quinta-feira, 11 de julho de 2013

" Saudade dos aviõezinhos da FAB ( e da Filosofia )


EUGÊNIO BUCCI *
"A maior das maravilhas foi voando sobre
o mundo nas asas da Pan Air".
Milton Nascimento e Fernando Brant em 'Conversando no Bar'
Autoridades flagradas em viagens dionisíacas nas asas de aeronaves oficiais demoraram a dar a resposta devida: devolver o dinheiro e esclarecer de uma vez por todas as reais "condições de voo". Um tinha ido a um casório praieiro e, de início, alegou tratar-se de compromisso oficial. Outro desviou a rota para desembarcar num certame futebolístico. Há também aquele do cachorrinho voador, com as aerobabás cruzando os ares de helicóptero, supostamente a bem do serviço público. Todos foram cobrados de forma vexatória pela opinião pública. Perceberam num supetão que, no Brasil pós-passeatas de junho, já não se decola assim tão fácil à custa do erário. Levaram "um susto imenso nas asas da Pan Air", quer dizer, da FAB. Agora devem sentir saudades precoces (e doídas) da FAB.

O sonho alado acabou. No mínimo, aterrissou. Depois das pedestres e raivosas manifestações, as altas patentes aeronáuticas anunciaram que agora os voos oficiais serão, finalmente, públicos: os cidadãos terão o direito de saber quem vai na janelinha, quem vai no corredor, a que horas, com qual destino. Vai-se desmanchando no ar, isto é, no céu de brigadeiro, a esquadrilha da alegria. Vão-se embora os privilégios dispendiosos mal disfarçados de nebulosas "prerrogativas do cargo", "transporte de representação" ou "interesse público".

A partir de agora, o patrimonialismo a jato terá de se contentar com menos. Aviões com o Brasão da República não mais servirão assim tão fácil de copa e cozinha voadoras para políticos. O tempo fechou. O aeroporto está sem teto para quem gosta de comer sanduíche servido por oficiais da Força Aérea a 10 mil metros de altitude. Quanta tristeza. Quantas lembranças ficam para trás. Quanta gente vai cantar "a primeira Coca-Cola foi, me lembro bem agora, nas asas da Pan Air", ou, melhor, da FAB.

Há, sem dúvida, um toque de nostalgia na canção que agora se encerra. Os privilegiados de hoje se lembrarão desse tempo dourado amanhã, em volta de uma mesa de bar, como na música dos mineiros: "Em volta dessa mesa velhos e moços lembrando o que já foi".

Mas há também uma piada de mau gosto. Uma piada desaforada. Há gente dizendo que a impaciência popular diante do esbanjamento de tanto luxo com dinheiro público é sintoma de moralismo de classe média. Essa é boa. Seria apenas uma piada, não fosse ela mesma um escárnio. Francamente: bem sabemos que o moralismo, qualquer moralismo, é um tipo de paixão baixa verdadeiramente insuportável, mas, convenhamos, é mil vezes menos insalubre conviver com uma pequena dose de moralismo de classe média do que aturar o cinismo de mandatários e burocratas que se refestelam a 900 quilômetros por hora no que não é deles, seja em nome de prazeres menores, seja em nome de uma causa grandiosa qualquer, como a revolução disso e a revolução daquilo. O cinismo dessa gente é um moralismo de sinal trocado - e muito pior.

E aqui chegamos ao que no título deste artigo apareceu entre parênteses: a saudade da filosofia. Desde que se viu autorizada a deixar de tentar entender o mundo para simplesmente transformá-lo, uma tristonha vertente da Filosofia (se é que me é permitido o F maiúsculo), que não compreendeu direito o que significam os verbos entender e transformar, achou que poderia mercadejar com as ideias e com as massas para cumprir à força um fatalismo que, de resto, nem mesmo fatal chegou a ser. A resultante é notória. Passado um século e meio da conturbada Comuna de Paris, a antifilosofia degenerou - e depois degenerou ainda mais - até que conseguiu consumar seu feito: aquilo que era um vício desviante nos partidos da ordem se converteu na mola estruturante de muito partido de esquerda por aí (e por aqui).

A corrupção, para usarmos a palavra hedionda, parece ter deixado de ser uma exceção passível de pena para alcançar o posto de regra, de norma, de normalidade, tanto na mentalidade quanto nos atos dos agentes políticos. Com isso os partidos (se não todos, muitos deles, os maiores deles) passaram a se especializar no manejo de interesses indevidos, nunca declarados, atuando como despachantes de estratégias que aviltam não a moral, não o moralismo, mas a simples dignidade humana. A representação política lícita deixou de ser o núcleo da atividade partidária para se converter numa vestimenta mal costurada, uma fantasia que só existe para ocultar um organismo de alta complexidade cuja função precípua é dar funcionalidade e eficiência à promiscuidade entre o público e o privado, transformando o que é público num ajudante de ordens do privado (seja esse privado uma empresa, uma igreja, um partido ou uma família).

Ora, se o quadro é esse - e, efetivamente, o quadro é esse mesmo -, a grita contra a corrupção não pode ser desqualificada como se fosse apenas um surto moralista. Essa grita constitui uma tentativa legítima e necessária de assegurar a saúde da democracia representativa, assim como carrega um impulso de reconciliar a filosofia política em sua melhor dimensão. Naturalmente, os jatinhos da FAB, pobres deles, são apenas um símbolo no meio da bandalha, mas ressignificá-los agora, dotá-los de um sentido mais republicano e menos patrimonialista é uma tarefa urgente. Não apenas porque custam caro, não somente porque consomem o dinheiro do povo, mas, principalmente, porque levam nas asas as co
res da Bandeira Nacional e precisam ser tratados com respeito pelos funcionários públicos - estritamente em função pública. Ou vão dizer que pedir respeito é moralismo?

        O recado das ruas de junho é muito simples e direto. O poder precisa ser mais transparente, mais acessível (por isso as massas invadiram ou tentaram invadir os palácios). Os privilégios precisam acabar.
A saudade vai passar.
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* EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA E PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM.
Fonte: Estadão on line, 11/03/2013

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