terça-feira, 1 de julho de 2014

" Cerimônia Ancestral "

 

Participamos de rituais sagrados, conduzidos pelo líder indígena Kaká Werá. Segundo essa tradição, ao observar o fogo durante a cerimônia, é possível destravar bloqueios e dores emocionais

É domingo de manhã. Durante quatro dias estivemos imersos dentro de nós mesmos, conduzidos pela mão segura e pelas palavras amorosas do guerreiro txukarramãe Kaká Werá Jacupé. Nesse momento, seguro sua mão quente na roda de 40 pessoas e volto a atenção para os olhos penetrantes desse homem de cabelos grisalhos, que conduz a última meditação do dia. É tão forte que quase não dá para sustentar.

Ele pede para fixar o olhar na chama da vela que está no centro da roda, circundada por flores colhidas na mata e cristais, com as quatro direções bem marcadas. Murmuramos novamente o som A, que é o som do coração, segundo a tradição ancestral dos tupis. Com passos ritmados para a direita, ora abrimos ou fechamos os olhos, com a chama sempre presente em nossa consciência. Seja ao olhar para ela, seja ao não olhar, sua imagem continua nítida em nossa mente. O fogo, agora, não é mais apenas um dos quatro elementos, junto com a terra, o ar e a água. O fogo para nós se tornou uma entidade sagrada que se corporifica em chamas à nossa frente e que é emanada pelo Grande Mistério, por aquilo que podemos chamar de Realidade Primordial, Deus, Tao ou qualquer nome que signifique essa consciência toda, abarcante e sempre presente. Vemos o poder do fogo agora com uma reverência não experimentada antes.

Nos sentamos cerca de meia hora depois, quando uma chuva torrencial se abate sobre o salão bem protegido do Espaço Arco-Íris. Nunca vi algo parecido. Só as monções indianas lhe fariam páreo. Era uma tempestade tão forte que não ouvíamos mais nada do que era dito, pelo barulho que a chuva fazia ao bater no telhado. Atento à tudo que acontece, Kaká agora pede para a energia da água fechar nosso trabalho e purificar tudo o que porventura ainda não estivesse limpo. Era como se aquele líquido transparente penetrasse dentro de nós como uma cachoeira e levasse tudo o que não mais queríamos. A água, agora, também se torna uma divindade sagrada, vinda de planos altíssimos, e materializada pela chuva. Esperamos em calma e silêncio a tempestade passar.

Os últimos depoimentos são comoventes. Uma jovem bailarina em tratamento de quimioterapia com a cabeça coberta por um lenço finalmente fala de sua dor e se entrega ao abraço carinhoso das pessoas do grupo mais próximas a ela. Outra mulher conta sobre suas raízes caipiras, de sua alegria em pertencer ao povo simples do interior paulista, de seu amor pelas singelas coisas brasileiras que aprendeu a admirar. Um rapaz muito jovem declara que com aquele trabalho sua vida tinha se aberto a um mundo invisível que ele não pensava existir. Cada fala é um presente para todos. Temos a impressão de que saímos desse trabalho não só mais leves, energizados, purificados e em paz, como também mais ricos em humanidade com as trocas que se estabeleceram. Uma experiência forte, coletiva, tribal.


Inteligência anímica

A imersão com Kaká Werá, organizada pela Unipaz de São Paulo em junho deste ano, foi um processo que começou intenso já nos primeiros dias. Nesse período em que estivemos juntos, pude acompanhá-lo em seus múltiplos aspectos, tanto como xamã e curador quanto como conhecedor profundo da tradição tupi (os guaranis são um dos ramos dessa linhagem que remonta ao início da humanidade). Hoje, o índio Kaká Werá, da linhagem dos índios Txukarramãe, do Xingu, é uma das lideranças espirituais mais respeitadas do mundo. As pessoas que estavam ali esperavam há mais de três anos para fazer esse trabalho. Apesar de ter um tema geral - os quatro elementos e a ancestralidade -, as organizadoras do evento sabiam que é impossivel prever ou definir uma programação exata com ele. Como uma antena parabólica, Kaká percebe os movimentos da natureza ao redor, assim como fica atento para a energia que rola dentro do próprio grupo. Presta atenção em sinais, recorrências, sincronicidades, sonhos, sejam dele ou das pessoas que estão ali, para saber em que direção mover o seu trabalho. Relaxado, mas alerta, não deixa escapar nada, nem um movimento, nem uma frase. Isso porque desenvolveu um tipo de inteligência da qual nunca tinha ouvido falar: a inteligência anímica, um dos grandes presentes das tradições indígenas de todo o planeta para a humanidade. É sobre ela que Kaká vai falar logo nas suas primeiras palestras.

Kaká discorre em primeiro lugar sobre as inteligências múltiplas, o tipo de inteligência que um teste de qi avalia, por exemplo. Depois, fala sobre a emocional, e sobre Daniel Goleman, o primeiro terapeuta e autor a cunhar essa expressão. Em seguida, cita o autor espanhol Francesc Torralba, e o seu conceito sobre inteligência espiritual. Diz como esse campo ficou a cargo das religiões, mas que não são só elas que podem desenvolvê-lo. Lembra como os ashrams da Índia, por exemplo, estimulam esse tipo de habilidade com ferramentas como a meditação, a contemplação, o silêncio, a oração e o trabalho feito com atenção e presença.

Mas a grande surpresa vem no final. Kaká comenta sobre a inteligência anímica, desenvolvida principalmente pelas tradições indígenas de todo o mundo. Ela é sensível à qualidade vibracional e energética da realidade, seja por meio de uma sensação, uma percepção, ou até da visão direta de forças normalmente invisíveis e imperceptíveis. Índios e pessoas do interior, que herdaram parte dessa tradição indígena, sabem muito bem quando vai chover, se um ambiente está carregado ou não e o que fazer para mudar a energia de um local, por exemplo. Observam as nuvens e as leem, examinam as plantas e entendem qual a sua utilidade como medicamentos. São capazes de sentir a energia das árvores, rios e cachoeiras, e entender a natureza como algo que nos segreda infinitos mistérios.

Não deixo de pensar que a inteligência anímica deveria ser protegida como patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco, e como deveríamos preservá-la a todo custo. Ela está em perigoso risco de extinção cultural. Também vejo como essa introdução é necessária para os rituais sagrados que vamos fazer nessa imersão e também para introduzir a rica cosmogonia tupi. É bom que comecemos a nos abrir para as realidades circundantes sob esse prima, se quisermos compreendê-las e vivenciá-las.


Um homem do mundo

Kaká Werá não fala apenas das tradições indígenas. Um dos grandes diferenciais de seu trabalho é o seu conhecimento sobre muitas tradições e culturas do mundo. Sem pretensão, ele sabe como estabelecer pontes e conexões inesperadas entre as linhas espirituais do Oriente e do Ocidente. É um humanista. Em suas andanças pelo planeta, e como membro-fundador da uri (United Religions Iniciative), ele convive com líderes espirituais de vários países. Só com o Dalai Lama, por exemplo, já esteve quatro vezes. Portanto, não soam estranhos a ele vários conceitos do budismo tibetano, sobre os quais fala com fluidez, eventualmente estabelecendo um ou outro paralelo com sua própria tradição. Também percorreu ashrams da Índia, e conhece o pensamento indiano, sobretudo por meio da teosofia. Além disso, Kaká lê muito. Ao traçar os diversos planos da cosmogonia tupi, encontra exemplos em várias religiões. Como provavelmente eu e você, ele vem de uma geração que se apaixonou pelos livros espirituais de todo o mundo, e desse modo aprendeu a ver o que sua própria tradição de origem tem de universal, ou de específico. "As tradições primordiais, as mais antigas, têm muitos pontos em comum entre si", reconhece Kaká. Não são a mesma coisa, nem apresentam o mesmo caminho, mas podem ter olhares semelhantes.

Durante o almoço, Kaká é apenas mais um de nós, buscadores espirituais. Pergunto se ele sempre foi assim, apaixonado por esses assuntos. Ele revela que não. Diz que não foi uma criança e nem um jovem muito espiritual. Sua paixão eram os movimentos estudantis, a política. Talvez ali tivesse sido formado o líder comunitário de hoje, o articulador de grandes projetos e o fundador do Instituto Arapoty, uma ideia antiga sua, voltado para a sustentabilidade e a educação, a preservação da cultura tradicional indígena e também para a comunidade e o campo espiritual.

Após a refeição, Kaká explica como os ritos falam diretamente ao subconsciente, e não ao consciente analítico. Ou como não são voltados para o hemisfério esquerdo do cérebro, mais racional, e sim para o direito, mais criativo e não convencional.

É um alívio para mim escutar essa explicação. É comum eu chegar no meio de um ritual e começar a desconfiar dele. Ou, então, mais simplesmente, me perguntar por que diabos estou ali fazendo aquelas coisas ridículas. Assim, ao compreender que ele atinge uma parte não racional da minha consciência, justamente onde se ancoram traumas ou crenças limitantes, relaxo e aceito de bom grado tudo o que deve vir pela frente.

Após explicar os vários planos da cosmogonia tupi, e como os elementos terra, fogo, água, ar e éter são formas físicas e materiais de entidades sagradas emanadas pelo Grande Espírito ou Realidade Primordial (conceito que coincide com o pensamento chinês e tibetano), ele entra na parte mais prática do ritual. Fala de como nossa ancestralidade, dos nossos pais e mães terrestres aos pais/mães divinos, nos lega vibrações e energias. Afirma que todas as dores e sofrimentos dos nossos antepassados estão registrados em níveis sutis, e que continuam a ter influência em nosso subconciente. Tirar esse peso, portanto, pode ajudar e acelerar demais nosso desenvolvimento espiritual.

Muitas pessoas do grupo começam então a falar do que herdaram: a sensação de penúria dos imigrantes que chegaram aqui no século passado e que precisaram batalhar muito pela vida, gerando a crença de que o dinheiro e a abundância só podem vir com muito esforço e sacrifício. A falta dolorida de pais omissos ou ausentes ou o horror da violência gerado pelo abuso de poder na família emergiam em relatos e histórias divididas com todos. Num papel, pedimos que todas essas crenças e sentimentos fossem cancelados definitivamente, e que se manifestasse o seu oposto: em lugar da penúria, a gratidão pela felicidade, alegria e abundância; em lugar do medo, a coragem, e assim por diante.

À noite, a fogueira espera já armada. Em círculo, invocamos o poder sagrado e purificador do fogo vindo de outras dimensões com músicas em tupi cantadas durante uma dança circular. A cada papel jogado, levantam-se mil fagulhas. Em determinado momento, todos os sinos de vento de cada quarto do lugar começam a tocar alto. Muitas pessoas relatam depois que viram seres da natureza, grandes elementais ou anjos, e formas divinas. Eu simplemente senti que algo muito forte estava acontecendo. Por um momento, pensei estar numa época ancestral, longínqua, em que o contato com o divino era mais explícito e direto. Não queria sair mais dali.


A segunda fogueira

Mais explicações durante o sábado, um passeio em silêncio pela mata e muitas meditações revelam cada vez mais aspectos ocultos de nós mesmos, que não conseguimos tocar no dia a dia. O sagrado mostra-se em lembranças que afloram.

Na última fogueira, depois de um ritual com música e cantos, dançamos, em imaginação, com nossos antepassados. Os convidamos para celebrar com alegria. E como, em última análise, todos somos irmãos e temos uma ancestralidade comum, também pudemos purificar a linhagem de pessoas queridas ou parentes.

Com os olhos fechados, imagino uma grande festa, com personagens de várias épocas. Damas dançando minuetos, guerreiras celtas em cavalos esvoaçantes, sheiks mouros de albornozes brancos. Sorrio. Eles fazem parte da minha famíla ancestral. Nunca imaginei encontrá-los em vida.

Vou evitar falar tudo o que acontece num ritual aqui, e nem sempre as meditações a que me referi aconteceram nessa ordem. É para não estragar a surpresa. Porém, mesmo que contasse tudo, Kaká nunca faria um rito igual ao outro. Aguardo com ansiedade seu próximo trabalho: O Arco e a Flecha, sobre o relacionamento entre homem e mulher. Ah... não perco!


Liane Alves é jornalista e exímia conhecedora de diversas linhagens religiosas e espirituais.

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