domingo, 31 de agosto de 2014

" Bernardo Nosso De Cada Dia "

Artigo ZH



FLÁVIO TAVARES
Jornalista e escritor
A cada dia surgem detalhes da imundície que gerou a tragédia do menino Bernardo. Atos ou ameaças diferentes têm, sempre, um elemento constante _ a simulação. Em Três Passos, pai e madrasta simulavam desvelo ou zelo. Quando o castigavam, puniam “por amor”. De resto, “não sabiam de nada” e tudo nascia da tosca rebeldia infantil…
A simulação, porém, não se limita aos crimes aberrantes. Está em muitos lugares e é gritante nestes tempos pré-eleitorais. Continuamos em busca de quem nos diga a verdade, não simule o que não sabe fazer nem invente milagres que não pode realizar. Estamos cansados que simulem honestidade, competência e visão profunda da sociedade. A mentira continuada (de vencedores e vencidos) embaralha o raciocínio e, naturalmente, a emoção passa a nos comandar.
Assim, sob a emoção da tragédia que matou Eduardo Campos, sua substituta como candidato presidencial subiu com estrondo nas intenções de voto. As pesquisas não são confiáveis em si (às vezes, buscam só induzir o eleitor), mas indicam uma tendência que tem a ver, também, com a voz mansa de Marina Silva e sua aparência de que não simula nem mente.
Mas, a queda do avião do candidato morto acabou por revelar um escândalo. Ou fraude: o PSB ocultou a doação (ou empréstimo) do avião, aparentemente feita por um empresário em troca de favores futuros. Agora, indagada sobre a fraude, Marina diz que “nada sabia” do avião em que ela própria fez várias viagens…
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Todos simulam tudo e ninguém assume a propriedade do avião. Aquele “eu não sabia, fui enganado”, que o então presidente Lula da Silva introduziu no pensamento político, frutificou.
Quando estourou a farra do “mensalão” em 2005, Marina era ministro de Lula, unida a ele não só pelo sobrenome comum mas como obediente membro do PT. Ao desobedecê-lo, saiu do governo. Entrou no PV, disputou a presidência e obteve 20% dos votos, oriundos não só dos incondicionais fiéis das igrejas evangélicas-pentecostais (das quais foi “candidata preferencial”) mas, também, dos que confiaram na sua promessa de renovação dos métodos políticos, pondo fim à mentira e à simulação.
Ela encarnaria “a mudança”, com a ética substituindo o subterfúgio. Na entrevista ao Jornal Nacional da TV, porém, ela tergiversou e se disse alheia ao escândalo do avião, como se não houvesse usufruído dele. Respondeu no mesmo tom evasivo de Dilma, candidata do PT-PMDB, e de Aécio, do PSDB, quando indagados sobre algo polêmico.
Agora, ninguém é proprietário do avião. O escândalo dos que aparentavam estar livres de escândalo só apareceu pela tragédia. Simula-se tanto e com tanta proficiência que, talvez, apelem a Santos Dumont. Afinal, ele é o responsável por tudo o que voa e não é pássaro…
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Cometem o crime e ocultam tudo, como se nada ocorresse. E, assim, tomamos a noite como dia sem perceber a escuridão. Foi assim no nauseabundo drama de Bernardo. A diferença é que, em Três Passos, a simulação foi obra de diletantes, de “amadores” perversos que deixaram rastros da perversão. Em contraposição, no simulacro em que transformaram a política atual, a mentira perversa é obra de “profissionais” que vivem da fantasia e da invencionice. Ou diretamente da mentira.
Em ambos casos, a mentira (aquele “eu não sabia de nada”) serve ao mesmo propósito _ obter vantagens para o deleite pessoal. Ou alguém tem dúvidas de que isto é a visão dominante no quadro político-partidário atual?
Dirão que exijo demais e que, no caso de Marina, foi “apenas uma mentirinha” em coisa ínfima, um avião. Mas, tudo nasce pequeno, cresce na multiplicação dos dias e os sintomas viram regra de conduta.
Oxalá a tragédia de Bernardo não vire indesejável pão nosso de cada dia em tudo.

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