domingo, 20 de julho de 2014

Com frequência reconhemos em nossos filhos aquela característica mais irritante

 

 

 
J.J. Camargo: "Com frequência reconhecemos em nossos filhos aquela característica mais irritante" Edu Oliveira/Arte ZH
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
Os nossos filhos herdam não só o que temos, mas também o que somos. E, às vezes, bem mais do que gostaríamos. Em prol da angústia paterna de vê-los realizados, felizes e melhores, devia-nos ser dada a chance de escolher qual nuance da nossa personalidade, ou traço de caráter, ou virtude, ou até, como prova de tolerância, quem sabe, alguma mania benigna, que pudéssemos passar aos nossos amados rebentos. Mas não, é tudo aleatório, e com frequência deprimente reconhecemos nos nossos filhotes justamente aquela característica mais irritante, que procuramos inutilmente negar a vida toda. Mais massacrante ainda quando a herança genética envolve alguma doença que pode não ter-se materializado em nós, mas eclodiu na nossa cria inocente.
O Janor foi internado na unidade de neurologia clínica com um acidente vascular cerebral isquêmico, um diagnóstico incomum aos 34 anos de idade. A investigação mostrou que era portador de trombofilia, uma doença hereditária que favorece episódios embólicos. O mutismo dos primeiros dias foi interpretado como consequência do problema neurológico que lhe afetara os movimentos do lado direito do corpo e comprometera minimamente a fala. A recuperação foi rápida, e depois de quatro semanas, nas quais participara ativamente da fisioterapia, estava apto para a alta hospitalar quase completamente recuperado.
Quando a decisão foi anunciada, ele se calou de vez, voltou para a cama e, encolhido contra a parede, se negava a comer.
Com a alta hospitalar interrompida, foram muitas conversas até que emergisse a causa daquela depressão. O pai, de quem herdara a doença, também tivera um derrame com os mesmos 34 anos, e quando saíra do hospital, consciente das sequelas que o diminuíam aos olhos da esposa bonita, dera um tiro na cabeça.
Agora o filho, 20 anos depois, se negava a ir para casa, como se tivesse que cumprir o mesmo ritual. Foram semanas de terapia para amordaçar o fantasma que o atormentava e fazer ele entender que a sua doença já era uma sina dolorosa o suficiente, mas que aquele ciclo de dor se exaurira.
Foi fundamental convencê-lo que seus filhos, aparentemente sadios, eram a prova de que ele conquistara a alforria para a felicidade. O abraço demorado em cada funcionário do hospital no dia da alta deixou em todos uma certeza: ele entendera que a força para conviver com as pequenas sequelas era o exemplo de coragem que a vida lhe impunha como herança definitiva aos seus filhos.
Eram dois polaquinhos de olhos azuis, pendurados na janela de um velho Monza, estacionado junto da calçada. O tempo, sempre o tempo, se encarregaria de dizer se o destino, de fato, mudara. Esta incógnita, claro, não constava do relatório de alta.

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