João Pereira Coutinho*
Ferreira Gullar -
Imagem da Internet
Escrever é continuar essa revelação do
não-dito, como se o poeta fosse o elo de uma corrente interminável
Viajo para Londres. Na mala, algumas revistas
para ler nas duas horas de voo. Tiro a primeira. Folheio as páginas iniciais.
Encontro Ferreira Gullar em entrevista à "Veja". O dia está ganho.
Sobre o poeta, não vale a pena dizer o óbvio:
depois da morte do lusitano Mário Cesariny (1923-2006), Ferreira Gullar é o
único poeta de língua portuguesa que merece a honraria do Nobel.
Embora, atendendo às anedotas recentes da
academia sueca (Elfriede Jelinek, Herta Müller etc.), talvez seja mais correto
dizer que é o Nobel que precisa do prestígio de Gullar.
Mas a entrevista é sobretudo uma lição de
política só possível em alguém que, permanecendo à esquerda no que a esquerda
tem de melhor (uma insubordinação instintiva perante abusos ou privilégios
injustificáveis), aprendeu e refletiu com a experiência histórica.
"Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém
era. Agora que dá prêmio, todo mundo é", diz o poeta. Eis o "espírito do tempo",
feito de oportunismo e farsa ideológica.
Ferreira Gullar não alinha em farsas. O
capitalismo tem páginas abomináveis de miséria e exploração, sobretudo nas
incipientes sociedades industriais do século 19? Sem dúvida -e ler Charles
Dickens é, nesse quesito, mais relevante do que ler Marx, que nunca pôs os pés
numa fábrica e tinha Engels para sustentá-lo.
Mas o capitalismo, apesar de tudo, "é forte
porque é instintivo", diz o poeta. Em apenas uma frase, Gullar resume o que Adam
Smith escreveu em dois volumes, 250 anos atrás.
Existe nos seres humanos um desejo natural para
"melhorarem a sua condição", escrevia o filósofo escocês. E essa melhoria
material só se consegue quando o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro perseguem
o seu próprio interesse, negociando os seus produtos e procurando aumentar os
seus lucros.
"É um bom princípio de
responsabilidade
política: só defendermos regimes
sob os quais estamos dispostos a
viver.
Todo resto é pose pornográfica."
Fato: sem freios éticos ou legais, o
capitalismo é destrutivo e autodestrutivo. Mas quando existem esses freios, e
nenhum liberal clássico prescinde deles (Adam Smith, antes de escrever "A
Riqueza das Nações", escreveu primeiro a sua "Teoria dos Sentimentos Morais",
base ética de qualquer sociedade civilizada), não há outra forma, historicamente
comprovada, de gerar riqueza.
Claro que, para um marxista puro e duro, o
capitalista nunca gera riqueza; ele explora quem trabalha e vive do suor alheio,
de preferência fumando o seu charuto e brandindo o chicote. Raymond Aron, o mais
incisivo crítico do marxismo que conheço, tem páginas notáveis onde desmonta
essa dicotomia caricatural entre "capital" e "trabalho".
Ferreira Gullar prefere uma metáfora: "O
empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas". E
acrescenta, para os lentos de raciocínio: "A visão de que só um lado produz
riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária".
Finalmente, as lições da história: Ferreira
Gullar não se limita a relembrar os crimes do "socialismo real", hoje uma
evidência para qualquer pessoa com dois neurônios em funcionamento.
Ele deixa uma pergunta devastadora: quantos dos
defensores de Cuba estariam dispostos a viver lá? Sim, a viver enjaulados em uma
ilha de onde é difícil sair, onde publicar um livro implica uma permissão
governamental -e onde a igualdade na miséria é a única igualdade que existe e
resiste?
É um bom princípio de responsabilidade
política: só defendermos regimes sob os quais estamos dispostos a viver. Todo
resto é pose pornográfica.
Infelizmente, não sobra espaço para as
meditações estéticas propriamente ditas. Mas Ferreira Gullar, relembrando a
morte de um filho, deixa esta definição (meta) poética primorosa: "Os mortos
veem o mundo pelos olhos dos vivos".
Nem mais: escrever é continuar essa revelação
interminável do ainda não-dito, do ainda não-experimentado, como se o poeta
fosse o elo presente de uma corrente interminável.
Ou, como o próprio Gullar escreveu nos seus
velhinhos "Poemas Portugueses", que praticamente aprendi de cor:
"Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão
Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação".
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* Jornalista, escritor, historiador e comentador e cientista político
português. Prof. Univesitário.
jpcoutinho@folha.com.br
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