Luis Fernando Veríssimo*
Depois que o Brasil foi eliminado pela
Argentina na Copa de 1990 (um a zero nas oitavas de final, gol de Caniggia,
passe de Maradona), o Armando Nogueira decretou o fim do talento e da
criatividade do futebol brasileiro e o começo do que chamou de Era Dunga.
Treinada por Sebastião Lazaroni, a Seleção Brasileira que se apresentou na Copa
na Itália tinha cinco no meio-campo, e a principal peça desse quinteto era o
Dunga. O próprio biofísico do jogador era a negação do futebol cujo fim o grande
cronista lamentava. Dunga foi transformado num símbolo do futebol tosco e sem
imaginação que substituíra o talento e do pragmatismo inútil que substituíra a
arte, e, como tal, o culpado pelo fracasso na Itália. A derrota da Seleção
quatro anos antes, no México, com Zico, Sócrates, Falcão etc., tinha sido o
último suspiro do futebol bonito, “tipicamente brasileiro”, que encantava mesmo
quando perdia. A Era Dunga chegava para sepultá-lo em definitivo.
Quatro anos mais tarde, estávamos todos na Califórnia para a Copa americana. A presença do Dunga na Seleção desagradava a quase todos. Durante os quatro anos entre a Copa na Itália e a Copa nos Estados Unidos, sua imagem como símbolo de futebol feio se solidificara, o que não impediu que o Parreira o convocasse. Lembro a frase que entreouvi de um torcedor brasileiro um dia depois do jogo das oitavas de final contra os Estados Unidos: “Esse Dunga não acerta um passe!” No dia anterior, eu tinha visto o Dunga não só acertar a maioria dos seus passes e fazer lançamentos longos com a precisão de um Didi ou de um Gerson, mas dar o passe para Romário fazer o único gol da partida. Entendi então que havia dois Dungas, o Dunga real e o Dunga imaginado. O jogador e o símbolo. O Dunga como ele é e o Dunga como o veem. Dunga e o seu “doppelganger”, uma palavra do folclore alemão que significa um duplo, uma cópia, e que pode ser uma aparição, a projeção de uma personalidade dividida ou apenas uma coincidência – alguém tão igual a outro que poderia ser seu gêmeo, mas, misteriosamente, não é. O “doppelganger” é uma figura reincidente na literatura. Talvez a explicação para os dois Dungas, o execrado e o convocado, o que uns veem e outros não, seja literária.
Não tenho a menor ideia do que a CBF pretende com o convite surpreendente ao Dunga. Tratando-se da CBF, boa coisa não deve ser. Mas, como dunguista, confesso – o Dunga que eu vejo é o capitão vitorioso de 94 e quase vitorioso de 98, se não tivesse dado Zidane contra –, gostei.
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Jornalista. Escritor.
Fonte:
ZH online, 24/07/2014
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