domingo, 1 de março de 2015

" Mudanças e Consequências "

 Dr J.J.Camargo -
Danos colaterais dos mais imprevistos surgiram nos EUA após reforma na saúde

Foto: Edu Oliveira / Agência RBS
J.J. Camargo: mudanças e consequências Edu Oliveira/Agência RBS

 
As mudanças de comportamento social se processam lenta e, no mais das vezes, imperceptivelmente. E quase sempre as consequências da mudança não são inicialmente dimensionáveis.
Quando começaram as demandas judiciais contra médicos e hospitais nos EUA há cerca de 30 anos, tudo era visto como um adequado exercício da cidadania e, portanto, a vitória de um direito que significava desenvolvimento social.

Para não parecer politicamente correto, ninguém se arriscava em delatar objetivos escusos como, por exemplo, o interesse das seguradoras em criar um ambiente profissional tão adverso e temerário, que nenhum médico se arriscasse a trabalhar sem seguro profissional.
Se alguém denunciasse que jornalistas ligados à imprensa marrom eram pagos pelas seguradoras para manter o denuncismo ativo, era imediatamente acusado de corporativismo, e ninguém se interessava em investigar o quanto havia de verdade, posto que as razões do protesto eram, ao juízo apressado, evidentes.
 
A medicina americana há décadas já era a melhor do mundo, de modo que ninguém poderá, de sã consciência, atribuir a este mecanismo purificador a excelência alcançada.
 
O tempo se encarregou de revelar danos colaterais imprevistos de um processo que aparentemente devia beneficiar a sociedade.
 
A primeira consequência foi o aumento estratosférico do custo do serviço médico, encarecido pela prática da medicina defensiva, em nome da qual são solicitados exames que o bom senso dispensaria se não houvesse a pressão dos advogados que passaram a funcionar como consultores diretos, recomendando aos médicos que seguissem protocolos que os tornassem mais defensáveis em caso de alguma complicação.
 
Por outro lado, como a confiança mútua ruiu, a relação médico-paciente esfriou e, quanto mais intelectualizado é o paciente, mais será tratado como um eventual contestador e merecedor de termos de consentimento informado, que descreve as intercorrências mais inusitadas.
 
Depois de três décadas, os planos de saúde começaram a estimular o turismo médico, porque ficou evidente que era mais barato pagar a viagem do paciente e acompanhante para ser operado em algum centro de excelência no Exterior, fugindo dos preços exorbitantes da medicina americana. Finalmente, os jovens médicos americanos passaram a fugir das especialidades de maior risco, delegando a alta complexidade aos imigrantes, selecionados na origem por inteligência, desembaraço, ambição e brilhantismo.
 
 
A Roberta foi a melhor aluna da turma, e o entusiasmo que irradiava no ambulatório era tão contagiante que ninguém mais se surpreendia se as mães pedissem, nas reconsultas, que só queriam ser atendidas por ela.
 
A entrada daquele pai na emergência do hospital com uma criança pequena enrolada numa manta pareceria normal, não fosse o anúncio: "Se disserem que não tem vaga na UTI, vou direto para o jornal e amanhã vocês vão dar explicações na TV". Quando a Roberta se aproximou para examinar a criança, foi repelida com um empurrão: "Cai fora. Não quero uma estudantezinha cuidando do meu filho".
 
A chegada do segurança acalmou os ânimos, o pai recendendo a álcool foi afastado e pôde ser constatado que não havia necessidade de UTI, o menino estava morto. Há algumas horas. Ter sido chamada pelo diretor, um burocrata abjeto que lhe ordenou que evitasse confusões com pacientes que pudessem denegrir a imagem do hospital, foi a gota d'água.
 
Ao encontrá-la no aeroporto, com passaporte na mão, ela estava cheia de medo pelo desconhecido, mas movida por uma indignação que nos tem faltado: "Não importa o quanto seja difícil lá fora, vou em busca de dignidade profissional. Por aqui, parece que o estoque acabou. E, por favor, não pense que desisti por covardia. Preciso criar meus filhos em um lugar onde o respeito seja espontâneo".
 
Triste admitir que perdemos um grande talento e que partiu cheio de razão. Mau sinal perceber o quanto os medíocres se sentem confortáveis com o país que estamos construindo.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário