Gênero praticado pelo escritor capixaba, cujo centenário é comemorado esse ano, ganha novos contornos no século XXI
"Qual o segredo de Braga? Creio ser este: pôr em suas crônicas o melhor da poesia que Deus lhe deu. Outros põem também poesia nas suas crônicas, mas cautelosamente, só o refugo; a melhor eles guardam para seus poemas. Ao passo que o velho Braga, poeta sem oficina montada, descarregava todos os seus bálsamos e venenos na crônica diária", disparou, certa vez, o então octogenário Manuel Bandeira, referindo-se ao amigo Rubem Braga, que completaria 100 anos em 2013. De fato, enquanto outros notáveis brasileiros, como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino, dividiam a atividade de cronista com a de romancista, Braga dedicou-se exclusivamente à crônica, deixando seu nome marcado através de um gênero tido, por muitos, como menor.
Para celebrar o século de história, não faltaram lançamentos. O grupo editorial Record publicou obras inéditas e reedições de Rubem Braga, como "200 crônicas escolhidas", "Na cobertura de Rubem Braga", "Rubem Braga - O lavrador de Ipanema" e o infantil "O menino e o Tuim". O destaque vai para "Retratos parisienses", organizado por Augusto Massi. O livro traz, além de crônicas, entrevistas que o escritor fez como correspondente em Paris, em 1950.
Engrossando a lista de homenagens, até o dia 2 de setembro, o Museu da Língua Portuguesa abriga a exposição "O fazendeiro do ar". São textos, correspondências, desenhos, pinturas, fotografias, objetos, depoimentos em vídeos e publicações que abordam a vida e obra do escritor em diversos aspectos, desde sua infância, passando pelo seu trabalho como correspondente de guerra, até chegar aos tempos de sua cobertura no Rio de Janeiro. Chamam atenção vídeos com depoimentos de amigos que com ele conviveram, a exemplo do cartunista Ziraldo, da escritora Ana Maria Machado, da atriz Fernanda Montenegro e dos jornalistas Zuenir Ventura e Danuza Leão. Uma parte do acervo exposto foi cedida pela família do escritor, a outra pertence à Fundação Casa de Rui Barbosa.
Nem mesmo a sentença dada por um médico ao autor de "O morro do isolamento"(1944), no ano de 1990, de que ele estava com um câncer na garganta, já em estágio avançado, foi capaz de tirar todo o lirismo dos seus escritos, destituindo-o do posto de mestre da crônica moderna. Pé-de-milho, borboleta e falta de assunto. Tudo tornava-se literatura em seus textos, também repletos de causticidade. "Hábil na escolha das palavras, ardiloso e provocativo na definição dos temas, equilibrando-se de forma singular entre o lirismo e a ironia, Rubem Braga inventava uma nova janela naquele que é o espaço por excelência da crônica: a página do jornal. Bandeira enxergava nele um poeta, que escolheu esse formato para 'espremer as gotas de certa inefável poesia que só é dele'", destaca Rodrigo Barbosa, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora.
De 1928, quando aos 15 anos de idade começou a escrever no "Correio do Sul", em Cachoeiro do Itapemirim, sua cidade natal, até sua morte, em 1990, foram mais de 15 mil crônicas publicadas. Se no início do século XX, temas amenos do dia a dia encontravam espaço em suas produções, ganhando tom confessional e foco nos detalhes, quais seriam os assuntos tratados pelo gênero nos dias atuais? A crônica caminha para o jornalismo ou se fundiu com a ficção? Quem seria, hoje, o bom cronista? "É um filósofo da vida simples. Sujeito que contempla atento - e sem julgamento - a vida que se apresenta a ele", sentencia Marcia Tiburi, colunista do site www.vidabreve.com.br, da "Revista Cult", e colaboradora do jornal "Rascunho". A escritora de "Era meu esse rosto", da Editora Record, ainda acrescenta que as condições sociais e políticas dos tempos do autor capixaba proporcionavam textos com mais mistérios. "Os valores eram outros. Na nossa época dessensibilizada, é complicado fazer crônica", assevera.
Filho do escritor Mário Prata, roteirista da Rede Globo e colunista do caderno "Cotidiano", da "Folha de S. Paulo", Antonio Prata é apontado por especialistas como um dos melhores cronistas da atualidade. Colaborador de João Emanuel Carneiro na novela "Avenida Brasil", ele não sabe definir o perfil do cronista contemporâneo, porém aponta que o único objetivo de seu trabalho é o entretenimento. "Para mim, a crônica é mais formato que conteúdo. Não importa o que você escreveu, se for agradável, divertido e se tocar a pessoa que está lendo, de maneira lírica ou melancólica, atingiu sua função primeira. O que ela não deve causar é aborrecimento. As crônicas de Braga ainda nos tocam de maneira nostálgica, não por falar de um período que não existe mais, mas, sim, por ser um estilo pouco usado por nós", defende.
"Eu achava que Drummond não usava seu espaço com a força que tinha. Durante a ditadura, ele ficava numa conversa de meio tom, numa desconversa mineira. A ditadura estava comendo solta, e ele estava naquele tom neutro. Não sendo colunista de periódico algum, um dia fiquei tão furioso e escrevi a crônica que gostaria de ler no jornal, com o título de 'Da minha janela vejo'", comenta. "Era exatamente o que via da minha janela que dava para a favela: o marginal limpando seu revólver e se preparando para o assalto, o policial passivamente dando a ronda rotineira, e eu, o futuro assaltado, pré/vivendo a cena", anteviu Afonso Romano, cuja ousadia o fez registrar o que ele classifica como "coisa temerária, mas necessária", no livro "A vida por viver", com selo da Rocco.
"Não sou um escritor ingênuo. Tento entender o que faço, por que faço e como faço. Portanto, raciocino nesse metier e escrevi três crônicas sob o título 'Teoria da crônica'.O que existe sobre esse assunto ainda é muito precário. A universidade precisa descobri-lo. O cronista é um jornalista a quem é permitido falar na primeira pessoa, mas seu "eu", como na poesia, tem que ser de utilidade pública. Tecnicamente, o cronista é metonímico: através de um detalhe, ele fala do todo. O jornal noticia, o cronista interpreta o fato efetivamente e alegoricamente. O cronista olha pelo buraco da fechadura", completa Afonso Romano.
Embora defenda que a principal característica do gênero, como escreveu Machado de Assis no texto "O nascimento da crônica", é justamente preservar o "aspecto de conversa de vizinha", Rodrigo Barbosa acrescenta à discussão as transformações ocorridas com esse tipo de texto em função das novas tecnologias."Ela vai sendo polvilhada de humor, lirismo, crítica, drama, de acordo com o gosto do freguês. Estabelece um interessante diálogo de fidelidade entre o autor e o leitor, que espera, no dia certo, a chegada do seu cronista na página do jornal. As mudanças que ela sofre são desenhadas pelas modificações da sociedade e da realidade, sua matéria-prima essencial, e chega, hoje, incorporando a informação pulverizada, a solidão acompanhada das grandes metrópoles e a ausência das certezas", disse Barbosa, crédulo de que os únicos limites impostos ao gênero que consagrou o velho Braga são os de tempo e espaço dentro das páginas de jornais.
Contabilizando meio século de poesia, Afonso Romano é radical. Para ele, muitos que assinam como cronistas nos grandes veículos de comunicação não passam de comentaristas travestidos, o que acaba gerando uma profusão de textos contendo experiências pessoais, piadas, devaneios e discussões políticas. "Não se deve confundir a crônica com blá-blá-blá. Hoje está havendo uma confusão, uma perversão em torno dela. Por isso, insisto na diferenciação entre comentarista, articulista e cronista. A 'Folha de S. Paulo' informa que tem mais de cem 'colaboradores' nessa área, e os outros jornais seguem por aí. A crônica é coisa de muita responsabilidade, pois você tem o poder de modificar a vida de uma pessoa com uma frase."
Sem estabelecer onde estaria o melhor do gênero no século XXI, Rodrigo Barbosa e Marcia Tiburi compartilham a opinião de que o mundo virtual apresenta-se como terreno fértil para boas produções. "Concordo que há "espaços de crônica" nos jornais e revistas que são preenchidos por artigos de opinião, ensaios e até reportagens. Mas há autores essencialmente cronistas como Antonio Prata, Martha Medeiros, Carlos Heitor Cony, entre outros. Não sei se o que está na internet é superior, mas sei que ela tem o poder de revitalizar esse tipo de texto, pois o seu "ritmo" combina com o ritmo dele", acredita Rodrigo. "Devido à liberdade de exposição, é neste espaço que aparece a exuberância criativa dos escritores", opina Marcia, que prefere não pensar em, um dia, haver um padrão literário do gênero no Brasil. "Deus nos livre dos cânones que interrompem a livre criação e metem medo. Que surjam mais e mais cronistas", finaliza ela, absorvida de um pensamento que, talvez sem querer, acaba indo ao encontro da ideia defendida pelo autor secular na crônica que dá título a "O conde e o passarinho", lançada em 1936 pela José Olympio, sua primeira obra publicada. "A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde."
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* Do jornal Tribuna de Minas.
Fonte: http://www.tribunademinas.com.br/cultura/14/07/2013
Engrossando a lista de homenagens, até o dia 2 de setembro, o Museu da Língua Portuguesa abriga a exposição "O fazendeiro do ar". São textos, correspondências, desenhos, pinturas, fotografias, objetos, depoimentos em vídeos e publicações que abordam a vida e obra do escritor em diversos aspectos, desde sua infância, passando pelo seu trabalho como correspondente de guerra, até chegar aos tempos de sua cobertura no Rio de Janeiro. Chamam atenção vídeos com depoimentos de amigos que com ele conviveram, a exemplo do cartunista Ziraldo, da escritora Ana Maria Machado, da atriz Fernanda Montenegro e dos jornalistas Zuenir Ventura e Danuza Leão. Uma parte do acervo exposto foi cedida pela família do escritor, a outra pertence à Fundação Casa de Rui Barbosa.
Nem mesmo a sentença dada por um médico ao autor de "O morro do isolamento"(1944), no ano de 1990, de que ele estava com um câncer na garganta, já em estágio avançado, foi capaz de tirar todo o lirismo dos seus escritos, destituindo-o do posto de mestre da crônica moderna. Pé-de-milho, borboleta e falta de assunto. Tudo tornava-se literatura em seus textos, também repletos de causticidade. "Hábil na escolha das palavras, ardiloso e provocativo na definição dos temas, equilibrando-se de forma singular entre o lirismo e a ironia, Rubem Braga inventava uma nova janela naquele que é o espaço por excelência da crônica: a página do jornal. Bandeira enxergava nele um poeta, que escolheu esse formato para 'espremer as gotas de certa inefável poesia que só é dele'", destaca Rodrigo Barbosa, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora.
De 1928, quando aos 15 anos de idade começou a escrever no "Correio do Sul", em Cachoeiro do Itapemirim, sua cidade natal, até sua morte, em 1990, foram mais de 15 mil crônicas publicadas. Se no início do século XX, temas amenos do dia a dia encontravam espaço em suas produções, ganhando tom confessional e foco nos detalhes, quais seriam os assuntos tratados pelo gênero nos dias atuais? A crônica caminha para o jornalismo ou se fundiu com a ficção? Quem seria, hoje, o bom cronista? "É um filósofo da vida simples. Sujeito que contempla atento - e sem julgamento - a vida que se apresenta a ele", sentencia Marcia Tiburi, colunista do site www.vidabreve.com.br, da "Revista Cult", e colaboradora do jornal "Rascunho". A escritora de "Era meu esse rosto", da Editora Record, ainda acrescenta que as condições sociais e políticas dos tempos do autor capixaba proporcionavam textos com mais mistérios. "Os valores eram outros. Na nossa época dessensibilizada, é complicado fazer crônica", assevera.
Filho do escritor Mário Prata, roteirista da Rede Globo e colunista do caderno "Cotidiano", da "Folha de S. Paulo", Antonio Prata é apontado por especialistas como um dos melhores cronistas da atualidade. Colaborador de João Emanuel Carneiro na novela "Avenida Brasil", ele não sabe definir o perfil do cronista contemporâneo, porém aponta que o único objetivo de seu trabalho é o entretenimento. "Para mim, a crônica é mais formato que conteúdo. Não importa o que você escreveu, se for agradável, divertido e se tocar a pessoa que está lendo, de maneira lírica ou melancólica, atingiu sua função primeira. O que ela não deve causar é aborrecimento. As crônicas de Braga ainda nos tocam de maneira nostálgica, não por falar de um período que não existe mais, mas, sim, por ser um estilo pouco usado por nós", defende.
Os tempos são outros
Iniciado no gênero aos 17 anos, o poeta, ensaísta e também cronista Afonso Romano de Sant'Anna, autor do livro de crônicas "Que presente te dar", publicado em maio pela Leya, acredita que os tempos são outros, o que justifica a mudança de olhar para dar conta de registrar a "perplexidade diante da história e do cosmos.""Quando comecei a escrever no JB ('Jornal do Brasil'), trouxe a questão da violência cotidiana para a crônica. O Rio já não era mais 'o barquinho vai, o barquinho vem', não era mais a bossa nova, nem a capital lírica de Rubem Braga, nem bastavam os casos engraçados de Fernando Sabino. A cidade (o Brasil) perdeu sua ingenuidade. E o cronista tinha que dar conta disso, embora falasse às vezes de amenidades", observou, justificando sua postura ao substituir o poeta itabirano no "Jornal do Brasil"."Eu achava que Drummond não usava seu espaço com a força que tinha. Durante a ditadura, ele ficava numa conversa de meio tom, numa desconversa mineira. A ditadura estava comendo solta, e ele estava naquele tom neutro. Não sendo colunista de periódico algum, um dia fiquei tão furioso e escrevi a crônica que gostaria de ler no jornal, com o título de 'Da minha janela vejo'", comenta. "Era exatamente o que via da minha janela que dava para a favela: o marginal limpando seu revólver e se preparando para o assalto, o policial passivamente dando a ronda rotineira, e eu, o futuro assaltado, pré/vivendo a cena", anteviu Afonso Romano, cuja ousadia o fez registrar o que ele classifica como "coisa temerária, mas necessária", no livro "A vida por viver", com selo da Rocco.
"Não sou um escritor ingênuo. Tento entender o que faço, por que faço e como faço. Portanto, raciocino nesse metier e escrevi três crônicas sob o título 'Teoria da crônica'.O que existe sobre esse assunto ainda é muito precário. A universidade precisa descobri-lo. O cronista é um jornalista a quem é permitido falar na primeira pessoa, mas seu "eu", como na poesia, tem que ser de utilidade pública. Tecnicamente, o cronista é metonímico: através de um detalhe, ele fala do todo. O jornal noticia, o cronista interpreta o fato efetivamente e alegoricamente. O cronista olha pelo buraco da fechadura", completa Afonso Romano.
Embora defenda que a principal característica do gênero, como escreveu Machado de Assis no texto "O nascimento da crônica", é justamente preservar o "aspecto de conversa de vizinha", Rodrigo Barbosa acrescenta à discussão as transformações ocorridas com esse tipo de texto em função das novas tecnologias."Ela vai sendo polvilhada de humor, lirismo, crítica, drama, de acordo com o gosto do freguês. Estabelece um interessante diálogo de fidelidade entre o autor e o leitor, que espera, no dia certo, a chegada do seu cronista na página do jornal. As mudanças que ela sofre são desenhadas pelas modificações da sociedade e da realidade, sua matéria-prima essencial, e chega, hoje, incorporando a informação pulverizada, a solidão acompanhada das grandes metrópoles e a ausência das certezas", disse Barbosa, crédulo de que os únicos limites impostos ao gênero que consagrou o velho Braga são os de tempo e espaço dentro das páginas de jornais.
Contabilizando meio século de poesia, Afonso Romano é radical. Para ele, muitos que assinam como cronistas nos grandes veículos de comunicação não passam de comentaristas travestidos, o que acaba gerando uma profusão de textos contendo experiências pessoais, piadas, devaneios e discussões políticas. "Não se deve confundir a crônica com blá-blá-blá. Hoje está havendo uma confusão, uma perversão em torno dela. Por isso, insisto na diferenciação entre comentarista, articulista e cronista. A 'Folha de S. Paulo' informa que tem mais de cem 'colaboradores' nessa área, e os outros jornais seguem por aí. A crônica é coisa de muita responsabilidade, pois você tem o poder de modificar a vida de uma pessoa com uma frase."
Sem estabelecer onde estaria o melhor do gênero no século XXI, Rodrigo Barbosa e Marcia Tiburi compartilham a opinião de que o mundo virtual apresenta-se como terreno fértil para boas produções. "Concordo que há "espaços de crônica" nos jornais e revistas que são preenchidos por artigos de opinião, ensaios e até reportagens. Mas há autores essencialmente cronistas como Antonio Prata, Martha Medeiros, Carlos Heitor Cony, entre outros. Não sei se o que está na internet é superior, mas sei que ela tem o poder de revitalizar esse tipo de texto, pois o seu "ritmo" combina com o ritmo dele", acredita Rodrigo. "Devido à liberdade de exposição, é neste espaço que aparece a exuberância criativa dos escritores", opina Marcia, que prefere não pensar em, um dia, haver um padrão literário do gênero no Brasil. "Deus nos livre dos cânones que interrompem a livre criação e metem medo. Que surjam mais e mais cronistas", finaliza ela, absorvida de um pensamento que, talvez sem querer, acaba indo ao encontro da ideia defendida pelo autor secular na crônica que dá título a "O conde e o passarinho", lançada em 1936 pela José Olympio, sua primeira obra publicada. "A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde."
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* Do jornal Tribuna de Minas.
Fonte: http://www.tribunademinas.com.br/cultura/14/07/2013
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