Sabe aquele amigo que você convidou para
almoçar em casa e se esqueceu? Chega o dia marcado, ele aparece. O que fazer?
Chama a cozinheira, pede que ela faça qualquer coisa. Mas e se ela reclama que
não foi avisada e o tempo é pouco para preparar a refeição? Seu amigo está ali.
E aí? Oferecer um chá com biscoitos, um cafezinho? Dizer-lhe que venha outro
dia? Durante alguns instantes, pareceu que o almoço marcado com o rabino Henry
Sobel para este "À Mesa com o Valor" havia naufragado.
Um mal-entendido provocara a confusão que
deixaria muito anfitrião de cabelo em pé. Mas Sobel, ficaria evidente ao longo
desta entrevista, não é desse tipo. Sentado em uma das poltronas da sala de seu
apartamento em Higienópolis, em São Paulo, deixou que convidados, assessores,
secretário e cozinheira se entendessem. Limitou-se a informar que seu prato
favorito era macarrão com molho de tomate. Em minutos, internet, telefone e
"delivery" resolveram o almoço, encomendado ao Jardim de Napoli, uma das mais
tradicionais cantinas paulistanas. Só então, observando a movimentação do
secretário particular, João Paulo, da assessora Fernanda Arantes, da fotógrafa
Ana Paula Paiva e de Ju, a cozinheira, que arrumam toalha, guardanapos de linho
rendados, louça e talheres, o rabino comenta: "Vai ser um almoço chique".
A fragilidade imposta pelos 70 anos, que
completou em janeiro, não chegou a descaracterizar a figura conhecida de Sobel.
Algumas mudanças, porém, acabaram sendo inevitáveis.
Os óculos de aro de
tartaruga foram substituídos por uma armação moderna e leve. Os fios do cabelo
longo e liso, assentados pela quipá bordô, estão completamente prateados. A voz
está mais vacilante. Mas, tão logo ligamos o gravador, ele se anima e conta que,
nos últimos meses, prepara sua aposentadoria e o casamento da filha, Alisha.
"Acho que é o momento mais importante de minha vida."
A aposentadoria será vivida em Miami. No
paraíso da terceira idade dos americanos, Sobel pretende ler e ter mais
tranquilidade: "Quero ser um espectador. Aqui, sou um participante. Estou um
pouco cansado". O casamento de Alisha, em novembro, será celebrado na Hebraica
São Paulo com uma festa para mil convidados. "O bom é que é o clube judeu para
todos de todas as alas, ortodoxos, conservadores, liberais.
Teremos um rabino
liberal celebrando o casamento [ele mesmo] e outro que vem dos Estados Unidos,
ortodoxo. Vamos celebrar a união de Alisha e Luiz nesse ambiente de pluralismo
judaico."
Eles [palestinos] merecem os mesmos
benefícios
que os israelenses
temos
Essa divisão entre as correntes do judaísmo
sempre esteve presente na vida de Sobel. O único filho do polonês Lazar e da
belga Bella, nascido em Portugal e criado em Nova York, abandonou a faculdade de
odontologia para ser rabino.
Não quis, porém, seguir os passos ortodoxos do pai,
respeitadíssimo na comunidade pelos seus estudos do "Talmude", livro sagrado do
judaísmo.
Escolheu um seminário teológico liberal, o Hebrew Union College de
Nova York. Mas não escapou completamente da influência familiar. No doutorado, o
calhamaço com 800 páginas de sua tese tratava de um tema tão complexo quanto
profundo e digno do pai erudito: "O não existente na lei talmúdica", em hebraico
"Davar she ló ba lá olam".
Em linguagem mais simples para leigos, seria
uma discussão sobre algo que não existe no presente, mas pode estar aqui no
futuro. "Sempre acreditei que havia opções para escolher. Nunca falei isso, mas
é mais difícil ser um judeu liberal do que ser um ortodoxo.
Existe uma única
Torá e há judeus de todos os tipos. Mas na Torá há uma só religião, não duas.
O
ortodoxo simplesmente segue a Torá. No entanto, o judeu liberal deve escolher o
que vai praticar e o que não vai. Deve decidir por si só o que é
importante."
Sobel tinha 26 anos quando, já formado e
preparado para trabalhar, começou a buscar alguma congregação nos EUA onde
pudesse estabelecer-se. O primeiro convite que surgiu, no entanto, oferecia um
lugar num país que desconhecia. "Eu, um típico norte-americano ignorante em
geografia, nem sequer tinha ideia de onde o Brasil ficava no mapa." A proposta
de trabalho numa comunidade judaica tão sólida quanto a que existia em São Paulo
e o fascínio pelo desconhecido foram irresistíveis. E, em alguns meses, o
rabino-assistente da Congregação Israelita Paulista (CIP), que mal articulava
uma frase em português, desconcertava jovens e velhos em sua nova casa.
Com o trabalho resolvido, Sobel precisava de
uma casa para viver. Logo encontrou. É o apartamento, comprado há 44 anos, de
dois andares no subsolo de um prédio, onde mora até hoje. No primeiro pavimento,
vários ambientes, decorados com bom gosto, mas bastante austeridade, compõem a
sala. Ao fundo, uma porta de vidro de correr separa um pequeno "living" do
jardim. E é ali que será servido o almoço, na mesa de ferro, com tampo de vidro
redondo e quatro lugares.
Sentado em uma das poltronas, Sobel continua
acompanhando a movimentação provocada pelo almoço improvisado. "Gosto quando
vocês tomam conta. Podem fazer o que quiserem." A essa altura, a fotógrafa e a
assessora, com a ajuda de Ju, andam pela cozinha, arrumando travessas e
escolhendo acessórios. Nada demorou muito. A campainha toca e os pratos chegam.
São três porções de linguine ao sugo, um polpettone, pão italiano, queijo ralado
e três fatias de torta de limão para a sobremesa. Fernanda busca as quentinhas e
"voilà!", como diria Sobel no francês que aprendeu com a mãe. O almoço está
pronto e as histórias que Sobel se dispõe a relatar numa conversa de longas
pausas e fala vagarosa seguem nessa tarde um pouco fria e bastante cinzenta.
"Devo comer agora? Ou continuar respondendo?", pergunta ao ocupar seu lugar à
mesa. É comer e contar.
E ele começa pelo telefonema que transformou
por completo sua vida. Haviam se passado cinco anos desde que Sobel chegara a
São Paulo. Era a manhã de 27 de outubro de 1975. Anos de chumbo da ditadura
militar. Na linha, Erich Lechziner, funcionário do serviço funerário da CIP, a
Chevra Kadisha, informava ao rabino, que na ocasião estava no Rio, que militares
tinham entregado um caixão com o corpo de Vladimir Herzog. O jornalista fora
preso e, afirmavam os soldados, se suicidara na cela que ocupara no DOI-Codi, na
rua Tutoia, no Paraíso. Segundo a tradição, Herzog deveria ser enterrado na ala
dos suicidas do cemitério, voltado de costas para os demais túmulos. Segregado,
para sempre, por atentar contra a própria vida. Sobel, que conhecia o filho de
dona Zora e marido de Clarice, não quis acreditar na história contada pelos
militares. Examinado e arrumado o corpo, também como manda a tradição, Kadisha
descreveu que tinha muitas marcas e sinais de tortura.
O rabino afasta os talheres, o prato e relata o
ocorrido naquele momento como se tivesse acontecido poucas horas antes: "Era
evidente que Vladimir, o Vlado como todos o conheciam, não havia cometido
suicídio. Fora assassinado. Como eu poderia permitir que sua família, além do
sofrimento com a perda, passasse pela vergonha de enterrá-lo como suicida?"
Naquela mesma segunda-feira, Vlado foi enterrado na quadra 146 do Cemitério
Israelita do Butantã. Nem perto dos suicidas. Dessa humilhação a família Herzog
foi poupada. Mas carregou até março do ano passado a certidão de óbito de Herzog
que determinava ter sido o "enforcamento por asfixia mecânica" a causa de sua
morte. Para atender ao pedido da Comissão Nacional da Verdade, novo atestado foi
lavrado com a verdadeira: "Lesões e maus-tratos sofridos durante o
interrogatório nas dependências do Segundo Exército DOI-Codi".
A missão do judeu não é tornar o mundo
mais judaico.
É torná-lo mais humano. Judaísmo é um
meio
para um fim
maior.
Assim como qualquer
religião
A decisão do jovem rabino americano fez dele,
no dia seguinte ao enterro, um opositor ao regime. E ele desejava fazer mais.
Foi procurar d. Paulo Evaristo Arns. A Cúria Metropolitana de São Paulo, sob o
comando do arcebispo, era abrigo seguro para presos políticos, cidadãos
perseguidos e caçados pela violência do regime. Desse encontro saiu a ideia de
realizar um ato ecumênico na Catedral da Sé em homenagem à memória de Herzog. Os
celebrantes seriam d. Paulo, o rabino Sobel e o pastor da Igreja Presbiteriana
reverendo James Wright.
Às 15 horas da sexta-feira 31 de outubro,
milhares de pessoas compareceram ao ato. Parentes, amigos, colegas jornalistas
da vida inteira e da TV Cultura, onde Vlado dirigia o departamento de jornalismo
quando foi preso, pessoas comuns se misturavam na catedral e na praça da Sé.
Sobel narra, com detalhes, em seu livro de memórias "Um Homem. Um Rabino"
(Ediouro, 2008), tudo o que se passou naquela tarde: "Quando o ato terminou, a
sensação geral era de que todos havíamos sido cúmplices de alguma coisa muito
importante para o país. Conseguimos fazer um ato ecumênico pacífico que
mobilizou a opinião pública brasileira e marcou uma posição firme: ninguém
aguentava mais. A memória de Vlado Herzog e de tantas outras vítimas da barbárie
dos militares estava honrada. O regime acusou o golpe".
O ato pacífico marcou profundamente a alma de
Sobel. E suas reflexões sobre a paz, a necessidade de buscar uma forma de
conciliação entre os homens passaram a ser os objetivos que o mobilizariam nos
anos seguintes. "Infelizmente não mobilizam a humanidade", admite, ao falar
sobre a última crise que deflagrou nova guerra entre israelenses e palestinos.
Àquela altura, sexta-feira passada, o combate já deixara 300 mortos. No começo
desta semana, passavam de 600, a maioria civis palestinos e mais de 20 soldados
de Israel. "Para que haja paz é preciso recuar. Não existe a paz que desejamos
sem recuo. Nós, os judeus, devemos compreender que os palestinos são filhos de
um único Deus. Eles merecem os mesmos benefícios que os israelenses
temos."
Para o rabino, a origem deste último confronto
está no radicalismo cultivado por Benjamin "Bibi" Netanyahu, chefe do partido
conservador, o Likud, e primeiro-ministro de Israel, e por Mahmoud Abbas,
presidente da Autoridade Nacional Palestina. Numa terra disputada palmo a palmo
há milênios, com Jerusalém encravada no meio, o fanatismo, aponta Sobel, vira
uma tragédia. "Temos que deixar esse radicalismo de lado. A missão do judeu não
é tornar o mundo mais judaico. É torná-lo mais humano. Judaísmo é um meio para
um fim maior. Assim como qualquer religião. O fim maior é fazer este mundo
melhor."
Sobel em casa: “Para
que haja paz é preciso recuar.
Não existe a paz que
desejamos sem recuo”
Embora tenha dito que o espaguete com molho de
tomate era seu prato preferido, o rabino mal toca na comida. A assessora
Fernanda preferiu não almoçar. Fotógrafa e repórter também comem pouco. Já a
torta de limão, encomendada para a sobremesa, faz sucesso. Sobel bebe um pouco
do refrigerante, fixa os olhos azuis no interlocutor e prossegue falando sobre
os obstáculos a uma paz duradoura na região. Lembra-se das conversas que teve
com o papa João Paulo II. "Tive com João Paulo II longas e produtivas
conversas." Sobel foi o único representante brasileiro a participar da comitiva
dos 14 rabinos que elaboraram o texto que permitiu à Santa Sé reconhecer o
Estado de Israel.
Amanda, a mulher de Sobel, está em casa, mas
prefere deixar o marido sozinho na entrevista. Quando se conheceram, nos EUA, o
rabino já morava no Brasil. Ele gosta de contar que a viu, pela primeira vez,
numa piscina. Amanda vestia um biquíni laranja e foi, como se costuma dizer,
amor à primeira vista. Estão casados há 38 anos. Nos últimos meses, ela, entre
outras tarefas, se dedica a escrever os mil convites que serão enviados para o
casamento da filha, Alisha. "Por motivos óbvios estou muito feliz e apreensivo.
Mas Luiz, o noivo, é um ótimo rapaz. É tranquilo", diz Sobel.
A refeição propriamente dita acabou. Sobel
volta para a poltrona e fala do livro que acabou de lançar pela editora Alaúde.
São textos de palestras, artigos e prédicas reunidos sob o título "Sobel - 40
anos de Liderança Espiritual". Também fala entusiasmado do documentário "Henry
Sobel, Luz e Sombras de um Rabino", que será lançado no dia 5, na Congregação
Brasileira. Realizado pela Rede Cultura e dirigido por Helio Goldsztejn, o
documentário mostra a vida do rabino e depoimentos de pessoas que fizeram e
fazem parte da vida dele. Entre elas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
vizinho de prédio e amigo de longuíssima data.
O rabino não costuma tomar café depois do
almoço. Fará uma exceção nessa tarde. Faltam poucas horas para o começo do
"shabat". Na religião judaica, esse é o nome do dia dedicado ao descanso
semanal. Começa no pôr do sol de sexta-feira e termina no anoitecer do sábado.
Durante esse período, os judeus não podem fazer quase nada que signifique
trabalho. Nem mesmo tarefas singelas ou cotidianas como apertar o botão do
elevador no prédio. "Meu pai me perguntou muitas vezes qual era a razão de eu
ser liberal. A ortodoxia dos meus pais era bonita, linda. Morávamos em Nova York
ao lado do rio Hudson, num bairro judaico. Já naquele tempo eu percebi que
queria fazer as coisas como eu achava, não como meu pai achava. E se eu não
quisesse usar um chapéu? Eu via judeus ortodoxos com chapéu irem à sinagoga três
vezes por dia. A ortodoxia era uma imposição", comenta. "Nunca quis isso. Dou
muito valor à autonomia. Por isso virei um rabino liberal. Não apertar o botão
do elevador na sexta ou no sábado não era meu mundo. A vida é muito maior do que
apertar ou não o botão do elevador no 'shabat'", afirma o filho único do
comerciante de diamantes.
Nunca escondeu certa rebeldia. Protestou contra
a Guerra do Vietnã, na década de 60, esteve em Woodstock e sempre gostou de
manifestar suas opiniões e de viver tudo intensamente, sujeito aos ganhos e
perdas.
E, em meio a tanta intensidade, Sobel não
escapou de armadilhas. Em março de 2007, o homem que presidiu o rabinato da
Congregação - a maior autoridade no país em assuntos da religião judaica - foi
preso em flagrante pelo furto de cinco gravatas numa loja da grife Louis
Vuitton, em Palm Beach. Tratar do assunto ainda é constrangedor. Condenado pela
Justiça americana, cumpriu a sentença de trabalhos comunitários e hoje está
quite com a justiça dos homens. Mas ainda paga uma pena consigo mesmo e com
membros da comunidade que o excluiu do cargo quando o furto se tornou público.
"O rabino é humano, portanto falível. Mas confesso que até hoje não sei
exatamente o que me aconteceu. Tenho certeza de que eu estava fora de mim mesmo,
provável que fosse por causa dos remédios para a depressão que eu tomava
naqueles tempos. Pedi perdão e espero ter sido perdoado."
Foram dias cruéis para Sobel. Paparicado pelos
salamaleques de autoridades e poderosos, passou a ser ignorado, evitado e
desconvidado. Sobel está emocionado e, é visível, cansado. De repente, lembra
que nessa sexta-feira, 18 de julho, seu pai completaria mais um aniversário. As
reminiscências o levam para os tempos do menino Henry, em Nova York. "Sinto
muita falta dos meus pais."
E, como eram esses pais, além da religião sobre
a qual tanto se havia falado no almoço? "Meu pai era muito sério. Minha mãe,
não. Era charmosa, alegre. Gostava de cantar, dançar. Você sabe que eu era o
parceiro de dança dela?" A repórter, então, quer saber quais músicas eram as
preferidas. Sobel pensa uns instantes e diz que gostava muito dos salmos. Para
mais um pouquinho, volta a pensar e começa a cantar: "Non... rien de rien.
Non... je ne regrette rien. Ni le bien... qu'on m'a fait. Ni le mal, tout ça
m'est bien égal".
A sensação é de que, naquele instante, é
possível ouvir os acordes da canção imortalizada na voz de Edith Piaf, "Non, Je
ne Regrette Rien". Sobel e a mãe ouviam o disco e cantavam a música todas as
sextas no começo do "shabat". Diferentemente do que diz a letra, o rabino afirma
arrepender-se de muitos atos. "Não só das gravatas. Mas vou tentar só lembrar do
bem que me fizeram. Do bem que eu fiz. O restante será tudo igual."
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Reportagem Por Monica Gugliano | Para o
Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online,
25/07/2014
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