Renato Janine
Ribeiro*
Nenhum inglês rico completava a educação,
nos séculos XVII e XVIII, sem o "Grand Tour", uma longa viagem ao continente
europeu para conhecer cidades e artes. (O mais ilustre dos preceptores desses
moços foi o filósofo Thomas Hobbes, que assim conheceu René Descartes.). Seria
bom, hoje que a Europa está ao alcance da classe média, que nossos jovens a
visitassem para aprender o que é uma realidade socialmente justa. Ao menos no
núcleo duro da Europa Ocidental - França, Alemanha, Benelux, Escandinávia - uma
cultura basicamente socialdemocrata se implantou após a Segunda Guerra e ainda
resiste, formando um modelo de sociedade até hoje insuperado, superior ao nosso
e ao norte-americano.
Levantei no Facebook a questão que considero a
mais relevante para o Brasil: por que países devastados, como a Alemanha de
1945, ou atrasados, como a Espanha de 1975, conseguiram "dar certo" - e nós não?
As respostas racharam. Em geral, quem se situa à "esquerda" protestou contra a
ideia de "dar certo", sustentando que nem os europeus vão bem nem nós, tão mal.
Já quem se diz liberal receitou reformas econômicas, como a desregulamentação da
atividade empresarial (o exemplo mais comum). Entendo que essas são duas formas
de não responder à pergunta mais importante sobre a sociedade brasileira.
Ética e gestão, os dois
pilares
da boa
política
Primeiro, o que é uma sociedade "dar certo"? Entendo:
1) um sistema de saúde eficiente e justo.
Eficiente: que todos sejam atendidos bem, em prazo razoável, pelo menos para a
maioria esmagadora das moléstias. Justo: ninguém receie que uma doença possa
destruir sua renda ou patrimônio; a sociedade, pelo imposto (em especial, o de
renda da pessoa física), cobrirá os gastos de saúde. Imaginem como esse ganho em
termos de saúde melhorará as aposentadorias. Ninguém precisará passar a vida
acumulando para o dia em que pagará 2 mil reais de plano de saúde, mil de
remédios e ainda consultas e cirurgias.
2) uma educação de qualidade, gratuita ou
quase. A importância inédita que a sociedade contemporânea atribui à educação
tem duas grandes metas. Primeira: proporcionar, a todos, condições de concorrer
em certa igualdade, neutralizando o bônus que a riqueza confere a alguns (e o
bônus negativo que a pobreza inflige à maioria). Segunda: deixar que aflorem as
mais variadas competências. Nunca houve sociedade rica e complexa como a atual.
Ela precisa de competências mais variadas do que sociedades que só repetiam o
passado. Hoje há mais espaço para cada um seguir sua vocação. Uma educação boa
realiza vocacionalmente o indivíduo e capacita-o, se mostrar dedicação e
empenho, a se projetar economicamente.
3) um transporte público bom, em grande parte -
pelo menos nas maiores cidades - sobre trilhos. Na Grande Paris, mesmo no
horário de pico dificilmente se gasta mais de uma hora e quinze para ir de uma
ponta dos subúrbios a outra - com ou sem acidentes na rota. O transporte
coletivo deve ser subsidiado, porque traz vantagens para a cidade, preservando-a
da destruição operada por carros e avenidas. O Brasil é perverso: subsidia o
carro privado, com isenção de impostos e construção de vias; por que não o
transporte coletivo, que é mais saudável?
4) uma segurança pública decente, com policiais
que respeitem o cidadão em vez de ameaçá-lo, e sejam dispostos e capacitados a
apurar crimes.
Todos estes pontos associam ética e eficiência,
valores e gestão. Todos tratam do que é mais justo socialmente, e do que é mais
eficaz, virtude esta que geralmente associamos à economia e à administração. A
fusão da ética com a eficiência é o segredo - que aguardamos - da boa
governança.
Poderia falar da cultura, que aprimora
qualidades humanas e capacidades profissionais, e das cadeias, que em vez de
educar para o crime deveriam recuperar os detentos (como nas prisões rurais
autogeridas de Minas Gerais, tema de recente reportagem do Valor), mas
fico no "minimum minimorum". No Brasil, já seria uma revolução.
Esta satisfação das necessidades dá à Europa
uma tranquilidade no convívio cotidiano. Se no Brasil as pessoas furam fila e
passam pelo acostamento, em parte é pela crença de que "não vai haver o
suficiente para todos": precisamos garantir o nosso, antes que a oferta se
esgote. Mas, quando há bastante para todos, isso não é necessário. A vida fica
melhor. O valor disso não tem preço.
Por isso, estranhei tanta gente que se diz de
esquerda fechar os olhos ao desastre social que é nosso atraso nestes pontos. Os
avanços petistas na inclusão social apenas tornam prioritária a construção de
uma sociedade social-democrática (pouco a ver com o que propõe nosso partido de
nome socialdemocrata). As faixas exclusivas de ônibus recentemente abertas em
São Paulo fazem parte dessa mudança, mas que precisa ir além do emergencial -
como as cotas, o elogiado Bolsa Família - e se tornar estrutural.
Estes anos, aumentou o dinheiro para os pobres
consumirem, mas não houve um salto real nas funções distintivas do poder
público. É paradoxal. O partido mais acusado de estatista promoveu um
crescimento que beneficiou os pobres, sem tirar dos ricos. Talvez esteja se
esgotando essa conciliação de classes. Talvez por isso, os conflitos sociais se
tornem ásperos.
Discutirei, na semana que vem, o que a
centro-direita propõe para o país dar
certo.
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* Renato
Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade
de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
E-mail:
rjanine@usp.br
Fonte:
Valor Econômico online, 30/12/2013
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