CLÁUDIA LAITANO
Experiências inesquecíveis em viagens podem ser divididas basicamente em dois tipos: as de reconhecimento e as de espanto. As primeiras costumam acontecer nos destinos turísticos mais tradicionais. Você cruza uma esquina e pá!, lá está o Coliseu, onde sempre esteve nos últimos 2 mil anos, e na hora o cenário real se sobrepõe ao Coliseu tantas vezes imaginado, provocando a deliciosa vertigem do reconhecimento. Conhecer (ou reconhecer) é o que leva muitas pessoas a pegar um avião e cruzar o planeta, mas se espantar, ou seja, topar com algo totalmente inesperado, faz com que a gente volte de uma viagem com a sensação de que o mundo ficou maior e mais complicado – no bom sentido.
Estive na África do Sul duas vezes, em 2007 e 2011, e desde então não parei de recomendar o país como destino ideal para quem gosta de se surpreender em viagens. Não faltam motivos para se espantar por lá, mas há também uma certa proximidade com o Brasil – e essa combinação de estranhamento e familiaridade dá um tempero especial ao país.
Em uma visita a uma comunidade zulu, na província de KwaZulu-Natal, por exemplo, tive uma das experiências mais intensas em viagens de que consigo me lembrar: um espetáculo de crianças dançando da forma mais alegre e contagiante possível – como se fossem as primeiras crianças da Terra a descobrir o prazer de dançar, e eu a primeira espectadora a descobrir o prazer de assistir.
Durante essa primeira viagem, chamou minha atenção a canonização em vida de Nelson Mandela. Bonecos nas lojas de souvenires, toalhas de mesa, bandeiras, todo um catálogo de quinquilharias pareciam transformar Mandela em uma espécie de produto de exportação do país.
Nas conversas com sul-africanos, não era muito diferente: “Madiba” aparecia como uma mistura de pai, soberano, libertador, guia espiritual. Para um observador latino-americano, ressabiado com líderes que se aproveitam da adoração popular para construir não um projeto de país, mas um culto pessoal, bonequinhos de pano com a figura de Mandela, a 10 rands cada, acendiam um alerta vermelho.
Foi preciso que eu descobrisse o sentido da palavra “ubuntu” para começar a entender por que Mandela jamais seria reduzido ao papel de líder messiânico ou de objeto de consumo. Ubuntu é uma palavra dos povos bantos da África do Sul, de difícil tradução, que significa algo como “eu sou porque nós somos”. É uma filosofia que existe em vários países africanos e que se baseia nas alianças e no sentido de comunidade, cuidado mútuo e compartilhamento.
Mandela dizia que ubuntu, na vida cotidiana, é oferecer um copo de água para um viajante que chega cansado antes mesmo que ele precise pedir. Essa sabedoria solidária de matriz africana foi decisiva na sua formação e está na base da sua luta pelo fim do apartheid e nas políticas que adotou para unir um país dividido. Nada menos compatível com o culto da personalidade.
As capas de jornais e revistas do mundo inteiro no dia de ontem, honrando em uníssono a memória de um homem que lutou contra o sectarismo, o individualismo e a intolerância, são a prova de que momentos “ubuntu” não apenas são possíveis no cínico mundo em que vivemos, mas são um desejo que milhões de pessoas compartilham.
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