Montserrat Martins*
“O Brasil é um ótimo lugar para se fazer um país”,
frase do Luís Fernando Veríssimo, segue sendo nossa melhor definição.
“País continente” também é uma expressão verdadeira: somos vários povos diferentes que dividem entre si um grande espaço, como aqueles vizinhos com algum grau de parentesco, que vivem em várias casas num mesmo pátio.
Basta passar um tempo no Rio Grande do Sul, outro em Minas Gerais e outro na Bahia para você perceber que esteve em três países.
Uma vez escrevi sobre a hospitalidade mineira, aquele jeito atencioso que eles tem de conversar, uma característica marcante, notável, que chama a atenção de qualquer visitante. Pensando agora em como definir a “alma” baiana, a expressão que me veio à mente foi “alegria compulsória”. Salvador é muita música alta nas ruas e nas casas, ambientes de agitação sonora, expansivos, que tiram qualquer um da introspecção. O oposto da solidão campeira sulista, do silêncio que permite ouvir o vento minuano, da terra de O Tempo e o Vento (não perca o filme, por sinal).
A Bahia é mais Brasil que o sul, em vários sentidos. Uma curiosidade simbólica é que o mapa baiano é quase idêntico ao brasileiro, como se fosse sua miniatura, pulsando no coração do país, do lado esquerdo do peito do mapa quando ele nos olha de frente. Todos os sociólogos que decifraram o Brasil concordam num ponto essencial: as marcas da colonização seguem incrustadas profundamente na nossa alma, nos levando a nos negarmos, nos contradizermos como um povo onde “santo de casa não faz milagre” e tudo que vem de fora parece mais bonito. Ao mesmo tempo, temos uma alegria que falta aos “civilizados” europeus, seja por nossa natureza selvagem e mestiça, seja pela sensação de estarmos recém nos libertando da escravidão, ao menos a liberdade de ir e vir, já que carregamos ainda dentro de nós a mentalidade do dominado, daquele que obedece aos seus coronéis.
No Brasil ainda há “donos de capitanias hereditárias”; em contraste, o Rio Grande do Sul tem alma oposicionista, é onde os governadores sequer se reelegem. O senso crítico sulista, mistura de muita informação com aquele gosto pela briga confessado pelo Capitão Rodrigo, esteve presente nas mobilizações que sacudiram o país em junho, onde cartazes estimulavam a lutar contra as tarifas “como em Porto Alegre”. Amigos baianos me contaram das manifestações lá, pois mesmo um povo alegre, irreverente e festivo, pode despertar para os protestos, para a rebeldia.
Os clichês contra baianos são contra nós mesmos, contra a alma nacional, pois nada é mais brasileiro que a boa fé, a esperança, o misticismo, a espontaneidade instintiva, a extroversão e a alegria da boa terra. Lembro de um amigo gaúcho perguntando para a visitante baiana se “tu canta?”, quer dizer, os clichês estão na nossa mente e são mesmo irresistíveis. Também incluem o “complexo de vira-lata” que Nelson Rodrigues identificou na alma nacional, que tem um lado de auto-desvalia e outro de auto-complacência. Pois como ele também disse, “o Brasil é o único país do mundo onde bicheiro joga, traficante cheira e prostituta goza”.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, do Caetano, é nossa identidade colonizada, com alguns traços de rebeldia. Lembrei de tudo isso no leilão de Libra. Nossa estatal, Petrobras, até então propagandeada como competente, poderosa, na hora do “filé” ficou só com uma parte. Dizem os Senhores que isso era inevitável, que não tínhamos mesmo a capacidade dos de fora. A mídia e o governo federal estão de acordo, não era para o nosso bico. Mas vi baianos desconfiados, dessa vez.
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Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
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