segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

" Anfetamina ESPIRITUAL "


Sérgio Augusto*

Maratona: A redatora Mita Diran morreu após três dias de esforço ininterrupto - Reprodução
Reprodução
Maratona: A redatora Mita Diran morreu após três dias de esforço ininterrupto

Trabalhar demais nos incute a ilusão de que não somos tão insignificantes assim

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Em sua última postagem no Twitter, no dia 14, Mita Diran cantou vitória: "30 horas de trabalho e continuo fooorte". Horas depois, já nada forte, Diran morreu. Redatora de publicidade da Young & Rubican da Indonésia, Diran foi a mais recente vítima do que os japoneses batizaram de karoshi (overdose letal de trabalho) a ganhar destaque no noticiário internacional. No mesmo dia, a revista britânica New Statesman publicou um vigoroso ensaio de Steve Poole, Por Que o Culto ao Trabalho Intenso é Contraproducente, que Diran não teve tempo de ler.
Se a jovem publicitária sucumbiu a um autoimposto desafio ou a uma disputa subliminarmente estimulada por seus patrões é detalhe secundário. O fato concreto é que ela, com ou sem o aditivo de uma bebida energética, morreu por trabalhar demais e repousar de menos. Ou seja, por incidir no mesmo erro que milhões de pessoas cometem diariamente no mundo inteiro.

A impressão que se tem é que a humanidade nunca esteve tão "ocupada", tão "sem tempo pra nada", "trabalhando alucinadamente", "morta de cansaço". O desemprego grassa, mas também por isso trabalha-se mais e por mais tempo: no subemprego, nos frilas, na faina informal; fora e dentro de casa, em plantão permanente, inclusive nas horas de lazer. E ainda exigem que sejamos mais rápidos. Em prol de um inquestionado valor de nosso tempo, a produtividade.

Daí o astucioso neologismo busyness, amálgama de ocupado (busy) e negócio (business), supostamente criado por Andrew Smart, no livro manifesto Autopilot: The Art and Science of Doing Nothing, e popularizado por Tim Kreider, na página de opinião do New York Times, no ano passado. "Ocupação" seria a tradução perfeita se já não significasse, em português, qualquer tipo de trabalho. Adotemos o busyness.

Até as crianças andam mais "busy" hoje em dia, metidas em atividades extracurriculares, terapias ocupacionais e solicitações eletrônicas, sem folga para as folganças de gerações passadas, sem tempo para o dolce far niente contemplativo, para o ficar bestando sabidamente regenerativo e potencialmente criativo. E como é de pequenino que se torce o pepino, já existem manuais de autoajuda para se educar crianças a administrar bem seu tempo, vale dizer, ajustá-las precocemente à lógica do capitalismo moderno, do "tempo é dinheiro", da eficácia regida por algoritmos e outros prodígios da tecnologia da informação corporativa. Que, aliás, não são infalíveis, embora intensa e piamente utilizados na contratação de funcionários por empresas do Vale do Silício.

A presente e histérica sobrecarga de afazeres, salienta Tim Kreider, nem sempre é uma necessidade ou uma inevitável condição de vida; é uma opção, voluntária ou aquiescente, alimentada por uma espécie de consolo existencial, um antídoto contra a sensação de vazio e a solidão. Uma agenda cheia, ainda que de compromissos tão ou mais dispensáveis que a maioria das ligações feitas ou recebidas pelo celular, é uma anfetamina espiritual, um placebo que nos incute a ilusão de que afinal não somos tão prescindíveis e insignificantes assim.

Crescemos e nos multiplicamos ouvindo toda sorte de platitudes em favor do trabalho, que ele enobrece o homem, dá sentido à vida. Mas Deus, como gostava de lembrar Millôr Fernandes, só falou em trabalho depois que o homem comeu a maçã, o que configura duas coisas: que o trabalho foi um castigo (a palavra trabalho vem do latim tripalium, um instrumento de tortura) e o destino humano era a vagabundagem. Ou a ociosidade criativa preconizada pelos filósofos gregos, por Sêneca, Montaigne, Lafargue, Russell e toda uma linhagem de sábios, que passa por Ascenso Ferreira e alcança Camus ("Os ociosos é que transformam o mundo, porque os outros não dispõem de tempo para fazê-lo"), Milan Kundera e Thomas Pynchon. O Princípio de Arquimedes, não custa lembrar, nasceu num banho de banheira. E a Lei da Gravidade, quando Newton relaxava debaixo de uma macieira.

Em plena vigência do moralismo cristão ("Ganharás o pão com o suor do teu rosto", etc.), radicalizado pela ética do trabalho protestante, e dos primeiros desdobramentos do taylorismo, Cesare Pavese proclamou: "Lavorare stanca" (trabalhar cansa). Publicou um livro com esse título, na Itália fascista, mas não foi preso por isso. O fascismo, apesar de tudo, não fez da ergolatria uma doutrina de Estado como os nazistas (que afixaram nos pórticos de seus campos de concentração o mote "Arbeit Macht Frei", o trabalho liberta), os comunistas soviéticos (que inventaram o stakanovismo), e a ditadura do Estado Novo (que proibiu sambas e marchinhas simpáticos à malandragem).

O stakanovismo foi um movimento de massa visando a elevar os níveis de produtividade na União Soviética. Inspirou-se no recorde sobre-humano de extração de carvão batido pelo mineiro Alexei Stakanov, em 1935, que Stalin manipulou como "um exemplo para mostrar ao mundo a eficácia do sistema de trabalho socialista". Em 1976, o cineasta polonês Andrzej Wajda fez um ótimo filme sobre um pedreiro da Cracóvia acometido de stakanovismo, O Homem de Mármore. Está na hora de alguém abordar o stakanovismo do nosso tempo, o karoshi digital. Ou será que Mita Diran morreu em vão?
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* Colunista do Estadão
Fonte: Estadão online, 22/12/2013

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