quinta-feira, 31 de julho de 2014

" Amo-te mesmo quando te odeio "

 

 
Tra­ba­lho sozi­nha. Bem, sozi­nha não será rigo­roso: há o Cão. Quem tra­ba­lha sozi­nho, em casa, em iso­la­mento, com ou sem cão/gato, ou marido/namorado/híbrido, ou mulher/namorada/híbrido, ou mesmo mãe/pai, sabe:
 
1. Há dias deses­pe­ran­tes em que pen­sa­mos: Céus!, socorro, sou um daque­les anti-sociais psico-coiso-lailailai que um dia acorda ter­ro­rista bom­bista ou serial kil­ler ou lá o que é. Não se pre­o­cupe, não é. Só pre­cisa de apa­nhar ar. Isto tro­cado em miú­dos quer dizer:
1.1 Con­vém esta­be­le­cer uma rotina diá­ria de con­ví­vio. Oui!, ouviu bem seu indo­mes­ti­cado para­do­xal, a rotina diá­ria de con­ví­vio é a magia que o vai obri­gar a sair de casa. Pode ser um pas­seio a pé, um café de vinte minu­tos com um amigo, ir ao giná­sio, enfim, o que quer que seja que o ponha na rua e em com­pa­nhia, ou pelo menos a ver mundo e gente.
2. Há dias deses­pe­ran­tes: tra­ba­lhar em casa e sozi­nho para mui­tas pes­soas é sinó­nimo de dolce far niente, por­tanto, o tele­fone toca a des­mando, pedem-lhe mil favo­res e interrompem-no por dá cá aquela palha. Fazer o quê? Fácil.
2.1 A melhor pala­vra do mundo é sim. Mas quando se tra­ba­lha, é pre­ciso dizer não. Não. Não. Sim?
3. Há dias deses­pe­ran­tes em que caí­mos do cavalo. Que quer isto dizer? Quando esta­mos imer­sos a tra­ba­lhar, tra­ba­lha­mos, é certo, e o tempo passa, tam­bém é certo, e fica­mos segu­ra­mente can­sa­dos, mas porra, é tão bom que nem se dá por ela. E, de repente, zás!, caí­mos do cavalo, nem trote quanto mais galope, esta­mos esta­te­la­dos no chão e sequer con­se­gui­mos che­gar perto da bicheza. Não é o nosso cava­li­nho, é o Diabo à solta… E agora, e agora?! Tra­du­zido em miú­dos e em pal­vras que fize­ram escola: o drama, a tra­gé­dia, o hor­ror… vamos ver.
3.1 Entre a sua com­pe­tên­cia e o seu objec­tivo deve haver cor­res­pon­dên­cia, equi­lí­brio. Há? Se os per­deu, pode recuperá-los, por exem­plo, atra­vés da inves­ti­ga­ção ou de qual­quer outra estra­té­gia de retoma, inclu­sive des­can­sar. Qual é a sua? A minha são duas: é mudar de tarefa, embrenhar-me nela, e medi­tar. Sim, por­que de vez em quando entro na fase da balda. Baldo-me à medi­ta­ção e estatelo-me no chão. Mas, enfim, lá esqueço o cavalo com­ple­ta­mente e quando dou por mim estou mon­tada nele outra vez– mas enquanto estou na fase do drama, ó drama!
3.1.2 Isto, porém, não seria pos­sí­vel se não esti­vesse infor­mada a res­peito de moi-même e da mecâ­nica deste reló­gio — um nar­ci­sis­mo­zi­nho básico Sabe quais são os seus pon­tos for­tes? Devia. Sabe quais são as suas fra­que­zas? Muito impor­tante con­tar com elas, juro, mas juro, que vão apa­re­cer sem con­vite. Tem objec­ti­vos cla­ros e defi­ni­dos? Quero dizer, tem um ideia clara de quem é, do que faz e, por­tanto, de quem será? Eu tenho muita sorte. Explico. Já pas­sei dos qua­renta, então tenho todo o tempo do mundo para ser quem sou e não per­der tempo a ser outra pes­soa qual­quer, inclu­sive alguém a quem admire tre­men­da­mente. Na ver­dade, seria uma pés­sima outra pes­soa. E por muito que apre­cie o reco­nhe­ci­mento, a vali­da­ção, a apro­va­ção das pes­soas que res­peito, amo e admiro, se tiver de viver sem isso para ser quem penso dever ser, vivo. E se tiver de pas­sar mal tam­bém. Olhe, mal ou bem são cir­cuns­tân­cias, não são a con­di­ção fun­da­men­tal. Depois, tenho ainda a enorme van­ta­gem de saber exac­ta­mente aquilo que quero e acre­di­tar raci­o­nal e irra­ci­o­nal­mente em mim. Jun­tando tudo, dá um bom cock­tail: não sou a mais rápida, mas sou resis­tente, sou receptiva/humilde, isto é, estou dis­po­ní­vel para apren­der e cor­ri­gir e refa­zer.
3.2 Enquanto estou esta­te­lada apro­veito para ser­vi­ços de, vá, con­sul­to­ria. Há para aí uma, pronto, duas, even­tu­al­mente três?, não, é exa­gero, pes­soas em quem con­fio. Peço-lhes feed back do meu tra­ba­lho. Faca­das! Só des­gos­tos e faca­das! Men­tira…
3.2.1 Depois do feed back ajusto. Cor­rijo. Refaço. Ou man­te­nho isto e aquilo com abso­luta con­vic­ção. E rees­ta­be­leço os objec­ti­vos, toda­via faço-os sem­pre mais peque­ni­nos, assim como quem está a con­va­les­cer, ai, ai, e só bebe um caldinho.
4. Há dias deses­pe­ran­tes em que nos sen­ti­mos a última das cri­a­tu­ras. Toda a gente faz melhor do que nós. E o pior é que há ver­dade nisto. Filhos da puta dos gran­des mes­tres mor­tos e vivos! Sim, eles mes­mos, os que nos ins­pi­ram a aspi­rar, são os que bem nos lixam, irra! Eu, atiro-me logo a eles: ai são melho­res do que eu? Pois eu tam­bém posso ser melhor do que eu e vai ser com a vossa ajuda. Às vezes, mui­tas vezes, até me esqueço de tirar os livros espa­lha­dos na cama. Acordo com o estrondo de um a cair no chão.
5. Há dias deses­pe­ran­tes. Tudo cor­reu mal no tra­ba­lho ante­rior, no dia ante­rior, no mês ante­rior. Podia ser pior? Sim, claro, se o tuba­rão do tio Spi­el­berg nos viesse petis­car. O que ape­tece é desis­tir ou fazer férias. NÃO! Se tivesse um patrão podia fal­tar quando entrasse em modo Cali­mero? Vá tra­ba­lhar! Se não ren­der, ao menos ten­tou. O tra­ba­lho tem de ser um ritual, olhe, como a higi­ene diá­ria. Não inte­ressa a dis­po­si­ção, sabe porquê? A dis­po­si­ção é flu­tu­ante e influencia-se. E se não o fizer vai auto-flagelar-se mais tarde. Para quê aumen­tar a quan­ti­dade cha­ti­ces quando as pode redu­zir? Eu tenho um man­tra pes­so­a­lís­simo para quando falho: de tanto errar mais cedo que tarde acerto. E pro­curo uma coisa no you­tube que me faça rir. E lá vou errar ou acertar.
6. Há dias deses­pe­ran­tes para quem escreve um romance. Nes­ses dias não se pode escre­ver um romance. Concentro-me em escre­ver um pará­grafo. Umzi­nho só – nem que tenha de o man­dar para o lixo mil vezes, e tenho a reci­cla­gem cheia de pará­gra­fos. Não faz mal, não me importo de ser para­gra­fista para ser roman­cista. Não há-de ser muito dife­rente para um com­po­si­tor, ou pin­tor. Ou será?
 
7. Há dias deses­pe­ran­tes. Dias em que odi­a­mos aquilo que faze­mos. Mas o impor­tante é que o tra­ba­lho seja como o amado: amo-te mesmo quando te odeio.

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