sexta-feira, 11 de outubro de 2013

" A Inveja Criadora " << Rodrigo Petrônio * >>


 
Ser contemporâneo consiste basicamente em três atitudes. Ter olhos para perceber a beleza das estrelas extintas do passado.
Ter olhos para a escuridão futura das luzes do presente que nos cercam e, às vezes, parecem ilusoriamente predestinadas a durar.
 E ter olhos para a potência de luz adormecida
no âmago da escuridão presente.
 
 
O conceito de imitação é um dos mais poderosos instrumentos da criação artística desde a Antiguidade. Diferentemente do que se imagina, desde Aristóteles a mimese não se refere apenas a uma imitação da realidade. Ela engloba algo que é decisivo para compreendermos toda a arte da humanidade: a imitação de modelos. A acepção corrente de mimese como imitação da realidade acabou ocultando esse seu potente aspecto. Minimizou a força da imitação, entendida também como imitação de autores dignos de ser imitados. E, por isso mesmo, autores-modelos.

Mas a imitação não existe sozinha. É preciso que esteja sempre articulada ao seu par natural: a emulação. Imitar servilmente obras e artistas é uma ocupação de ociosos e nefelibatas.
 Os mestres do passado foram grandes por conseguir incorporar obras alheias, iluminando justamente os pontos que os autores-modelos não tinham conseguido enxergar.
                Uma obra gera outra. Ao infinito.

As mudanças são pequenas. Mas o efeito é monumental. Em outras palavras, a emulação é uma rivalização produtiva. Uma imitação ativa. Imitação e emulação, "imitatio" e "aemulatio" foram a essência de todos os sistemas de representação desde a Antiguidade até o século XVII. Temas, motivos, técnicas, cenas, figuras, imagens, conceitos, personagens, versos, passagens, mitos, fábulas. Tudo devidamente surrupiado nos jardins alheios. Mas é preciso imitar esses lugares-comuns com o intuito de superar quem os produziu. Apenas a emulação potencializa a mimese. Confere autoria a essa cadeia imitativa sem começo nem fim.

A obra-prima não existe. Ela é apenas a obra primeira.
Ponto de partida ideal de todos os criadores. Modelo dos modelos. Original perdido para sempre. Inacessível. Parodiando Jorge Luis Borges, todo escritor seria um copista anônimo de Deus. Deus, o único autor. Se ele é o Autor, ninguém mais o é. Se Deus não existe, todo autor é um Ninguém. Todo artista é um Ulisses disfarçado de Ninguém para escapar dos Ciclopes que os cercam.

Na modernidade esse sentido de mimese, baseada em uma imitação-emulação de modelos, transforma-se radicalmente. Deixa de ser a imitação de obras-modelos. Torna-se uma pesquisa cujo objetivo é ressaltar aspectos inesperados de realidades empiricamente dadas. O artista abandona o posto de reles imitador e passa a ser aquele que descobre relações inusitadas no mundo.

A arte é exonerada da atividade imitativa. Assume a lógica da descoberta científica. Torna-se a reveladora heurística de novas combinações e ordens de realidades. É o declínio do artesão e de sua velha maquinaria mimética movida a manivelas. É a ascensão do gênio original. Um expert em satisfazer os investimentos libidinais do público consumidor. Um xamã da economia simbólica do desejo. Um papa das commodities da beleza. Um sacerdote que ritualiza aos olhos do mundo a autoconstrução da sua imagem. Especular e espetacularmente.

O impacto dessa translação é enorme. E nos deixa uma dúvida: o que foi feito da velha tradição de imitação-emulação de modelos? Em "Por uma Poética da Emulação", nova obra de João Cezar de Castro Rocha, um dos maiores teóricos e críticos brasileiros em atividade, temos uma reconstrução do princípio imitativo-emulativo a partir de ninguém mais ninguém menos do que Machado de Assis. Muito? Pois há mais. Castro Rocha parte do Bruxo do Cosme Velho para sugerir uma nova teoria geral da abordagem literária. E o faz resgatando justamente o binômio imitação-emulação dos antigos sistemas de artes e revendo sua pertinência justamente a partir do século XIX, ou seja, a partir do seu declínio.

Como se sabe, a passagem do primeiro Machado para o Machado maduro sempre foi e continua sendo um enigma. O que teria feito o medíocre autor de "Helena" se transformar em um monstro da literatura universal? Como um jovem adulador provinciano veio a se tornar um dos maiores escritores de todos os tempos? O que teria ocorrido em 1881 para que o romancista tirasse do prelo "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e não mais os suspiros açucarados de "Iaiá Garcia"? Rios de tinta correram para explicar essa característica "twice born" (nascido de novo) do escritor carioca.

Na atividade de Machado como crítico de literatura e teatro, um artigo se destaca especialmente: a sua invectiva ferina contra "O Primo Basílio", de Eça de Queiroz. E se destaca por dois motivos. Primeiro: o tom ácido, distinto das sempre ponderadas análises de Machadinho. Segundo: a precariedade argumentativa. Em resumo, trata-se de um dos artigos mais ácidos e, ao mesmo tempo, um dos piores ensaios críticos assinados pelo escritor. Contém marcas psicológicas claras de ressentimento. E a defesa de um conservadorismo artístico indigno do futuro criador de "Dom Casmurro".

Qual a tese fascinante de Castro Rocha? A querela Machado-Eça traz em si os elementos centrais da conversão machadiana em um gênio da literatura. Por quê? Como Dante se vira em uma selva escura, Machado se depara, no meio do caminho de sua vida, com o espírito libérrimo do jovem Eça produzindo tudo o que ele, Machado, nem sequer sonhara realizar, senão de modo canhestro. Em um sentido bem pouco idealista, seu gênio não teria nascido de uma inspiração divina. Surgira da pura força da inveja e seu correlato técnico: as entranhas da emulação mimética.

Mas como superar Eça pelas vias do realismo? Eça talvez tenha sido o único em língua portuguesa que conseguiu imitar e emular "Madame Bovary", o grande romance realista de traição. O colapso produzido por Eça em Machado gera uma reinvenção do sentido mesmo da literatura. Paradoxalmente, o efeito-Eça leva Machado a reativar o velho recurso retórico da imitação-emulação de modelos. Mas com um deslocamento que muda tudo. Machado deixa de imitar modelos próximos, em termos temporais e espaciais. Passa a imitar-emular todo o acervo transistórico da literatura universal.

O leitor cuidadoso deve intuir a que estou me referindo. O defunto-autor Brás Cubas não é apenas uma imitação de Luciano de Samosata (século 2º d.C.), autor da sátira menipeia, criada por Menipo de Gadara (século 3º a.C.) e desenvolvida ao longo de séculos por gregos e latinos. Ele é um recurso metaficcional poderoso do qual Machado se vale para imitar-emular a "Bíblia", Sterne, Shakespeare, De Maistre, La Rochefoucauld, Pascal, La Bruyère, Epicuro, Swift, Fielding, Dante, Lucano, Vauvenargues.

Uma lista imensa de referências transistóricas desfila sob nossos olhos, organizada pela alucinação omnicompreensiva do narrador morto. Ou seja: da eternidade. Esse movimento de leituras e releituras imitativas-emulativas de clássicos passa a marcar toda produção ulterior de Machado, passando por "Dom Casmurro", "Quincas Borba" e pela extraordinária revisão de técnicas narrativas de "Memorial de Aires" e de "Esaú e Jacó".

Aliada a essa análise, o estudo de Castro Rocha lança uma hipótese ainda mais ousada. A poética da emulação teria como desdobramento natural algo que a maior parte dos artistas modernos e quase toda a crítica de arte exorciza como se exorciza o demônio: o anacronismo deliberado. Ao reativar o velho sistema imitativo-emulativo da Antiguidade, Machado teria esvaziado o mito moderno da originalidade. Mas o esvaziou de modo extremamente paradoxal: lançando luzes sobre a originalidade da cópia, sobre a transgressão da tradição, sobre a exceção da regra. Em outras palavras: transformando a imitação-emulação em um dos alicerces de obras rigorosamente modernas.
A partir desse golpe de mestre, ao emular Eça, Machado consegue realizar o seu necessário parricídio simbólico. Ato contínuo, desloca o eixo valorativo da arte. Começa a minimizar o princípio da imitação-realidade sobre o qual se fundamentava grande parte da literatura e da arte, desde o século XVII, sobretudo o realismo. Reata o elo perdido com as doutrinas da imitação-modelo.

Esse deslocamento de Machado é poderoso. Não relativiza apenas as técnicas e sentidos da literatura de seu tempo. Abre novas reconfigurações de sentidos artísticos, anteriores e ulteriores. Igualmente poderoso é o deslocamento hermenêutico de Castro Rocha. Ao superar o conceito de autoria pelo de autor-matriz, oferece-nos uma relativização do pressuposto mesmo de categorias centrais da produção simbólica moderna, tais como autoria, cópia, original.

Mais do que um estudo de caso, o triângulo imitação-emulação-anacronismo é uma revisão radical de algumas pedras de toque da atividade crítica. Além disso, oferece-nos uma das mais finas lentes de leitura dos impasses da modernidade, sugerindo-nos caminhos para uma compreensão extremamente satisfatória da dinâmica entre arte contemporânea, tradição e pós-modernidade.

Como diria Giorgio Agamben, as estrelas extintas ainda brilham. Por isso, ser contemporâneo não é ser atual. Ser contemporâneo consiste basicamente em três atitudes. Ter olhos para perceber a beleza das estrelas extintas do passado. Ter olhos para a escuridão futura das luzes do presente que nos cercam e, às vezes, parecem ilusoriamente predestinadas a durar. E ter olhos para a potência de luz adormecida no âmago da escuridão presente.

Ao me tornar contemporâneo de toda a tradição humana, não me esquivo da miséria que as sínteses concretas da história depositam todos os dias sobre meus ombros reais que suportam o mundo. Ao contrário, ao me tornar anacrônico em relação ao meu tempo, liberto-me da circularidade tautológica dos critérios artísticos que cada época cria para si mesma, como se fossem absolutos.

Agir e pensar assim é agir e pensar dialeticamente, na acepção mais profunda e radical dessa atividade. Nesses termos, o jovem Machado se transformou no Machado que amamos. E é nesse sentido que o Machado anacrônico, o Machado mimético, o Machado original e o Machado eterno são rigorosamente o mesmo autor. Irrepetível.
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* Rodrigo Petronio é escritor, professor da Casa do Saber e do curso de cinema da Faap. Desenvolve doutorado na interface entre literatura e filosofia. Autor dos livros "Venho de um País Selvagem" (Topbooks), "Pedra de Luz" (A Girafa), entre outros.
FONTE: Valor Econômico on line

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