sábado, 7 de dezembro de 2013

"Adélia Prado retorna à poesia com " Miserere "



Adélia Prado - Tiago Queiroz/Estadão

Nos 38 poemas, a escritora flerta com a metafísica ao mesmo tempo em que aposta na grandeza das pequenas coisas

A poesia, para Ferreira Gullar, nasce de um espanto. Já para Adélia Prado, ela vem da “terceira margem da alma”. Ambos concordam, porém, que os momentos inspirados vêm subitamente, sem controle, reservando ao poeta a função de instrumento para decodificá-los em versos. Por isso é irregular o período que separa cada novo livro de poesia. Adélia, por exemplo, não publicava nada havia três anos, quando saiu A Duração do Dia. O jejum termina na quinta-feira, quando chega às livrarias Miserere (editora Record).

São 38 poemas, em que a maior poeta brasileira viva (ao lado de Gullar e Manoel de Barros) tanto flerta com a metafísica como se atém aos detalhes do cotidiano, mas, acima de tudo, aposta na grandeza das pequenas coisas. E, como não poderia ser diferente, sua poesia estabelece um diálogo com Deus, uma ponte com a transcendência e uma crença na perenidade da carne e na eternidade da alma.

Por que os poemas de Miserere são mais escuros que seus habituais? O título do livro foi definido por conta disso?Primeiro porque os olhos se turvam na velhice e a privação de regalias da juventude trazem consigo, de maneira não idealizada, as realidades do sofrimento e da morte. Abrir os olhos dói: morrer de tuberculose, que eu achava o máximo na maioria dos poetas que admirava na escola e de muitos santos que me encantavam com seus martírios, é de fato coisa tenebrosa e dificílima. Hoje, quando digo ‘miserere nobis’ (tem piedade de nós), sei um pouquinho mais do que estou falando. Assusta descobrir nossa orfandade original. Mas nada se apresenta sem remédio por causa da fé e da poesia, que considero uma forma estupenda de fé e esperança. O título Miserere foi escolhido porque me parece o que mais revela o espírito do livro.

A senhora faz duas citações de Marie Noël, poeta francesa que viveu a separação entre a fé e o desespero, e cuja obra culminou com um grito blasfemo, mas particularmente comovente. O que lhe atrai na poesia de Noël?Exatamente o que você citou. Seu sofrimento me deixa perplexa e eu não conheço sua poesia – certamente o que lhe permitiu viver. Sabe onde encontro sua obra? Só conheço Notas Íntimas, que me impressionou muitíssimo e onde me reconheci de corpo inteiro em alguns aspectos. Ler esse livro bastou-me como ingresso em sua tribo.

Mística e poesia são braços do mesmo rio. Deus me deu o segundo, mas a fonte é a mesma, o Espírito Divino. A despeito de si mesmo, o poeta ateu entrega o ouro em sua poesia. É simples, rigorosamente ninguém é o criador da Beleza (poesia). Ela vem, eu diria como Guimarães Rosa, da terceira margem da alma. O poeta é só o “cavalo do Santo”, queira ou não. Às vezes, somos tentados a desistir quando descobrimos que ela, a poesia, é muito melhor que seu autor. É a tentação do orgulho. Que Deus nos livre dela.

O mundo atual, perturbado pelo terrorismo e pela guerra, ainda é propício à poesia? Não apenas propício à poesia, mas faminto dela.

A senhora já teve alguma experiência mística por meio da arte?Como diz Guimarães Rosa, não sei de nada, mas desconfio de muita coisa. Mística – a experiência – é dom de Deus que Ele dá a quem quer. Estou na categoria dos seguidores. Ele me protege, tenho medo de certas dores.

A senhora acredita que sua poesia perderia o sentido sem a religião? A poesia é mais oração ou mais comunhão? Acredita que pode haver um poeta ateu?Certamente escreveria outro tipo de poesia, mas não deixaria de escrevê-la. No texto de um poeta ateu, o substrato de sua poesia é o mesmo no de um poeta crente. Porque o fenômeno poético é religioso em sua natureza. A poesia, independentemente da crença ou não crença do poeta, nos liga a um centro de significação e sentido, assim como o faz a fé religiosa. Por isso é que a poesia é tão consoladora, dá tanta alegria. Minha formação é religiosa, confesso o que creio e é impossível que nossas profundas convicções desapareçam quando escrevemos. Seria esquizofrênico. Mística e poesia são braços do mesmo rio. Deus me deu o segundo, mas a fonte é a mesma, o Espírito Divino. A despeito de si mesmo, o poeta ateu entrega o ouro em sua poesia. É simples, rigorosamente ninguém é o criador da Beleza (poesia). Ela vem, eu diria como Guimarães Rosa, da terceira margem da alma. O poeta é só o “cavalo do Santo”, queira ou não. Às vezes, somos tentados a desistir quando descobrimos que ela, a poesia, é muito melhor que seu autor. É a tentação do orgulho. Que Deus nos livre dela.

É curioso como a realidade também parece exercer forte influência em seus versos – lembro-me de O Ditador na Prisão, que nasceu a partir de sua preocupação do destino do ex-presidente iraquiano Saddam Hussein, e agora em Lápide para Steve Jobs. A força da poesia está em oferecer um conforto moral?A poesia oferece a realidade e sua beleza. Esta é sua força, seu conforto, sua alegria.

“Graças a Deus sou medrosa, / o instinto da sobrevivência / me torna a língua gentil” são alguns versos de Branca de Neve. Até que ponto isso se aplica à sua poesia?A poesia não é nem pode ser uma “língua gentil”. Tem que ser sempre uma língua bela. No poema citado, Língua Gentil refere-se ao poeta e a seus medos e não à poesia propriamente. Língua Gentil, no caso do poema, é a língua que o poeta diz usar para não estumar as feras, para que elas não o devorem. De novo, não no poema, mas na vida, para lidar com os monstros interiores.

Quando a realidade cotidiana se mostra como maravilhamento e quando não passa de mera realidade?Quando olho pedra e vejo pedra mesmo, só estou vendo a aparência. Quando a pedra me põe confusa de estranhamento e beleza, eu a estou vendo em sua realidade que nunca é apenas física. A aparência diz pouco. Só a poesia mostra o real.


Leia alguns deles a seguir:

"Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tanto a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
eu vou gerar um cacto sem espinho."
(Senha)

"A Bíblia, às vezes, não me leva em conta,
tão dura com minha gula.
Nem me adiantou envelhecer,
partes de mim seguem adolescentes,
estranhando privilégios.
Nunca me senti moradora,
a sensação é de exílio.
Criancinha de peito, essa já sabe,
seu olhar muda qmas por agora a unidade nos cega,
daí o múltiplo e suas distrações.
Deus sabe o que fez.
Mesmo com medo escrevo
que é 1º de julho de 2011.
Parece póstumo, parece sonho.
Alguma coisa não muda,
minha fraqueza me põe no caminho certo.
Deus nunca me abandonou."
(Sala de Espera)

"Os peixes me olham
de suas postas sangrentas.
Falta modéstia às frutas.
De ponta a ponta, barracas,
quero fugir dali
acossada pelos tomates
de inadequado esplendor.
Compro dois nabos para comê-los crus,
feito um eremita em sua horta.
Não por virtude,
por orgulho talvez travestido do júbilo
que me vendeu o diabo
em sua tenda de enganos."
(Feira de São Tanaz)

"A Deus entrego meus pecados,
entrego-os a quem pertencem,
não a Satanás que é um dos nossos
e sofre também o tormento dos filhos
que têm o Pai ocupado em alimentar pardais.
Nem torres que tocam a lua,
ou o que quer que nos roube o fôlego,
fazem assomar Seu rosto.
Por que nos abandonastes?
Vosso Filho soube, na obediência da morte,
e o que se viu foi só um tremor rasgando a pele da terra.
Alguém no derradeiro instante exclamou Oh! Oh!
E fechou os olhos.
Eu não tenho aonde ir, tudo me ignora,
ignoro tudo, pois sou natureza.
Um beija-flor enfia numa flor natalina
o seu bico comprido e come e bebe e voa,
não pousa no meu ombro,
não bebe do meu olho a água de sal.
Por agora, o que me faz prosseguir
é sua indiferença. Esta ausência de milagre."
(Lápide para Steve Jobs)
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Reportagem por Ubiratan Brasil - O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão online, 07/12/2013

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