lição
contra o "politicamente correto" e também contra os que o consideram uma
hipocrisia.
Não é num espírito de compaixão (pelos pobres,
pelos doentes) que surge um relacionamento humano autêntico. Nem mesmo num
espírito de "respeito" convencional. Certamente, nada se pode esperar do
contrário disso - do desrespeito, do desprezo, do preconceito.
O caminho, mais difícil, não nasce da superação
forçada de uma assimetria. E sim da aproximação de duas misérias desiguais, de
duas pobrezas diferentes, de duas dores incompatíveis, próprias a cada um, e
que, sem trocarem de lugar, pertencem ao fundamento geral (e superável) da
fragilidade humana.
*
Colunista da Folha
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