quinta-feira, 10 de outubro de 2013

"" Maníaco por calçada "" << Mário Corso >>


Poucas coisas me desacomodam tanto como as pessoas que caminham pelo meio da rua, evitando as calçadas, quando estas lhes oferecem sem custo um andar mais seguro. Não se sentem à vontade nelas, provavelmente pensam que invadem algo. Não pegam o conceito do que seja uma calçada. Concebem apenas o espaço privado e o público, dentro e fora, sem margens intermediárias.

Esses caminhantes fora de lugar me deixam inquieto porque as calçadas são minha parte preferida nas cidades. Andar por elas sem compromisso, traçando meu próprio labirinto, é meu ideal de passatempo. Ir a esmo por Porto Alegre é como perder-se dentro de casa, surpreender-se com a extensão de um velho corredor, descobrir um ângulo inusitado no ambiente ora saturado de certezas. É ocasião para enxergar o que os olhos cansados já deixaram de ver. Vagueio tanto pelo gosto como por tentar decifrar um novo lugar. Até aqui muitos me acompanham, não há nada de especial nesse hábito prosaico. A questão é que nessas andanças faço das calçadas meu termômetro particular para medir a civilidade de cada local.

Cada um tem sua forma peculiar, por vezes torta e reducionista como essa minha, de julgar o mundo. A conservação das calçadas e o respeito ao pedestre me dizem muito. Sou um maníaco por calçada assumido. Atribuo quixotescamente notas de moral cívica imaginárias a quem não pediu. Para minha sorte, e integridade física, guardo no íntimo esse espírito de fiscal voluntário da prefeitura.
                                           Acessibilidade

É nesse espaço exíguo que o público e o privado se encontram, é a beira do mar dessas contingências. Um buraco na rua é problema da prefeitura, um buraco na calçada é problema nosso. A calçada é, e não é, nossa. Somos os responsáveis, porém não os donos. Calçada mal conservada, suja, obstruída, privatizada, ou a ausência dela, dá a nota da cidadania de cada local. Porque nesse caso não se trata de invocar o Estado faltante, nossa desculpa mais corriqueira, quem falha aqui é o cidadão.

Como sou matutino, me comovo vendo o esforço de muitos para lavar ou varrer o seu pedaço de mundo compartilhado. Arrumam com carinho a passarela de todos. Há uma generosidade nesse gesto que lubrifica a possibilidade de vivermos juntos. A calçada é o que nos protege do nervosismo da rua, quanto melhor, quanto maior, mais é ferrolho, mais vamos tranquilos. A frente das casas pode emprestar aos passantes um gesto de aconchego. É uma espécie de sala de estar pública, onde os desconhecidos, os passantes fortuitos, receberiam a hospitalidade dos locais.

Um dos dramas contemporâneos é a perda gradativa dos espaços públicos de convivência. Creio que o caminhante que evita a calçada encarna meu pesadelo de perder esse espaço que me é tão caro. Ele seria o grau zero da conquista civilizatória magna (na minha bizarra filosofia) que é essa estreita faixa de sociabilidade pedestre. O privado e o público têm nele um encontro seco, um choque abrupto, sem embreagem. É meu medo de ficarmos reduzidos aos espaços pragmáticos, de perder a gratuidade dos encontros casuais, o prazer de se sentir seguro e à vontade longe de casa. Cidades Sustentáveis e calçadas acessíveis

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