segunda-feira, 9 de junho de 2014

" Da minha janela eu vejo... "

Será que vivemos melhor se da nossa janela temos o privilégio de um amplo horizonte para se olhar?

Gustavo Ranieri/ Fotografia: Alfredo Brant



Los Angeles. Sexto andar do hotel Alta Loma. Quarto número 678. Arturo Bandini esteve ali, deslumbrado ao observar do lado de fora do edifício uma cena jamais vista por ele. "Daquela janela, vi minha primeira palmeira, a menos de dois metros de distância, e naturalmente pensei no Domingo de Ramos, no Egito e em Cleópatra." Diante da árvore e uma encosta verdejante, Bandini tinha o olhar estático, enquanto a amplitude da paisagem exercia uma força sobre ele. De noite, outra sensação: "Além da minha janela, espraiava-se a grande cidade, as lâmpadas das ruas, os tubos de néon vermelhos, azuis e verdes explodindo para a vida como brilhantes flores noturnas".

As duas cenas acima, presentes no clássico Pergunte ao Pó, livro do norte-americano John Fante (1909-1983), foram escolhidas para este texto por um bom motivo: elas expressam poeticamente o que a reportagem se propõe a discutir. O quê? A importância de se ter um horizonte para olhar e como isso faz bem para a nossa vida. Hã? Sim, horizonte: substantivo definido pelo dicionário Houaiss como a "linha circular em que a terra ou o mar parecem unir-se ao céu"; "o campo de visibilidade de uma pessoa"; e, no sentido figurado, "a dimensão do futuro de alguém ou de algo". Afinal, você já pensou que o ser humano vive melhor se da janela de sua residência vê perfeitamente a amplitude da rua ao redor, do bairro, da cidade, do planeta?


Infinito

Os chineses já sabiam há muito tempo que, não importa onde uma pessoa esteja, a vastidão da paisagem tem de estar acessível. Trata-se de uma consciência presente há mais de 4 mil anos e propagada pelos mestres que estruturaram os preceitos do Feng Shui. "Eles [os chineses] têm cinco animais sagrados com posições definidas: a tartaruga atrás; a cobra no meio, que se comunica com todos; o tigre de um lado; o dragão do outro; e na frente sempre a fênix, que precisa do infinito constante para voar muito alto. Para o Feng Shui, se uma pessoa morar em um local com a vista tapada por uma parede, por exemplo, ou pela janela do vizinho, ela nunca vai prosperar como poderia se tivesse uma visão mais infinita", ressalta Ana Lucia Bighetti, consultora e professora de Feng Shui há 17 anos. E isso vale até para a distribuição interna de uma casa, em ambientes como corredores ou fins de escadas. A solução para uma vista melhor é a parede ter o acréscimo de um quadro ou mesmo de um espelho. "Podemos até não entender o que acontece conosco, mas o bem-estar proporcionado pela vista é o resultado da energia que a imensidão do mundo traz", diz Ana Lucia.

Outro campo importante para se pensar é o conhecimento individual influenciado pela paisagem. Afinal de contas, se de nossa ventana observamos alguns prédios à frente, vãos entre eles, árvores, nuvens, céu azul, tudo é aprendizado. É o que conta Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. "Pelo fato de existir, de o mundo não ser monocromático, de haver possibilidades, posso transferir aquilo que enxergo para o campo do conhecimento. Quer dizer, o que sei agora vai ser seguido por outra coisa que saberei depois. E dependendo do horizonte que tenho na minha frente, serei mais ou menos apta a transferir isso para os meus sentimentos, para minha visão de futuro, minhas expectativas", afirma Anna Veronica.

O jornalista Junior Bellé já viveu os dois lados da moeda, ou melhor, do horizonte. Até cinco meses atrás, ele morava no segundo andar de um prédio no centro da cidade de São Paulo. Da janela, ele vislumbrava apenas a ventana do vizinho. Se o céu estava azul ou cinza, tanto fazia. Mal tinha como ver. "É uma sensação de prisão. Tudo era somente concreto e eu me sentia em uma caixa de fósforos", conta. Vivendo agora em um pequeno edifício de três andares no bairro paulistano de Perdizes, a sensação é nova e boa, com direito a quintal com flores, árvores e pássaros. "Tenho um refúgio para os olhos", conclui.


Vivendo e criando

Desde que o mundo é mundo, o horizonte está ali. A escritora Cecília Meireles o clamou no poema O último andar ("De lá se avista o mundo inteiro: tudo parece perto, no ar"), o cinema não para de trazê-lo em belas cenas, muitas vezes com personagens refletindo diante da imensidão do mundo (ótimo exemplo é o filme A Partida, de Yojiro Takita), e até o "rei" Roberto Carlos deixou sua marca cantando "Além do horizonte deve ter/Algum lugar bonito pra viver em paz". Sim, horizonte está aí para quem tem.

O escritor Ricardo Lísias, autor de O Céu dos Suicidas (Editora Alfaguara/Objetiva), aproveita bem a vista que o cerca. De seu apartamento, no oitavo andar de um prédio no bairro paulistano da Saúde, ele vê centenas de casas e, mais longe, a torre do aeroporto de Congonhas. Enquanto trabalha, com a janela aberta, seu olhar constantemente passeia lá fora. "De maneira abstrata, transporto isso para o texto, quando as personagens buscam a possibilidade da reflexão".

Mas é ao horizonte também que ele recorre quando precisa esfriar a cabeça. "É uma coisa tranquilizadora. E de noite é bem bonito, com as casas acesas, fazendo contraste com as luzes de algum avião", completa.
Mas nem para todo mundo a amplitude da paisagem parece ser importante.

O também escritor Sidney Rocha, autor de Matriuska e O Destino das Metáforas (Editora Iluminuras), dispensa qualquer "poder" que possa ter o horizonte disponível do seu apartamento, no sexto andar de um edifício no bairro das Graças, no Recife. Ele confessa que a vista privilegiada pouco ou nada interfere em sua criação, uma vez que a principal ferramenta de um escritor, em sua opinião, é imaginação e memória. "Não se precisa de qualquer outra imagem do mundo. Até porque o realismo pouco me interessa para escrever."

Rocha lembra que certa vez, ao entrevistar o escritor Ray Bradbury (1920-2012), descobriu que este, nos anos 50, alugava a hora da máquina de escrever - em processo semelhante das atuais lan houses - e precisava produzir seus textos olhando para uma parede branca. O resultado? Clássicos absolutos como As Crônicas Marcianas e Fahrenheit 451. "Engraçado que, mesmo no dia a dia, a minha contemplação do horizonte é um tanto rotineira. Consigo ter uma atitude reflexiva não necessariamente por conta da paisagem. Para mim, essa reflexão é uma meditação que faz com que eu consiga me abstrair inclusive da própria paisagem", diz.

O exemplo de Rocha vai ao encontro da opinião de Anna Veronica Mautner. Embora ela concorde com certos benefícios de se ter um horizonte para imaginar, ela discorda de qualquer afirmação que limite a essa condição a única possível de o ser humano viver plenamente e apto a imaginar o que o cerca. "Você vai dizer que dentro de um convento ninguém se desenvolve? É claro que, se moro em um lugar em que tenho um horizonte longínquo, tenho uma visão em que existe diversidade. Mas não vou dizer que alguém que viva à beira-mar e que só tenha como vista a linha da praia não pode se desenvolver."

Enfim, nos dias nublados ou nas tardes ensolaradas, diante de um aglomerado de prédios ou de belas montanhas, o horizonte, para nossa sorte, continuará sempre ali.


Gustavo Ranieri é especializado em jornalismo cultural

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