sábado, 30 de agosto de 2014

" Ouvir sem pré julgar "

J.J. Camargo: "Médicos devem ouvir sem pré-julgamento o que os pacientes pensam "

 

J.J. Camargo: "Médicos devem ouvir sem pré-julgamento o que os pacientes pensam   " Edu Oliveira/Arte ZH
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
Um grande e permanente ponto de conflito na relação médico-paciente é a distância entre aquilo que o médico faz como rotina e o que é percebido pelo paciente como um momento emocionalmente inesquecível e marcante.
 
 Se considerarmos que a maioria das pessoas tem uma vida muito pobre de emoções, entenderemos por que uma doença qualquer poderá ser arquivada como memorável por quem foi personagem daquela história, mesmo que, aos olhos do médico experiente, tenha parecido uma banalidade.
 
Por isso, no jogo de sedução e conquista que caracteriza essa interface com o paciente, é tão importante que os médicos, sem pré-julgamentos, ouçam o que os pacientes pensam do que está acontecendo e não cometam a tolice de subestimar o sentimento de quem, com graus variados de percepção ou fantasia, está se sentindo ameaçado e vulnerável.
 
Como o rompimento afetivo resultante da desconsideração é irreparável, todo o profissional que tenha interesse em ser reconhecido como "O" médico de algum paciente deve se preparar para o primeiro encontro.
Ou, no mínimo, se questionar se ele está pronto para corresponder à expectativa de quem, com frequência, aguardou aquele momento por semanas ou meses.
Quando a Maria Cândida entrou, não consegui pensar em outra coisa. Tudo nela revelava esmero e capricho, a começar pelo cabelo preso em um coque assimétrico para acomodar um chapeuzinho de pano cinza, lateralizado para a direita.
 
A pequena bolsa de crochê girava nas mãos nervosas quando lhe perguntei no que podia lhe ajudar.
Houve um silêncio, e cheguei a suspeitar que fosse surda quando, então, ela abriu um envelope pardo e dele retirou quase uma dúzia de cartelas. Toda a sua história recente, tudo o que lhe interessava contar, estava ali, cartela após cartela.
 
Há seis anos sofrera um derrame e, por conta disso, um coma prolongado, durante o qual esteve por quatro semanas em ventilação mecânica com uma traqueostomia implantada depois de 12 dias.
 
Como sequela do ocorrido, não conseguia falar, apesar da recuperação neurológica quase completa. Um estreitamento da traqueia impedia que o ar passasse para cima e respirava por uma cânula no pescoço, escondida pelo cachecol. Nos últimos anos, se comunicava por aquelas cartelas, onde escrevia com grande rapidez, favorecida por ser ambidestra.
Tendo chegado a minha vez de explicar o que faríamos, ela foi ficando progressivamente mais animada, e o entusiasmo crescente funcionou como um blush no súbito colorido das bochechas.
 
Sentou-se na borda da cadeira para absorver melhor os comentários otimistas sobre a tomografia e a minha expectativa de que voltasse a falar imediatamente depois que a zona estreitada da traqueia fosse removida e restabelecida a passagem normal do ar para a laringe.
 
Como nem tudo estava previsto, no auge da animação, ela pediu um tempo, apanhou uma cartela em branco e, exultante, improvisou: "Gostei muito das suas mãos!".
 
Ao terminar a consulta, e tendo combinado a internação para a cirurgia a seguir, ela ainda conservava duas cartelas, apertadas contra o peito.
 
Quando quis saber o que continham, ela espiou uma e selecionou a outra e plena de doçura me alcançou uma caligrafia perfeita: "Eu quero me tratar com o senhor".
Como provocação, disse que só aceitaria operá-la se ela mostrasse o que continha a última cartela, que ela já se apressava em devolver ao envelope pardo.
Pressionada, ela entregou, meio encabulada. As legendas eram maiores do que das outras cartelas e o texto revelador dos maus tratos de atendimentos prévios: "Você devia cuidar melhor das pessoas".
Sem dúvida, estávamos diante de uma mulher prevenida.
 
" todos deveriam tratar-se melhor "

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