sábado, 21 de junho de 2014

" A Copa que ignoramos "

                J.J. Camargo

O cientista Miguel Nicolelis, modesto como todos os que valem a pena, comemorou nas redes sociais o chute dado por um paciente paraplégico graças a sua espetacular descoberta

                                               por J.J. Camargo
J.J. Camargo: A Copa que ignoramos Edu Oliveira/Arte ZH
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
O valor de um país aos olhos do mundo não se estima somente por suas riquezas naturais, pela beleza de sua geografia ou afabilidade de seu povo. Antes, se mede pela contribuição que ele trouxe ao mundo para melhorar as condições de vida de outros povos.
om a intenção de reverenciar esses heróis, foi criado o Prêmio Nobel que, desde 1901, condecora os melhores nas áreas de Química, Física, Medicina, Paz e Literatura e, a partir de 1969, também os de Economia. Como era de se esperar, os países subdesenvolvidos são os que contribuem menos. Essa divisória parece respeitar a linha do Equador, abaixo da qual quase nada acontece do ponto de vista cultural e tecnológico.
Desde o início, foram concedidos aproximadamente 490 Prêmios Nobel e apenas 15 (3%) destinados à América do Sul. Dentro do continente, perdemos de goleada para a Argentina (5x0) e, se avançarmos para a América Central, descobriremos que também estamos atrás da simpática Guatemala (2x0).
Sempre haverá quem considere isso insignificante, mas essas opiniões obtusas invariavelmente se apoiam no desapreço pela educação, base estimuladora do desenvolvimento tecnológico através da libertação para voos ilimitados dos cérebros privilegiados. Sem esse tipo de impulso, nunca passaremos de esmerados copiadores do possível.
De vez em quando, quase por geração espontânea e contra todas as resistências da inércia oligofrênica, surge uma mente brilhante e rebelde disposta a lutar pelo novo com a bravura de quem acredita que as mazelas de um país pobre não podem ser limitantes do tamanho dos seus sonhos.
A esse tipo de genialidade, costumamos olhar com a desconfiança dos medíocres, sempre alimentada pela pachorra que recomenda considerar temerária qualquer iniciativa que envolva comprometimento com mudança.
Tal comportamento tacanho explica por que esses arautos do progresso são invariavelmente festejados em países avançados antes de serem reconhecidos no quintal tupiniquim. Atuando como neurocientista, Miguel Nicolelis, um gênio orgulhoso de se apresentar como brasileiro, começou a pesquisar formas de restabelecer o controle motor e a sensibilidade tátil em pacientes com lesões medulares ou neurológicas.
Ao longo de mais de 10 anos de pesquisa junto com vários outros especialistas, o grupo de Nicolelis conseguiu criar um mecanismo sofisticado que permite que uma pessoa emita sinais elétricos cerebrais que acionem um artefato robótico. Essa chamada interface cérebro/máquina foi a primeira etapa para o desenvolvimento do exoesqueleto, um projeto que tem merecido aplausos no mundo civilizado. Alguém, inteligentemente, percebeu que a abertura da Copa do Mundo, com bilhões de olhos voltados para cá, seria uma oportunidade ímpar de mostrar que temos mais do que caipirinha, futebol e Carnaval.
Na última hora, o que poderia ter sido o pontapé inicial histórico da Copa, foi transferido para um tapete acanhado na lateral do campo, com o pretexto nanico de não atrasar a cerimônia. A Band dedicou apenas alguns segundos. A Globo preferiu mostrar a chegada do ônibus da Seleção que, como se sabe, é um momento marcante de qualquer partida de futebol, não só pela expectativa de um fato jornalístico inusitado como pela imprevisibilidade das declarações dos entrevistados.
Mesmo assim, o cientista Miguel Nicolelis, modesto como todos os que valem a pena, comemorou nas redes sociais o chute dado por um paciente paraplégico graças a sua espetacular descoberta. No fundo, ele sabe que esta desconsideração momentânea não diminuirá a alegria de ver, no futuro muito próximo, milhares de jovens, antes condenados à escravidão degradante de uma cadeira de rodas, caminhar por conta própria e chutar as bolas que lhes aprouver. Todas as bolas.
E então aquela Copa será dele e das pessoas agradecidas. Tantas que não caberão na maior das nossas arenas.

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