Carlos Maria Antunes*
«Passamos a vida a ignorar que não é a necessidade que define o que somos, mas o desejo que é em nós atravessado pela alegria e pela tristeza. Aquilo que deseja o homem não pode ser trocado contra nenhum dos valores objetivos que é possível adquirir gerindo as suas pulsões. O Outro do desejo não tem preço, não é da ordem do representável, mensurável, comparável, nem da ordem do ter, é da ordem do ser e da falta de ser. Essa alteridade não tem valor mercantil - tem o rosto do Amor. Há em nós um desejo de ser ou de viver que nenhum alimento do mundo pode saciar. O que é desejado em nós não são tanto os objetos de que parecia termos necessidade, mas aquilo que subjaz ao fundo de que vivemos, o dom da vida. (...) É um dom que, sob um fundo de vazio, apela ao dom da presença» (J. Augusto Mourão).
A crescente e constante necessidade de coisas está intimamente unida a uma insatisfação pessoal, a uma dificuldade originada por não estar em paz consigo próprio, por não estar em contacto consigo, com o seu coração. A sociedade de consumo vive da nossa superficialidade. Apresenta-se mesmo, ainda que muitas vezes de forma subtil, como um sistema de compensação. Horroriza-nos a tristeza, a angústia, a experiência do vazio, a solidão e, mais que tudo, a morte. Não há vida autêntica que não se confronte com estas realidades comuns a todos os seres humanos. E podem ensinar-nos tanto! São expressão da fragilidade que nos constitui e lembram-nos a cada passo que somos seres limitados. E não terminamos de nos convencer de que a aceitação dos nossos limites é de humanização.
Os limites reconduzem-nos à nossa condição de criaturas, desfazendo tantas tentações de autoidolatria, enfocando o nosso olhar no Criador, reconhecendo-nos como dom. São os nossos limites que permitem descentrar-nos de nós mesmos, que libertam e, diria mais, atiçam o nosso desejo de encontro com Deus e de encontro com o outro. «Na união com Deus, o desejo completaria a sua expectativa de fusão amorosa, de totalidade e de falta de limitação. É na experiência mística que o desejo manifesta de modo eminente a sua última pretensão de totalidade e de eliminação de qualquer distância com o objeto amado» (C. Domínguez Morano).
No entanto, e é importante sublinhá-lo, não podemos transpor para Deus e sob a cúpula do desejo de Deus uma não-aceitação dos nossos próprios limites. Sem a aceitação da nossa fragilidade, corremos o risco de albergar em nós uma zona obscura que, por compensação, pode aparecer revestida de desejo de Deus. Também aqui estaríamos perante uma perversão do desejo. O mundo do desejo é complexo e requer uma grande lucidez. Só a nossa terra, a terra da nossa mais concreta e autêntica realidade, pode ser o nosso Céu.
Nenhum desejo é irrelevante
A multiplicidade, a dispersão e também as contradições dos nossos desejos fazem apelo a um processo de reconciliação. E quando se diz reconciliação, de nenhum modo se pretende dizer - nem faria sentido - marginalização de algum sentimento que nos habite. É importante afirmá-lo, porque existe uma tentação comum de separar bons e maus desejos. Aliás, não o fazemos só com os nossos desejos. Gastamos uma boa parte da nossa energia a traçar fronteiras. Somos herdeiros de uma visão dualista do mundo e de nós próprios, geradora de tanto sofrimento. Quantos de nós não carregámos, ou ainda carregamos, com o peso de um sentimento ou de um desejo que consideramos como mau?
O moralismo é uma das piores ameaças a uma sã espiritualidade. Não deixa espaço à indagação, fecha todas as possibilidades de descoberta, destrói a autonomia e a consequente liberdade do sujeito, pois apresenta-se a priori como uma sentença definitiva, interiorizada acriticamente como reflexo de um determinado contexto cultural. Deveríamos ser mais perscrutadores atentos da vida do que catalogadores.
Somos movimento, somos fluir, somos alternância. Somos gente em acontecimento. Temos ainda para aprender uma suavidade no olhar sobre nós próprios e sobre os outros. Não terá sido esse o olhar de Jesus ante a mulher adúltera (Jo 8,3-11)? Ele baixa os olhos, inclina-se para o chão, sabe que somos pó da terra. Recusa-se a julgar e a condenar. «Quem estiver sem pecado que lhe atire a primeira pedral» - diz, criando assim um espaço de autointerrogação, convidando a um peregrinar da lei para o coração, possibilitando que cada um se confronte com a sua própria contradição. Ninguém sai condenado; todos partem, incluindo a mulher, num processo de reconstrução, que só o amor tornou possível.
O nosso itinerário existencial nada tem de linear. Bem que gostamos de nos imaginar numa linha contínua e ascendente, mas a própria vida encarrega-se de nos mostrar, até à saciedade, que não é assim. Poderíamos saber o que é a luz sem experimentar a escuridão? E o dia não é seguido pela noite e a noite pelo dia? Como também sabemos que não existe prazer sem dor, e que a capacidade para sentir prazer é proporcional à capacidade para sentir dor. Não será um erro de perspetiva fixar-nos na luz, no dia, no prazer? E a escuridão, a noite, a dor, não são igualmente mestres na vida? São Paulo, numa referência autobiográfica, não diz que, onde abundou o pecado, superabundou a graça? Será possível traçar uma fronteira rigorosamente delimitada entre bem e mal?
Precisamos de abandonar olhares parcelares e crescer numa visão mais unificada. É precisamente a partir dessa visão que é possível a reconciliação dos nossos desejos. Trata-se de um caminho de autenticidade onde é fundamental não mascarar, não reprimir e não culpabilizar. Nenhum desejo é irrelevante. Por detrás de um desejo que nos pode parecer obscuro esconde-se, tantas vezes, uma força vital ainda desconhecida. Importa seguir-lhe o rasto. Todos transportam uma mensagem que pede discernimento. As nossas múltiplas carências apontam no sentido da carência mais profunda. Este é o fio condutor que estamos chamados a seguir. Impõe-se aqui um trabalho interior comparável a uma viagem. Cada ramificação do desejo conduzir-nos-á ao nosso desejo mais profundo. Trata-se de passar da multiplicidade para a unidade. Do plural para o singular. Do superficial para o profundo.
Qual é a minha carência mais profunda, a ausência maior que me habita, essa ferida que permanece aberta como se fosse insanável? Ou, de outro modo: qual é o meu desejo vital, essencial, absolutamente decisivo? De que estou à procura? Reconciliar os nossos desejos é, pois, unificá-los em torno de um centro. Não um centro que eu construo, mas um centro que me é dado - essa marca indelével do divino inscrita na nossa carne. E essa marca é uma ferida. Teresa de Ávila di-lo de uma forma muito intensa, sob a forma de pergunta: «Poderão existir remédios humanos para os que estão doentes do fogo divino? Quem sabe até onde chega a profundidade dessa ferida?» É essa ferida que oferece a cada um de nós a possibilidade de sair da sua cidadela e de se religar com a Fonte. Neste movimento está desenhado o nosso desejo essencial.
«O meu coração murmura por ti,
os meus olhos te procuram;
é a tua face que eu procuro, Senhor» (SI 27[26],8).
os meus olhos te procuram;
é a tua face que eu procuro, Senhor» (SI 27[26],8).
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* Escritor. In Só o pobre se faz pão, ed. Paulinas
Fonte: http://www.snpcultura.org/escutar_o_que_em_nos_e_mais_fundo.html 18.07.13
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